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Os Retirantes/III/VII

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No dia a que se referia a notícia da folha cuja leitura Feitosa acabava de ouvir, um homem, com a barba e os cabelos descurados, vestido de couro, e trazendo na mão um chapelão de sertanejo, entrou pela Sé com passo vagaroso e medido.

Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e, inclinando-se profundamente, demorou-se por largo tempo a rezar.

A igreja apresentava um aspecto tristonho. A claridade da tarde, que iluminava grande parte da nave e punha em relevo as suas decorações, não tinha a mesma intensidade na capela-mor e deixava-a meio mergulhada na penumbra.

O coro e um avarandado próximo, mobiliados de cadeiras cômodas e numeradas corno num teatro, ostentavam à claridade crepuscular uma preocupação hierárquica no domínio da igualdade cristã. Sob eles jaziam, estendidos em cima de redes sórdidas, moribundos que a demasia da anasarca ou o emagrecimento devido ao relaxamento intestinal tornavam deformes.

Junto a um confessionário sucediam-se um a um estes fiéis, que vinham buscar na voz do sacerdote a última esperança.

O homem, depois de concluir a oração, dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.

— S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe ninguém.

— Está de cama?

— Não; mas não pode receber ninguém.

— Ele há de falar-me, tenho certeza.

— Pode ser; porém outros e de colarinho lavado o têm procurado e ele não os tem recebido.

— Talvez o senhor não esteja bem informado; é impossível o que me diz.

— Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.

— É o que já havia resolvido.

Estas palavras foram proferidas com uma entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido. Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:

— Está bem arranjado; tenho muito de que me rir hoje.

O sacerdote, que estava no confessionário, levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para confessar-se.

— Se está algum dormindo, acordem-no, porque, em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.

Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.

Quando o padre, depois da genuflexão diante do altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o homem desabusado tomou-lhe o passo:

— V. Revma. pode dar-me uma palavra?

O padre, reparando no indivíduo que o interrompera, parou bruscamente e interrogou:

— Há quanto tempo está à minha espera?

— Há quase uma hora.

— E não me ouviu perguntar se faltava mais alguém para confessar?

— Mas eu não quero positivamente confessar-me.

— Pois eu não posso também conversar agora; tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.

O padre apontou para as redes e, dirigindo-se ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:

— Creio que as hóstias não chegam.

— Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar com um pau.

O desconhecido, cruzando os braços e meneando a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.

"Isto por aqui não difere muito do resto da província, os costumes não mudaram" - pensou Paula.

O sacerdote e o sacristão voltaram pouco depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de campainhas encheu o recinto.

Quando terminou a cerimônia, o desconhecido acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:

— Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?

O sacerdote parou e encarou com o seu interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de uma vã formalidade.

— Nunca nos negamos a manter boas relações com os colegas - disse ele.

— Então leia - replicou o desconhecido, que tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao sacerdote.

— Tenho, pois, a satisfação de falar com o reverendo vigário de B. V. - murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao recém-chegado.

Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu sorriso irônico e incômodo, respondeu:

— Agradeço muito a bondade de V. Revma.

— Já vejo que não andam bons os negócios lá pela sua paróquia.

— Pela minha ex-paróquia; lá não há mais talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.

— É desta forma que se deve desempenhar a nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.

— Ah! eu tenho muitos exemplos disto...

— Estamos com a capital cheia de vigários que abandonaram as suas paróquias.

— É que hoje não se pode habitar o sertão; não se ganha para o prato.

— Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos nós; vive-se, porém muito apertadamente.

— Numa cidade como esta?!

— A cidade já deu muito, mas com a afluência de padres não toca uma rua a cada um.

— É mau isto, homem!

— É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase retirantes.

Paula esperou em vão que o seu colega lhe oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:

— Será possível falar ao sr. bispo?

— Pois não! Vindo comigo terá entrada; se quiser, estou às ordens.

Atravessaram a igreja e, saindo pela porta principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em frente à igreja, logo ao descer do átrio.

— Muitas saudades me causa este lenho.

— Dos tempos de estudante, naturalmente?...

— E dos primeiros tempos da minha carreira sacerdotal.

— Não há quem não as tenha.

— As missas de madrugada, as festas da semana santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.

— Hoje o aparato é maior.

— Mas o recolhimento acabou-se, hein?

— O número de devotos tem diminuído muito.

— Mas nem por isso o respeito pela religião se perdeu de todo.

— Já não se pode fazer tudo; o padre já não é o anjo do Senhor.

A medida que iam falando, os dois padres dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal estava sempre fechada.

Paula, reparando nesta circunstância, ponderou ao colega:

— Creio que perdemos os passos.

— Não; a porta conserva-se fechada para que S. Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência, nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver como abrem já.

Tinham parado em frente à porta, e o padre bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.

A porta abriu-se e os dois padres subiram as escadas do palácio.

O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas inclinou a cabeça diante do vigário.

— Venho apresentar-lhe o sr. vigário de B. V., que chega entre nós neste miserável estado.

— Oh! - exclamou o bispo entendendo a mão a Paula - muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião, pela coragem que sabe dar aos apóstolos.

— O mais humilde, o ínfimo dos servos de V. Ex.a Revma. - respondeu Paula - e o mais indigno dos ministros do Senhor.

— Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.

— Eu contava com a grande caridade do meu digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.

O bispo, deveras penalizado com o estado em que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.

— Eu calculo quanto sofreu V. Revma.

— A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que quiser, mas nunca chegará à verdade.

— O cansaço da viagem...

— Nada é diante das afrontas que sofri...

— As privações cruéis durante as jornadas...

— Foram muitas, mas nada valem, comparadas com a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na minha pobre B. V.

— Foram, pois, sofrimentos físicos e morais, torturas da alma e do corpo.

— Não me aterraram, porque os suportei para maior glória de Deus.

Paula passou logo a satisfazer a curiosidade do prelado acerca dos negócios da paróquia.

A causa das suas perseguições foi um desastre acontecido na família de um seu finado amigo, a quem ele prestou o serviço de amparar.

O semblante de Paula estava tão artisticamente perturbado, que fazia realmente acreditar na verdade das palavras, que eram pausadamente ditas.

Prosseguindo na narração, acrescentou:

— Havia na família uma rapariga de 20 anos, a qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.

Fez uma pausa, como se pela mente se lhe erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco, olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.

— Dir-se-ia a estátua do pecado - concluiu Paula.

— E esta rapariga perdeu-se? - perguntou o sacerdote. — É exato.

— E o que é feito hoje dela?

— Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor.

Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.

— A impiedade vai penetrando até os nossos sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.

— Já os ministros de Deus não podem sequer professar a caridade - ajuntou o sacerdote; - V. Exa. não se lembra da acusação que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?

O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:

— Já V. Revma. sabe quanto semelhantes injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.

— O sr. vigário foi prudente?

— Tanto quanto se pode ser, apesar da perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.

— Dentro da casa do Senhor?

— Dentro da casa do Senhor - repetiu Paula, em cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. - Romperam até ameaças de morte, e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.

— E não houve na paróquia quem tomasse o partido de V. Revma.?

— Antes não houvesse; o meu coração não teria um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.

— Houve então conflito?

— Os retirantes, esses desgraçados que são órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram feitas.

— Foi então uma calamidade pública?

— Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que encontravam nos paroquianos.

— É um fato singular - murmurou o sacerdote pensativo -, muito singular.

O bispo agitou afirmativamente a cabeça e Paula prosseguiu:

— Mais lhe admirará a outra circunstância. Um dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.

— O final há de ser por força uma tragédia.

— Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz, ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida que não lhe causou a morte.

— Não podia ser outro o fim de tais amores.

— Pois bem; apesar de ser conhecida a rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam, querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?

— V. Revma? - perguntaram os dois, admirados.

— Eu - respondeu submissamente o vigário -, eu que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a apontar o Monte como o criminoso.

— Era então uma paróquia de doidos?!

— De caluniadores e perversos - observou Paula - que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim, porque nunca fui condescendente com as suas torpezas e os seus roubos.

— Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um seu afeiçoado.

Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote, conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.

— Então a rapariga era uma formosura, hein, seu maganão? E você foi acusado injustamente - disse o sacerdote sorrindo.

— Falte-me a luz neste ponto - disse Paula ajoelhando-se diante de um crucifixo - se eu por acaso tento desculpar-me de um crime por mim cometido.

— Oh! diabo - pensou o sacerdote -, este não é dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o sistema..."