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Os Retirantes/III/XI

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Feitosa não abandonou mais o pensamento de tomar no vigário Paula a vingança a que o aconselhavam os longos meses de tormentos.

A própria sofreguidão, porém, fazia-o emaranhar-se em um labirinto de combinações, que não resistiam a mínima reflexão.

Não podia formular contra o vigário uma denúncia; não tinha uma prova só que pudesse fundamentar a acusação. Tudo quanto sabia não passaria de um fugitivo indício para todos; só o seu coração torturado podia extrair uma certeza das palavras de Antônia e dos fatos que se deram na paróquia.

O único meio que se lhe apresentou como realizável e eficaz foi a difamação anônima, a qual prepararia o caminho para que mais tarde fosse possível a denúncia formal.

Um periódico da capital publicou alguns dias depois um artigo narrando amiudadamente os inacreditáveis acontecimentos de B. V.

O retrato de Paula era aí habilmente feito e de tal modo que só a cegueira não o podia reconhecer.

Feitosa visitou neste dia todos os seus parentes e amigos para medir a impressão que haviam produzido as suas palavras.

Falava-se no artigo, mas a indignação que ele julgava ter produzido no espírito público não realizou: todos se limitavam a simplicíssimos comentários.

— Um padre como os outros.

— Isto de padres, é uma canalha.

— Que jeito, se é verdade o que diz o artigo; valem-se bem da rivalidade das famílias.

Perguntavam a Feitosa se o conhecia, e então o moço carregava as cores ao quadro que ele mesmo havia desenhado com o auxílio de um amigo íntimo.

A manifestação pública, porém, não passou destas frivolidades e Feitosa entendeu que devia insistir nos artigos.

Quando julgou que a notícia já devia ter passado as portas, sempre fechadas, do palácio do bispo, dirigiu-se até lá, disposto a apresentar verbalmente a queixa ao prelado.

A entrada lhe foi vedada e o porteiro, por um mero ato de deferência para com os modos polidos e a boa fama de Feitosa, enviou-o ao sacerdote que apresentara ao bispo o vigário Paula e gozava da estima de S. Exa.

— É como falar a S. Exa. Revma; o que o sr. padre resolver...

— É o que se fará, não?

— Pouco mais ou menos; eu não digo que seja tudo, tudo; mas alguma coisa; um bocado mais para lá, outro mais para cá.

— E onde o encontrarei eu?

— Na igreja, de manhã e à tarde.

Feitosa dirigiu-se imediatamente ao templo.

O sacerdote lá estava empregado no seu mister de confessor, com o semblante carregado em sinal de uma austeridade de comédia e enfado pelo trabalho a que era obrigado.

Quando se desocupou e veio falar a Augusto Feitosa, começou logo por afetar uma urgência, que não passava de um assomo de grosseria.

— Viu o senhor em que tenho estado ocupado. Confessei vinte e tanto retirantes moribundos. Ora, eles sãos causam nojo, imagine o que serão nesse estado.

— Entretanto eu me veio obrigado a demorar vossa reverendíssima.

— E com quem estou falando, posso saber?

— Com Augusto Feitosa de...

— Da grande família dos Feitosas...

— É exato e ultimamente morador de B. V., onde residiu, também o vigário Paula, recentemente chegado a esta cidade.

Augusto Feitosa cravou o olhar no rosto do sacerdote para acompanhar-lhe os movimentos da fisionomia. O sacerdote, porém, impassível, afetando com uma naturalidade indescritível desconhecer completamente a pessoa de quem se tratava, respondeu:

— Não sabia que o vigário de B. V. estava na capital.

— Então, V. Revma. não leu as publicações que têm saído a respeito deste vigário?

— Sobre que versam elas?

— Eu vou apresentá-las a V. Revma., que as poderá ver e julgar.

Augusto Feitosa tirou do bolso alguns números do periódico e passou-os às mãos do sacerdote, que se limitou a ler-lhe o nome.

— Ah! é isto?!... Eu não leio este pasquim, e V. Sa. só acredita no que diz isto por não morar nesta capital.

— Perdão - exclamou Augusto; - eu não acreditaria nos fatos aqui narrados se os não tivesse presenciado e não tivesse neles um tristíssimo lugar.

— V. Sa. vem então denunciar-me o padre Paula?

— Venho comunicar à autoridade eclesiástica fatos praticados por esse vigário e que infamam a classe inteira.

— Bem, eu o estou ouvindo, pode expor.

Augusto Feitosa percebeu logo a má vontade do sacerdote, mas, acreditando na sua declaração de que não havia lido os artigos, passou a expor minuciosamente os acontecimentos da paróquia.

— O que eu concluo é que o vigário Paula e o sr. Augusto Feitosa - disse por fim o sacerdote - foram vítimas de uma tremenda perseguição de um inimigo clandestino!

— Como? - perguntou Feitosa perplexo. - Não vê V. Revma. que ninguém, a não ser o vigário Paula, podia praticar semelhante crime?

— E por que não será o próprio Monte? E por que não seria o velho Queiroz ofendido por ver Irena preferida à sua filha?

— Porque diz-me o coração que não, porque nenhum deles tinha a alma torpe de Paula e nenhum podia urdir nas trevas semelhante trama.

— E eu lhe digo que nada é difícil no mundo, e nada é mais fácil do que iludir.

— Em suma - exclamou Augusto Feitosa irritado -, eu devo contar com a impunidade do vigário Paula, não é assim?

— Não apresentou provas que baseiem a sua acusação. Ouça o senhor: eu também já fui vítima de uma história semelhante.

E, zombando da exaltação de Feitosa, o sacerdote, com uma entoação calma e desdenhosa, desfiou com todos os seus pormenores a história a que ele já se referira falando ao bispo.

— À vista de semelhante experiência - exclamou ele -, compreende o senhor que eu não posso dar crédito a qualquer denúncia.

Feitosa levantou-se precipitadamente, e, sem despedir-se do sacerdote, tomou o corredor da sacristia.

O sacerdote acompanhou-o até a porta, sem mostrar-se ofendido e, quando Feitosa punha o pé fora do limiar da igreja, exclamou mansamente:

— Se arranjar provas, não faça cerimônia, venha ter comigo.

Quando o moço desapareceu o sacerdote despegou uma risada prolongada, e chamando o sacristão:

— Viu sair daqui aquele rapaz? É uma boa alma. Se vir por aí o padre Paula, diga-lhe que preciso muito lhe falar. Olhe, vá lá ao palácio e chame-o para chegar até cá.

E continuou a rir, com grande surpresa do sacristão, que abria bajulatoriamente um riso alvar para secundar sua reverendíssima.

— Tenho mais este na rede - murmurou o sacerdote quando ficou só. - Feitas as contas, eu sou o melhor deles todos, não vou às últimas.

Foi sentar-se na sacristia, onde um Cristo amarelado pelo tempo abria os braços numa inconsciência igualitária à hipocrisia de sua reverendíssima, do mesmo modo que a mais acrisolada virtude. Ria-lhe no olhar a tranqüilidade que lhe vinha da certeza de conservar o seu prestígio junto ao bispo e os proventos que dele tirava.

Momentos depois, no assoalho da catedral soaram os passos cadenciados do vigário Paula. O silêncio, passageiramente roto, readquiriu a sua integridade solene.

— Pode ir cuidar da vida - disse o sacerdote para o sacristão que acompanhara Paula; - não é preciso cá.

O sacristão obedeceu e, fazendo uma profunda reverência, saiu a resmungar:

— Muito amigos são estes dois; boa bisca é um deles, conheço-o; o outro para fazer liga há de ser igual. Tramam com certeza alguma trapaça.

Os dois podres uma vez sós olharam-se, ambos sorrindo benevolamente.

— Vigário, não posso explicar a razão por que me interesso por si...

Paula sorriu maliciosamente e respondeu com uma inflexão escarninha:

— É de certo pelos meus lindos olhos.

— Quando, outro dia, aquela mulher nos seguia e você se mostrava incomodado...

— Ah! conte-me esta novidade, porque não tinha ainda reparado nisto.

— Tive desejos de pedir-lhe então uma confidência explícita, de bom amigo que visa a garantir aqui a sua posição.

— Cáspite!

— Não me julguei, porém, com direito a ela, e hoje também não peço senão explicação sobre alguns fatos.

— E quais são eles?

— Em primeiro lugar, devo dizer-lhe que ainda não há meia hora travei relações com Augusto Feitosa.

Paula perturbou-se momentaneamente, porém, fazendo um esforço supremo, conseguiu ostentar o mesmo aparente sangue-frio.

— Dou-lhe os parabéns - respondeu; - é uma excelente relação.

— O vigário pode falar assim, porque o conhece bem; pode deixar à boca render esta homenagem a Feitosa, uma vez que a sua consciência lha nega.

— Não é tanto assim...

— É o que se infere da tentativa de assassinato contra ele.

— Que é uma verdade tão provada como a sedução da rua da Palma.

— Eu estou por isto. Disse-lho logo depois das suas lamúrias ao bispo; houve porém uma diferença entre a minha revelação naquela hora e a sua neste momento: é que eu então pensei que o sr. vigário Paula era realmente inocente.

— E agora?

— Penso justamente o contrário, e não admito comparação entre mim e o sr. vigário. Eu seduzi, mas não tentei matar.

Paula, vendo-se de todo descoberto aos olhos do confidente do bispo, buscou por um lance de ousadia subjugar a sua argumentação vitoriosa, e levantando-se solenemente aproximou-se do Cristo e, colocando-lhe a mão sobre as chagas, exclamou:

— Pela última vez, juro diante de Deus que nos vê e que nos ouve: não tentei contra a vida de Augusto, nem seduzi a filha de Queiroz. Creiam-me ou não, se quiserem, mas não me torturem hipocritamente.

O sacerdote levantou-se também, e pondo as mãos nas ilhargas, demorou-se numa gargalhada soluçada; e meneando a cabeça, caminhou até junto de Paula:

— Eu juro também, pelo Deus que me ouve, e que me vê: nunca seduzi ninguém.

E riu de novo estrepitosamente.

Paula abaixou a cabeça envergonhado. Reconheceu que não podia representar bem a sua comédia de vítima, diante daquele homem frio, que sem necessidade, por um mero gracejo, profanava a imagem do Cristo, de quem ele se dizia ministro.

— Neste mesmo lugar e em hora muito mais solene, ao cair da noite, quando a escuridão já invadia este recinto, estive eu, uma alta dignidade do clero, a minha vítima e a sua mãe lacrimosas, que me lançavam em rosto o meu crime. A minha vítima estava grávida e a velha mãe, para obrigar-me a confessar o meu delito, convidou-me a pedir a Deus que se fosse verdade o meu crime, por mim tão negado, a criança nascesse cega e paralítica. Eu disse que sim.

— Peça-o com a sua mão sobre o Cristo - disse a velha mãe.

— A minha vítima estremeceu; cobriu-lhe um palor mortal as faces avermelhadas pela vergonha e pelo pranto; eu porém caminhei sereno, sem hesitar, sem pestanejar ao menos, abracei-me com o crucifixo, apertei-o de encontro ao peito e disse com voz clara:

— Juro que sou inocente e se não sou recaia sobre mim e sobre o fruto do meu suposto crime o mais tremendo castigo. A mísera moça - continuou o padre -, havendo-se levantado talvez para impedir-me que jurasse, ao ouvir as minhas primeiras palavras, deu um grito e caiu por terra desmaiada. Corri para ela e levantando-a tranqüilamente disse à autoridade que me ouvia:

— Note V. Exa.; buscaram todos os meios de perder-me, de perturbar-me, porém a justiça divina começa a justificar-me; não é sobre mim que pesa a mão de Deus é sobre elas. Já vê, meu padre, que eu conheço bem estas coisas: não valem nada para mim estes juramentos.

Paula veio muito perturbado sentar-se, e olhando súplice para o padre murmurou:

— Não sei por que razão a palavra de um desconhecido há de valer mais no seu conceito do que a de um seu colega.

— Não é a palavra; o que vale mais é a prova, o testemunho de várias pessoas. Ousará ainda você negar?

Paula olhou humildemente para o sacerdote.

— Cala-se, é, pois, verdade, e no entanto, ingênuo que eu sou, deixei-me imbair por si; julguei-o um exemplo de piedade sacerdotal.

O vigário continuou calado e cabisbaixo; a sua sorte estava definitivamente nas mãos do sacerdote, que podia desde então salvá-lo ou perdê-lo, e certo disto o hipócrita não ousava sequer erguer os olhos.

Da sua resposta, séria e verdadeira, depende a sua sorte. Feitosa veio comunicar-me que iria denunciá-lo, se a autoridade eclesiástica não o expulsasse da cidade; responda para o nosso governo: praticou o crime?

— Sim - respondeu Paula altivamente; - mas se não obtiver proteção, denunciá-lo-ei também. Não estava aqui, e, portanto, contando os pormenores do caso da rua da Palma, como revelação sua, posso perdê-lo.

O padre riu de novo prolongadamente, e batendo no ombro do vigário:

— É muito criança ainda; previna-se ou virá a perder-se. Eu só queria ouvir-lhe a confissão; não quero persegui-lo, mas avisá-lo de que estará perdido se por acaso Feitosa puder entrar no palácio. Quem tem inimigos desembaraça-se deles de qualquer modo. É preciso tomar cuidado ou está perdido.

— Eu o procurarei...

— Não basta, é preciso esmagar aqueles que o servem, a todos que podem prejudicá-lo, meu padre.

— Sim, sim, eu os encontrarei e a minha vingança será completa.

— Faz um calor diabólico...

— E esta farsa que você fez-me representar fatigou-me extraordinariamente.

— Queria ensaiá-lo.

Riram-se e afastaram-se vagarosamente da sacristia, onde o Cristo ficava com o mesmo aspecto piedoso.

O sacristão que estava no átrio esperando murmurou ao vê-los:

— Felizardos, sabem passar a vida.