Os Retirantes/III/VI

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Augusto Feitosa não teve forças para conter a comoção que a vista das tranças loiras da moça lhe causara.

O coração, lince que não se ilude, reconheceu prontamente aquela que tinha conseguido disfarçar-se aos olhos. Uma simples semelhança bastou-lhe para basear a indefectível certeza.

— Não pode deixar de ser ela, eu não me podia enganar, murmurou Augusto, que se esforçou desde logo para sair do círculo em que os retirantes o prendiam.

Não podia, porém, dar um passo. Dezenas de braços, dirigidos pela necessidade, estenderam-se para cercá-lo, e um coro de lamentações e de súplicas o atordoaram.

O egoísmo do amor opôs-se, não obstante, à compaixão da filantropia, e Augusto, tentando desviar-se bruscamente, exclamou:

— Deixem-me, isto excede a toda impertinência. - E, com uma entoação severa, acrescentou: - preciso sair.

Os importunos, porém, não o atenderam, não compreendiam que o moço tivesse direito de pospô-los aos seus interesses, e atropelavam-no e azoinavam-no.

— Deixem-me - repetiu Augusto; - deixem-me em nome de Deus; torturam-me.

Nestas palavras sentia-se ansiar a única esperança que suavizava a triste vida do moço; elas foram proferidas com um tom soturno, que traduzia o surdo rumor das profundas angústias que lhe torturavam a mocidade desventurada.

Ao ver aquele semblante, ainda há pouco sereno e carinhoso e agora sombrio e hostil, percebia-se que dentro daquela alma dava-se uma violenta sublevação de sentimentos. E assim era. Havia longos meses que o malsinado rapaz entregava-se a um lento suicídio. A princípio era o ódio que o impelia contra Rogério Monte, a quem atribuía o crime de que fora vítima, crime, cuja extensão Augusto Feitosa media menos pelos seus sofrimentos do que pela impressão que produzira sobre sua velha mãe.

Padecia muito; de um lado a prostração em que via sua mãe aconselhava-o, impelia-o a perseguir Rogério, de outro a imagem angélica de Irena, colocando-se como um véu diante do pai, suplicava-lhe o sacrifício da vingança ao amor. Assim, qualquer resolução que tomava constrangia-lhe o coração; a condolência desfechava golpes sobre sua velha mãe, a perseguição assassinava Irena.

Depois, deram-se os sucessos tristíssimos de B. V. Um documento importante, uma carta de Rogério Monte ao professor Queiroz e que fora rasgada pelo sacristão Marciano, veio cair-lhe nas mãos. Neste documento escrito com a despretensão da intimidade, com esse venerando perfume da lealdade, com que a mútua confiança da amizade repassa as revelações, a inocência de Monte estava evidentemente provada: nenhuma outra prova era preciso juntar.

Esse documento teve uma confirmação.

Como o próprio Rogério Monte, Feitosa, depois de convencer-se da inocência do honrado velho, perguntava e não sabia responder quem seria o autor do crime.

Antônia, a ex-cozinheira do vigário, veio, porém, trazer-lhe uma prova, com a revelação de que, na manhã seguinte à noite em que se dera o crime, a bacia do quarto de seu amo tinha amanhecido com água ensangüentada, e que lavara roupas de S. Revma. também manchadas de sangue.

Desde então o ódio contra Rogério transformou-se em desespero e remorso, por havê-lo perseguido.

Todos os dotes de Irena, extremando-se em sua imaginação, aumentavam-lhe o sofrer. Aos seus próprios olhos, Augusto viu-se como um réu que não devia, que não podia ser perdoado. Considerava-se duplamente assassino: de um lado, cruel, ferira a lealdade e a honra de um homem de bem, de outro pagara com a mais requintada ingratidão a confiança que nele depositara a tímida Irena.

Este pensamento, principalmente, tomava proporções sobrenaturais no seu imaginar. Que sinceridade não havia naquele coração, quão profundo não era aquele amor para irromper através de dois séculos de ódios e de vinganças, para corresponder heroicamente ao amor que ele lhe demonstrara?

— E, no entanto - exclamava Augusto nas suas horas de amargura -, eu paguei-lhe tudo isto caluniando e enxovalhando as honradas cãs de seu pai!

Comunicando à sua velha mãe a injustiça que havia praticado, obtivera imediatamente dela consentimento para oferecer a sua mão à Irena, como reparação do passado.

Mas intervieram logo os tremendos acontecimentos que deram em resultado o abandono da paróquia. A velha senhora, ameaçada na sua e na vida do filho, foi atacada por um acesso febril, que teve como resultado o idiotismo e a morte, vinte e tantos dias depois.

Durante todo o tempo da moléstia de sua mãe, Augusto nada pôde fazer a favor de Rogério Monte, a não ser contra-avisar a polícia.

Dirigindo-se em seguida ao Aracati, todas as suas pesquisas foram infelizmente infrutíferas. Rogério Monte havia trocado o nome e não se servia do que mandara para endereço das suas cartas.

A única notícia que obtivera serviu apenas para desanimá-lo mais. Soube, pelos correspondentes de Monte, que este havia desaparecido e algumas frases deixaram-lhe perceber que o velho devia ter tomado todas as providências para ocultar-se e para sempre.

Olhe, que saiu uma vasilha muito ordinária, aquele sujeito - disseram os correspondentes; - sonegou um dos escravos na impossibilidade de pregar-nos calote redondo.

— Mas é preciso que se expliquem bem - ponderou Augusto; - não se atribuiu nunca ao velho Rogério este defeito.

— A ocasião e que faz o ladrão: deu um dos escravos por morto.

— Ele que disse, é que é a verdade.

— Ah! - exclamou um dos correspondentes sorrindo. - O senhor também ainda acredita na probidade dele? Preparou bem o laço, e tão bem que nós ficamos no desembolso e ele continua a passar por homem honrado.

— Não é exato também isto, porque eu tenho negócios com Rogério Monte e autorização para pagar qualquer dívida sua.

Prestado este serviço à honra do nome de que usava a sua escolhida, Augusto empenhara-se ainda com maior dedicação na descoberta do esconderijo de Rogério, o que fez com que ele perdesse muito tempo em Aracati.

Cada dia que passava, em vez de diminuir-lhe a esperança pelo desânimo, aumentava-a pela consciência do dano que havia causado aos interesses e à boa fama de Monte, que, apesar de ser pelo próprio Feitosa proclamado vítima de engano quanto à autoria do crime, continuava a ser apontado como o autor.

— Pobre homem - soluçava Augusto; - nem ao menos lhe resta o recurso de suplicar entre os seus parentes proteção e agasalho. Estes, certos de que iriam incomodá-los, negar-lhe-iam o serviço.

Todos os recônditos da cidade, todos os arredores foram explorados e, no cabo das pesquisas estreitas, minuciosas e feitas, não só com os olhos mas com o coração, Augusto Feitosa só encontrou o desengano.

Um indicio vago apontou-lhe então para a Fortaleza: era quase certo que Rogério para lá se dirigira, e tanto bastou para que Augusto tomasse aquela direção.

Dias depois Feitosa chegava à Fortaleza.

O coração, comprimido pelas angústias tenazes que lhe causava a presunção dos sofrimentos de Monte, dilatou-se-lhe em face do estado da capital.

Era horrível o que via, mas sobre este horror pairava a esperança. A capital, imenso desaguadouro de todas as correntes da emigração provincial, era o enorme Cáspio, em que todas essas correntes despejavam sem achar saída. Podia-se, pois, pressupor que seriam ai encontrados todos aqueles que uma vez houvessem transposto o seu círculo, a menos que a morte os não arrebatasse.

Feitosa, na primeira noite, ocupou-se em reler a carta que, por um lance do acaso, lhe viera às mãos, e em que vira desde logo que a assinatura Antônio de Louredo mascarava Rogério Monte.

Nesta carta, em que, explicadas miudamente as desgraças que o haviam acabrunhado, vinha o roteiro do destino que Rogério pretendia tomar, tinha Feitosa o seu melhor guia.

Havia um trecho que lhe iluminava os passos a pesquisas eficazes. Dizia a carta:

"A calúnia fatal que manchou o meu nome, porque, amesquinhando a conta em que tenho as tradições de minha família, aponta-me como me tendo emboscado para atacar um Feitosa; a calúnia fatal impede-me de viver à luz. A minha honra não é tão eloqüente como o dinheiro do meu inimigo.

Confundir-me-ei, portanto, com a mais baixa camada do povo, até que possa obter de algum parente recursos para provar a minha inocência e levantar de novo o meu crédito".

Feitosa, pois, chegando à capital, dirigiu as vistas exclusivamente para a massa dos retirantes.

Dias e dias passou-os à porta de todas as comissões e circulando os abarracamentos; mas, no cabo desse trabalho, só colhia decepções, que lhe geravam no espírito sentimentos contraditórios com a sua índole.

Naturalmente compassivo e impressionado, Feitosa alegrava-se agora vendo com as horas aumentar o número dos retirantes.

— Quanto mais gente houver na cidade, tanto maior será a confiança de Rogério Monte em não ser reconhecido -pensava ele; - sairá com mais franqueza à rua.

Para dobrar a certeza de seus cálculos e facilitar o encontro, Feitosa dirigiu-se a alguns dos seus parentes, que residiam na capital, e sendo por eles apresentado aos comissários, procurou em todos os recenseamentos anarquicamente escriturados por estes o nome de Antônio de Louredo.

Foi tempo gasto em pura perda, e a reflexão mostrou-lhe depois que Rogério Monte, ocultando-se da polícia, não havia de servir-se do mesmo nome que dera à família Queiroz para endereço de suas cartas.

O resultado das pesquisas foi, portanto, o desânimo. Aqueles a quem procurava parecia que tinham a impalpabilidade das larvas: não ocupavam lugar.

— Morreriam? - perguntou um dia a si mesmo o desalentado moço. - Terei eu de acusar-me ainda desta tremenda responsabilidade?

Esta suspeita, pela sua própria natureza cruciante, foi acossada pela paixão, cada vez mais ardente, que ele sentia pela mísera Irena; e Feitosa voltara à sua peregrinação através do povo, em quem indenizava as lágrimas que fazia derramar aos dois foragidos.

Imagine-se, pois, que profunda comoção lhe causou a semelhança das loiras tranças da vendedora de rendas, e qual seria o seu despeito, vendo-se impedido de seguir ao encalço da moça!

Repetindo, pela segunda vez, o pedido para que o deixassem passar, Augusto Feitosa sacudiu impetuosamente aqueles que o seguravam e abriu caminho.

O seu esforço, porém, não produziu resultado. Na imensa rua, completamente cheia de povo, espécie de formigueiro de homens, não era possível descobrir largo horizonte; a vista era circunscrita a um pequeno raio pelo povaréu, e qualquer pessoa, para evadir-se, não precisava dar 20 passos.

A visão das tranças loiras desapareceu inteiramente, deixando apenas a claridade da esperança, brilhante via-láctea em que se deviam abotoar sonhos ridentes de felicidade para Augusto.

O moço, desvairado e impaciente, dirigiu-se a todas as pessoas que se achavam próximas, perguntando se não tinham visto passar a sua protegida. Não colheu um único indício certo, e levado por informações erradas foi parar justamente no lado da praça oposto ao em que Irena reunira-se ao seu velho pai.

— É horrível, é horrível, meu Deus; esteve junto a mim e no entanto eu não a reconheci logo.

E pela imaginação exaltada de Augusto começaram a atravessar, tristes como um saimento, as idéias que naturalmente surgiriam no pensamento.

"Hás de pensar que eu já não te amo, e tens razão; que me importa a mim que outros sofram? Por que hei de esquecer-me de meu amor, quando os outros se lastimam? A minha vida, a minha felicidade és somente tu, Irena, e eu cheguei a desconhecer-te na mesma hora em que pensava em ti."

O golpe cruel alquebrou-o profundamente; sentiu que ia desfalecer, e a passos lentos e vacilantes dirigiu-se para o hotel que fica em uma das faces da praça.

Naquela casa, onde só se hospedavam aqueles que não tinham enfrentado em luta com a indescritível calamidade que assolava a província, reinava a alegria. Vários hóspedes, sentados em volta de uma grande mesa, conversavam, esvaziando lentamente copos de refrescos.

Um dos hóspedes, sentado a alguma distância, lia atentamente um periódico, e parecia completamente alheio à conversação dos outros.

Um caixeiro, porém, vindo abrir junto dele uma soda, fê-lo de modo tão desastrado, que lhe molhou completamente a folha.

— Bem se diz que os capengas não formam - disse o leitor contrariado.

O caixeiro, que coxeava de uma perna, abriu um riso alvar e retirou-se, enquanto os outros hóspedes, intervindo nos comentários do insignificante incidente e aplaudindo o dono do hotel, que, deixando a cadeira em que estava sentado, acompanhou o caixeiro repreendendo-o, observaram ao patrão:

— Não se apresse; os coxos apanham-se sem dificuldade.

— Custa menos ainda a apanhar um mentiroso.

— Nem sempre.

— Haja vista a folha que o senhor acaba de ler a respeito do tal vigário de B. V.

— Como assim?

— Não repararam na notícia que dá da chegada dele a esta cidade? Pois vejam.

O interlocutor tomou o periódico e leu:

"Acha-se entre nós o Revmo. vigário de B. V. Foi um tipo de caridade na sua paróquia, e durante a horrível calamidade que a tem afligido prestou os maiores serviços, os quais só cessaram depois que a extrema miséria violentou-o a retirar-se daquela localidade com a maioria da população".

— Seguem-se congratulações com a capital pela aquisição de mais um digno continuador da obra de Cristo.

— É pessimista demais, doutor; não há nada nesta notícia que autorize a julgá-la mentirosa. Um homem, por ser padre, não deixa de ser homem.

— Eu conheço bem a história dos padres do interior; sei quais os seus serviços nesta seca.

— Então não há exceções?

— Não duvido, mas basta olhar para o procedimento que eles têm aqui na capital: estão a comer descansadamente as côngruas e nem ao menos se prestam a levar os sacramentos aos retirantes. Estes vão moribundos à Sé, onde a maior parte expira.

— É exato, mas daí não se conclui que o vigário de B. V. não seja um homem virtuoso.

— Pois eu, julgando o tal padre pela sua classe, digo-lhe que o seu elogio não me fará ver nele uma exceção.

— Não penso do mesmo modo; há aqui pessoas que têm andado pelo interior, conhecem o vigário, e não tratam de desmentir a notícia.

— Terão suas razões - interveio Feitosa pedindo desculpa; - mas eu, que estive na localidade, sei muito bem que o padre Paula é um malvado.

— Está com certeza cônego em pouco tempo - sorriu o doutor; - isto é assim mesmo, quanto pior, mais depressa chega. Feitosa, que havia asserenado um pouco, despediu-se e saiu pensando consigo:

— Não te poderei talvez salvar, minha querida Irena; mas tomarei contra o nosso algoz a mais cruel vingança.