Os Retirantes/III/IV
Pouco depois que d. Ana e suas sobrinhas passaram pela rua da Assembléia atravessavam-na também duas pessoas, cujo encontro era ansiosamente desejado pela família.
Uma dessas pessoas era uma rapariga loira, extremamente pálida e emagrecida, cujo trajo revelava mais do que pobreza - verdadeira miséria. Estava descalça, e no corpinho os cerzidos longos traíam uma preocupação de compostura e asseio pouco comum no grosso da população adventícia que enchia a capital.
Via-se num lance de olhos que a infeliz moça fora vítima de uma grande catástrofe; lembrava um pedaço de mármore esculpido no meio de um esterquilínio; tamanha era a diferença que havia entre ela e qualquer outra retirante.
Quem demorasse a contemplar aquele semblante tinha necessariamente por ele interesse compassivo. Da exagerada palidez ressaltavam dois olhos azuis, muito grandes e amortecidos, que pareciam diluir-se numa umidade luminosa, e o olhar que deles transudava trazia alguma coisa de sobrenatural. Duas tranças loiras, enroladas sobre o occipúcio, completavam-lhe a cabeça simpática.
Pela mão dessa rapariga caminhava tropegamente um velho, que apresentava mais idade do que a real. Os sofrimentos tinham-no acabrunhado de tal forma, que dar-se-lhe-ia mais de 60 anos.
Estes dois infelizes, caminhando através da soalheira das 11 horas da manhã, paravam de porta em porta, mas, em vez de pedirem esmolas, a moça oferecia rendas para vender.
Ordinariamente à oferta correspondia um movimento triste da moça, que suspirava, abaixando a cabeça.
— Tem paciência, minha filha - murmurava o velho; - acharemos adiante quem no-las compre.
— Não me incomodo, não, meu pai; já estou acostumada.
Mas, enquanto a voz se encarregava de dar este conforto ao velho, a infeliz não raras vezes levava a mão aos olhos para enxugar as lágrimas que neles marejavam; e, quando, depois de algumas passadas, ela parava em outra porta, era já receosamente que oferecia as suas rendas.
— O dia está hoje aziago, rainha filha - ponderou o velho, depois de ouvir várias recusas.
— Mas ainda é muito cedo; ainda podemos correr outra rua.
— És uma santa, minha Irena - murmurou o velho; - não desencorajas.
— O negócio é assim mesmo, meu pai; um dia bom, outro mau; não há, pois, que estranhar.
Um suspiro do velho Rogério Monte respondeu à frase que estereotipava a enorme valentia moral de Irena.
A tímida amiga de Eulália tinha-se de feito modificado radicalmente. O seu natural retraimento como que se transformara numa concentração de força de ânimo, de tal sorte que ela se mostrava heroicamente sobranceira a todas as desgraças.
Rogério muitas vezes desacoroçoava de todo e revoltava-se contra o destino cruel que o fustigava desapiedadamente, mas a voz de Irena achava tais argumentos na própria desventura, que para logo fazia voltar-lhe a calma e a resignação.
Houve dois dias de máxima provação para Rogério, depois das tremendas decepções que o perseguiram desde que se retirou da paróquia.
A primeira dessas foi a morte de um dos escravos, com a venda dos quais contava saldar inteiramente as suas dívidas e readquirir a boa vontade dos seus credores.
Por mais que o honrado velho documentasse a morte do escravo, não conseguiu autorizar a sua palavra.
— É um excelente subterfúgio - respondiam-lhe os credores; - mas infelizmente já não pegam as bichas.
Em Aracati, portanto, longe de encontrar quem o amparasse, Rogério só teve perseguidores, e foi obrigado a refugiar-se para que não tivesse de amargar na prisão dois crimes que lhe eram imputados com iguais fundamentos: a tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa e a sonegação de um escravo, com o intuito de defraudar àqueles que haviam confiado em sua honra.
Todavia a sua vida não se repassou ali de todo o amargor, que lhe estava reservado; o honrado velho tinha ainda sorrisos para repartir com Irena, cujo coração reagia contra o infortúnio, para não dilacerar a última parte não ulcerada do de seu pai: aquela em que ele encerrava a consciência da amizade que ela lhe dedicava.
Breve, porém, a penúria, estreitando cada vez mais o círculo em torno dos dois náufragos da fortuna, impôs a Rogério como condição de salvar-se a retirada de Aracati. Foi então que, mudando de nome, resolveu partir para o Ceará.
Medonha recordação deixou-lhe tal viagem, e agora, cego, ainda mais se lhe avivava na memória.
Para iludir a vigilância, aliás pouco temível da polícia, agravara ainda mais as aparências das suas necessidades. Pôs-se descalço, e pediu a Irena que fizesse o mesmo e, carregando cabeça os poucos objetos que lhe restavam, foi dar o nome num abarracamento de retirantes.
Daí seguiu, no primeiro vapor, para a capital.
— Sabes em que estou pensando? - dizia às vezes o cego à sua filha.
— Aposto que está pensando em mim - respondia-lhe dando à voz uma entoação acariciadora; - não faz isto.
— Sim, penso em ti, mas naqueles dias da viagem.
E punha-se a recordar as cenas que via com essa vista do cego, que é três vezes mais perfeita do que a dos homens.
Vinha à proa e, como ele e a filha, vinham centenas de retirantes. Aquela aglomeração de farrapos e de enfermidades antecipava-lhe a amarga existência que o esperava na capital. Tinha visto o que podia haver de mais horroroso nas horrorosas cenas da seca.
A maior parte dos passageiros retirantes nem tinha lugar para estender as pernas. Entontecidos pelo enjôo, os infelizes juntavam ao mal-estar geral a imundícia, porque alagavam o convés com vômitos abundantes. Outras enfermidades sórdidas colaboravam nessa obra nauseabunda.
Irena padecera muito e Rogério chegou a perder a esperança de vê-la chegar à capital.
Durante uma dessas horas de angústia, mais uma porção de fel veio misturar-se ao muito que já amargurava o desgraçado. As trouxas que trouxera para bordo desapareceram, e entretanto dentro delas estava tudo que restava ao descendente de uma das mais fidalgas famílias da província.
Rogério, sempre que se lembrava do fato, deixava medir a extensão da cólera que experimentara.
— Tinha coragem de arrancar os olhos a quem me roubou.
O fato alucinou-o no momento e, apesar de ser expressamente proibida a passagem dos retirantes da proa para a ré, afrontou a ordem e foi ter com o comandante.
As providências tomadas foram tão fracas, que não foi possível descobrir o autor do roubo, e além disso em vez de consolo encontrou apenas escárnio e humilhação.
— Tu estavas fora de ti com o maldito enjôo e não viste o que se passou, Irena. Sabes apenas que a punição do comandante foi tamanha, que eu nunca a pediria aos céus.
E Rogério estremecendo referia o desastre, que, no seu entender, punira o pouco caso com que foi tratado pelo comandante.
Quando recebeu o triste desengano de que não era possível descobrir os objetos Rogério voltou à ré.
Sentados junto à borda do vapor, o comandante e a esposa conversavam, e entre os dois brincava uma criancinha, que teria, no máximo, quatro anos.
Embevecido na felicidade que lhes causava tão intimo conchego, o comandante respondeu às lamentações do velho com algumas palavras em que a indiferença repassava a piedade mal simulada.
— Bem viu que tomei logo providências, mas vá lá descobrir o homem da capa preta, entre centenas de indivíduos.
Rogério, por um grito da consciência, repeliu a suspeita que era lançada sobre os seus companheiros de infortúnio, e, com um tom grave, acrescentou:
— Fosse eu o comandante e o senhor a vitima e eu lhe mostraria como descobria em meia hora o autor do roubo.
— Pois dou-lhe poderes, vá descobrir.
— Descobrirei, mas hei de ter permissão para correr as caixas dos seus marinheiros.
— Meu velho - replicou o comandante -, eu perdôo-lhe, porém não repita o que disse. Está decidido, não tenho mais nada a fazer. Pode ir.
Monte retirou-se duplamente ferido pela repulsa do comandante e pela perda inestimável que acabava de sofrer.
Chegando junto de Irena e vendo-a profundamente abatida, todas as desgraças, que imaginou desde logo no futuro, assaltaram-no em tropel. A presença da filha torturava-o; quando ela, entontecida e desanimada, estendia-lhe os braços e rodeava-lhe com eles o pescoço, afigurava-se à imaginação alucinada de Rogério que apertavam-lhe com uma tenaz em brasa.
"O que vai ser de nós?" - pensava ele; - "que mundo de sofrimentos desabará sobre nós? Irena, Irena, melhor fora que morresses.”
O enjôo da moça reunido à falta de comodidades prostrou-a extraordinariamente. Depois da violência dos acessos caiu em um profundo torpor bem semelhante ao espasmo de um moribundo.
— Ela morre, santo Deus - suspirava Monte - e eu não posso ao menos cumprir com o meu dever de pai.
Olhava em vão em torno de si para pedir socorro: a sua desgraça só encarava com desgraçados.
— Não, não morrerás à mingua, minha filha, eu te salvarei.
Cambaleando, dirigiu-se de novo para a banda de ré. Marinheiros postados no passadiço impediram-lhe a passagem.
— Para lá, velho; basta de incomodar o comandante, basta.
— Mas eu sou pai, entendem? E vejo que a minha filha vai morrer.
— É o mesmo, não será o primeiro pai a perder um filho.
Rogério, vendo que inútil seria apelar para a força, não pôde mais conter as lágrimas e, com uma entoação compungente, exclamou:
— Veja, meu amigo, eu estou velho, só tenho aquela filha; se a perder, morrerei também.
— É exato, é - murmurou o marinheiro -, eu bem sei que dói, mas cumpro ordens.
— Esta ordem não pode se estender até um pai que tem a filha moribunda. Olhe, o comandante é pai também; veja-o, está ali contente a rir porque o seu filhinho brinca. Ele perdoará a falta que eu preciso cometer; deixe-me passar.
O marinheiro voltou os olhos para o lugar assinalado por Monte, e depois observou:
— Estou vendo, sim; ele está alegre com o filho, é feliz e não quererá que se dê aos outros a mesma alegria; coisas do mundo!
— Não pense isto; ninguém desdenha da dor de um pai, ninguém se zanga com outrem por saber que se compadeceu dos sofrimentos do seu semelhante. Veja como a criança brinca, e ele e a esposa sorriem?
Houve um instante de silêncio, durante o qual o marinheiro coçava a cabeça como que para afastar daí a idéia de desobedecer à ordem do comandante.
De repente, ambos exclamaram com uma entoação indefinível:
— Virgem!
Um ai que parecia trazer dentro de si pedaços de um coração ecoou em todo o navio, e a esposa do comandante caiu redondamente sobre o tombadilho.
— O que tens tu? - bradou o esposo, precipitando-se sobre ela.
Rogério e o marinheiro, estatelados, sem voz, olhavam-se, ao passo que os outros marinheiros e alguns dos passageiros de ré, correndo para junto do comandante, ajudavam-no a levantar o corpo desmaiado da senhora.
A confusão e o espanto causados pela cena inesperada cresciam, porque todos tratavam de inquirir a causa do desmaio da senhora e limitavam nela os seus cuidados.
Só depois de alguns minutos - longos como um século, porque eram medidos por uma enorme catástrofe - o marinheiro, cambaleando, veio por sua vez parar em face do comandante.
— A menina - disse ele com um acento gutural de enorme comoção - a menina...
O mísero pai atirou-se de encontro ao bordo do vapor com a prontidão de uma bala. Só então pôde medir a extensão do golpe que transpassara-lhe o coração e, levando as mãos à cabeça e contraindo-se como uma serpente no momento do bote, tentou atirar-se nas ondas.
Os braços possantes dos seus companheiros o detiveram, não sem um grande esforço, e ao mesmo tempo todos a uma voz bradaram:
— Escaler ao mar; para trás o vapor.
O velho Rogério parava então para resfolegar e concluía, enxugando lágrimas que marejavam-lhe impertinentemente dos olhos sem luz:
— Eu tinha pedido a Deus que te levasse, minha Irena; mas, ao ver a tremenda dor daqueles pais, fui abraçar-me contigo. Dormias à espera de futuros infortúnios.
Passando então a ocupar-se de Irena, Rogério acentuava as tristezas que vieram recebê-lo no desembarque.
Fora como todos os outros retirantes acomodar-se em um dos abarracamentos e aí, para fazer jus ao socorro do Estado, era obrigado a carregar pedras nas horas da canícula.
Uma noite, de volta do trabalho, chegou à mísera choupana em que morava, ardendo em febre.
Irena padeceu tanto como ele, porque a infeliz em cada gemido paterno ouvia os ecos dos próprios prantos de orfandade.
Rogério por sua vez sentia que a dor da filha agravava-lhe a enfermidade, mas por um dom do acaso veio o delírio roubar-lhe a consciência do infortúnio!
A febre, porém, declinou um pouco e ao romper da alva desapareceu de todo.
Rogério, acordando então, chamou pela filha.
— Diz-me, Irena, o que tive eu à noite?
— Uma febrezinha, mas passou.
— Sim, e onde estás tu? Por que não vens para o pé de mim?
Irena, que não lhe havia abandonado a cabeceira, respondeu a sorrir:
— Olhe para cá e verá que não estou longe.
— Estou a olhar, filha, repara; tenho os olhos abertos, e entretanto não te vejo.
Irena, inclinando-se sobre o rosto de Rogério, abriu os seus tanto quanto estavam abertos os olhos do pai, e fundiu em soluços:
— Somos bem desgraçados! - suspirou a desditosa.
— Muito, minha filha, muito!
Rogério Monte estava cego.