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Os Retirantes/III/V

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Desde então Irena deixou de ser a tímida menina da paróquia para ser a filha corajosa e dedicada. Como que as forças perdidas pelo velho Rogério tinham vindo abrigar-se dentro dela. Quando o infeliz desanimava, Irena, com uma energia piedosa, realentava-o, e era tamanha a sua dedicação, que mantinha a esperança no meio de tão grandes desilusões.

— Ainda nada, minha filha; voltas hoje para casa com as tuas rendas.

— Daqui até a noite ainda há muito tempo; verá como faço ainda um negocião.

Havia entrado no largo da Assembléia o qual estava agora convertido num abarracamento.

Reinava aí o grande sussurro que enche sempre as aglomerações populares.

Na parte media do largo, diversos vendedores estacionados apregoavam, acirrando a gula dos retirantes - arroz cozido e mel.

O velho Rogério Monte, ouvindo o pregão, sorriu, e murmurou:

— As tuas economias não chegam hoje para que possamos enganar a boca. Há entretanto 24 horas que não comemos!

— Um pouco de paciência mais, meu pai, e teremos fartura. Fiz quatro varas de renda, e hei de vendê-las a dois tostões...

— Se vendê-las, minha filha.

Deram mais algumas passadas, porém, chegados a uma esquina, Rogério, cuja fraqueza não podia resistir à soalheira, propôs a Irena esperá-la ai.

— És mais forte do que eu; vai ver se vendes as tuas rendas, e vem encontrar comigo aqui. Olha: eu não preciso do meu paletó, põe-no sobre a cabeça; abriga-te nele; faz um sol de rachar.

Irena obedeceu e, depois de fazer Rogério sentar-se em um portal, caminhou para o largo.

Pouco adiante estava reunido um grupo compacto em torno de um homem, cujo rosto Irena não pôde ver. O rebuliço das pessoas que estavam ao redor dele (as bênçãos que de todas as partes o cobriam, fazia ver que o homem dava esmolas.

Irena parou. A sua educação, os seus precedentes geravam-lhe uma repugnância quase invencível para esmolar. Poucas vezes se tinha visto forçada a lançar mão deste recurso para socorrer o seu velho pai, única razão por que pedia. Por si só, preferiria morrer de fome.

Hoje era um dos dias em que precisava urgentemente arranjar dinheiro, e por isso a necessidade de esmolar impunha-se-lhe, porque, apesar de ter discordado de Rogério quanto à impossibilidade de vender as rendas, estava convencida de que não as venderia.

Depois de longa hesitação, uma idéia lisonjeira veio ao espírito de Irena.

O homem que estava a distribuir esmolas, é porque tinha um coração generoso. Devia, pois, compreender que a sua oferta de rendas era o mesmo que um pedido de esmola, e atendê-la-ia.

Encorajada por esta idéia, aventurou-se aos encontrões e às grosserias do ajuntamento e, resistindo aos brutais vaivéns que lhe davam, chegou à distancia de poder se fazer ouvir pelo homem, cujo rosto entretanto não conseguia ver.

Ofereceu uma, duas, muitas vezes as suas rendas, sem que fosse atendida, e já começava a desanimar, quando o grupo que a encobria aos olhos do desconhecido deu-lhe passagem.

— Faça-me a esmola de comprar esta renda, meu senhor, murmurou Irena.

— Espera um pouquinho, filha - disse o homem sem voltar-se, mas colocando uma das mãos sobre Irena.

O som da sua voz, porém, produziu sobre a moça uma comoção tão violenta, como se ele a houvesse ofendido. Irena levantou os seus grandes olhos azuis, e, ao deparar com o rosto do desconhecido, baixou-os, reprimindo um grito.

O esmoler, em torno do qual se agrupava tanta gente, e em cuja porta paravam durante o dia centenas de retirantes, era Augusto Feitosa.

Agora, como sempre, ao dar a esmola, o moço, em cujo semblante estavam estampados os mais vivos vestígios de sofrimentos profundos, perguntava a cada socorrido o lugar da província onde anteriormente morava e concluía sempre por esta pergunta:

— Não conhece ninguém que tenha vindo de B. V., à margem do Jaguaribe?

Um não fatal respondia sempre à pergunta em que ele punha todo o interesse.

Irena, ao ouvir a insistência da pergunta, sentiu-se ainda mais perturbada. A comoção nem lhe dera espaço para uma furtiva alegria, por ter visto o escolhido do seu coração.

A piedade filial via apenas em Augusto Feitosa uma tremenda ameaça contra a liberdade de Rogério e contra a sua vida.

A calúnia que pesava sobre o seu pai, acusado de haver tentado assassinar Augusto, fazia-a desvairar. Estava na capital a vítima, queria informações de B. V., e estas provavelmente deviam ser pedidas com o intuito de descobrir o lugar em que Monte se refugiara.

— Entretanto eu - pensava Irena -, eu mesma venho servir de denunciante.

Quis ver se podia retirar-se sem ser percebida, mas Augusto, segurando-a pelo ombro, exclamou com um tom acariciador:

— Não vá embora, não; eu compro-lhe as rendas já. Quantas varas tem?

— Quatro - respondeu Irena disfarçando a voz, cujo timbre aliás não podia ser distinguido no meio do alvoroço.

— E a como as vende?

— Pelo que Vossa Mercê quiser pagar.

— Bem, aqui tem quanto eu lhe posso dar; mas guarde as rendas, para me entregar quando eu as exigir.

Augusto, tirando a mão de sobre o ombro de Irena, entregou-lhe uma nota do tesouro, e Irena, vendo-se livre da pressão com que a bondade desinteressada de Augusto a retinha, quis desde logo desaparecer dos olhos dele.

Um violento encontro que lhe foi dado pelos circunstantes que porfiavam em obter um lugar diante de Augusto, fez com que a moça cambaleasse, e o paletó, com que se mascarara aos olhos do amante, caísse.

As tranças loiras, as belas tranças que haviam colaborado na paixão intensa de Augusto, apareceram, e este, com um movimento brusco, tentou pôr a mão no braço de Irena. Em vão; a piedosa filha, tirando agilidade do perigo que julgava correr o pai, desviou-se e sumiu-se no meio da mó compacta e irrequieta.

Vendo-se finalmente livre do olhar de Augusto Feitosa, atravessou correndo a pequena distância que a separava de seu pai e foi parar arquejante diante dele.

— Vamos já, já, meu pai, não podemos ficar aqui nem mais um minuto.

— Infames! - resmoneou Rogério. - Achaste quem te insultasse, não?

— Ninguém, mas é preciso que saiamos já daqui, ou senão estamos perdidos.

— Mas o que fizeste tu? Vendeste as rendas? - perguntou precipitadamente Rogério com uma entoação em que transluzia o temor de que a filha houvesse cometido alguma ação vergonhosa.

— Vendi, sim, meu pai; não me pergunte mais nada, fujamos daqui porque eu acabo de ver uma pessoa de B. V., e se ela nos reconhecer.

Rogério Monte interrompeu a filha para concluir a frase que lhe explicava tanto temor e alvoroço:

— Estamos perdidos.