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Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro VI/VI

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VI.


ALLUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO.


Quando aquelle homem achou-se naquelle rochedo, debaixo daquella nuvem, no meio daquella agua, longe do contacto humano, deixado por morto, sósinho entre o mar que subia e a noite que descia, teve profundo jubilo.

Alcançara o que queria.

Realisara-se-lhe o sonho. Estava paga a letra de longo praso que elle saccou sobre o destino.

Para elle, ficar abandonado, era ficar livre. Estava no Hanois, a uma milha de terra; tinha setenta e cinco mil francos. Nunca se realisou mais acertado naufragio. Nada falhou; é verdade que tudo estava previsto. Desde a juventude Clubin teve uma idéa; fazer da honestidade uma parada no jogo da roulette da vida, passar por homem probo, e partir dahi, esperando que a sorte corresse; não apalpar, segurar; fazer um lance, mas só um, agarrar tudo, e deixar atraz os papalvos. Assentava que devia alcançar de uma vez aquillo que os larapios tolos deixam de agarrar vinte vezes, e, emquanto estes vão ter á forca, elle iria á fortuna. O encontro de Rantaine foi o raio de luz. Construio immediatamente o plano: obrigar Rantaine á restituição; quanto ás suas revelações possiveis, annulal-as desapparecendo; passar por morto, que é a melhor desapparição do mundo; para isso fazer naufragar a Durande. O naufragio era necessario. Além de tudo, ir-se embora deixando boa fama, era fazer da sua existencia uma obra prima. Quem podesse ver Clubin naquelle naufragio acreditaria ver um demonio feliz.

Viveu toda a sua vida naquelle minuto.

Toda a sua pessoa exprimia esta palavra; Emfim! Tremenda serenidade empallideceu aquella fronte obscura. Os olhos embaciados, no fundo dos quaes parecia haver um tabique, tornou-se profundo e terrivel. O abrasamento interno daquella alma reverberou-se nelles.

O foro intimo, como a natureza externa, tem a sua tensão elastica. Uma idéa é um meteóro; no momento do triumpho, entreabrem-se as meditações acumuladas que o preparam, e jorra uma faisca; ter em si uma garra do mal, e sentir nella uma presa, ventura é esta que tem a sua irradiação; máo pensamento que triumpha illumina o rosto daquelle que o concebeu; certas combinações triumphantes, certos desejos realisados, certas felicidades ferozes, fazem apparecer e desapparecer nos olhos dos homens, lugubres e luminosas dilatações. É a tempestade jubilosa, é a aurora ameaçadora. Tudo isso sahe da consciencia, que se faz sombria e ennevoada.

Foi esse fulgor que illuminou aquelles olhos.

Relampago que não se parecia com cousa alguma do que se póde ver no céo e na terra.

O velhaco comprimido que havia em Clubin fez explosão.

Clubin fitou a immensa obscuridade, e não pôde reter uma gargalhada baixa e sinistra.

Estava livre! estava rico!

Achara a incognita. Resolvera o problema.

Clubin tinha tempo de cuidar de si. A maré enchia e por conseguinte sustentava a Durande, e afinal devia pol-a a nado. Mas o navio adheria solidamente ao rochedo; não havia perigo de sossobrar. Além disso, era preciso deixar á chalupa o tempo de affastar-se, perder-se talvez; Clubin contava com isso.

De pé sobre a Durande naufragada, cruzou os braços, saboreando aquelle abandono nas trevas.

A hypocrisia pesou áquelle homem durante trinta annos. Era o mal, e consorciou-se com a probidade. Odiava a virtude com um odio de mal casado. Teve sempre uma premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquella armadura rigida, a apparencia. Era monstro internamente; vivia em uma pelle de homem de bem, com um coração de bandido. Era o pirata ameno. Era prisioneiro da honestidade; estava fechado naquelle caixão de mumia, a innocencia; tinha nas costas azas de anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe de mais a estima publica. Passar por homem honrado é duro! Manter constante equilibrio, pensar mal e fallar bem, que labutação! Clubin era o phantasma da rectidão, sendo o espectro do crime. Este contra-senso foi o destino delle. Era-lhe preciso mostrar ares apresentaveis, escumar por baixo do nivel, sorrir em vez de ranger. A virtude para elle, era cousa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquella mão que lhe tapava a boca.

E querendo mordel-a, foi obrigado a beijal-a.

Ter mentido, é ter soffrido. O hypocrita é um paciente na dupla accepção de palavra; calcula um triumpho e soffre um supplicio. A premeditação indefinida de uma acção ruim acompanhada por dóses de austeridade, a infamia interior temperada de excellente reputação, enganar continuadamente, não ser jámais quem é, fazer illusão, é uma fadiga. Compôr a candura com todos os elementos negros que trabalham no cerebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compôr o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma belleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cocegas com o punhal, pôr assucar no veneno, velar na franqueza do gesto e na musica da voz, não ter o proprio olhar, nada mais difficil, nada mais doloroso. O odioso da hypocrisia começa obscuramente no hypocrita. Causa nauseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astucia disfarça a malvadeza repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e ha momentos de enjôo em que o hypocrita vomita quasi o seu pensamento. Engulir essa saliva é cousa horrivel. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hypocrita se estima. Ha um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como elle retesa-se e levanta-se. O traidor não é mais que um despota tolhido que não póde fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hypocrita é um titão-anão.

Clubin imaginava de boa fé que tinha sido opprimido. Porque razão não nascèra rico? O que elle queria era que os paes lhe houvessem deixado cem mil libras de renda. Por que não as tinha? Não era culpa delle. Porque motivo, não lhe dando todos os gosos da vida, forçaram-n’o a trabalhar, isto é, a enganar, a trahir, a destruir? Porque motivo condemnaram-n’o assim a essa tortura de adular, de rastejar, de comprazer, de fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto um rosto que não ere delle? Dissimular é uma violencia imposta. Odeia-se diante de quem se mente. Soára emfim a hora. Clubin vingava-se.

De quem? De todos e de tudo.

Lethierry não lhe fez senão bem: queixa de mais; vingava-se de Lethierry.

Vingava-se de todos aquelles ante quem foi obrigado a constranger-se. Desforrava-se. Quem quer que pensasse bem delle, era seu inimigo, porque elle foi captivo desse homem.

Clubin achava-se livre. Realisára-se a fuga. Estava fóra dos homens. O que se tinha por morte, era vida; elle ia começar agora. O verdadeiro Clubin despojava-se do falso Clubin. De um lance dissolveu tudo. Empurrou com o pé, Rantaine ao espaço, Lethierry á ruina, a justiça humana ás trevas, a opinião ao erro, a humanidade inteira para longe de si. Tinha eliminado o mundo.

Quanto a Deos, Clubin curava pouco dessa palavra de quatro letras.

Passou como religioso. Que importa?

Ha cavernas no hypocrita ou antes, o hypocrita é uma caverna.

Quando Clubin ficou só, abrio-se-lhe o antro. Teve um instante de delicias; arejou a alma.

Respirou largamente o seu crime.

O fundo do mal tornou-se visivel naquelle rosto. Clubin abrio-se. Nesse momento, o olhar de Rantaine ao pé daquelles olhos pareceria um olhar de recem-nado.

Arrancar a mascara, que livramento! A consciencia de Clubin alegrou-se por ver-se hediondamente nua, e por tomar livremente um banho ignobil no mal. O constrangimento de um longo respeito humano acaba por inspirar um gosto violento á impudencia. Chega-se a uma certa lascivia na perversidade. Existe nessas tremendas profundezas moraes tão pouco sondadas, uma não sei que ostentação atroz e agradavel que é a obscenidade do crime. A insipidez da falsa reputação dá appetite de vergonha. Desdenha-se os homens a ponto tal que se deseja o despreso delles. Ser estimado, aborrece. Admira-se a franquesa da degradação. Olha-se cobiçosamente a torpeza que se mostra tão a seu gosto na ignominia. Os olhos obrigados a baixar-se, tem muitas vezes destes olhares obliquos. Nada se approxima tanto de Messalina como Maria Alacope. Vede Capiere e a religiosa de Louviers.

Clubin vivera debaixo do véo. O descaramento foi sempre a sua ambição. Invejava a mulher publica e a fronte de bronze do opprobrio aceito; sentia-se mais mulher publica do que ella e tinha desgosto em passar por virgem. Foi o Tantalo do cynismo. Emfim naquella solidão, podia ser franco; era-o. Que volupia não é sentir-se sinceramente abominavel! Todos os extasis possiveis no inferno, teve-os Clubin naquelle momento; foram-lhe pagos todos os atrasados da dissimulação; a hypocrisia é um adiantamento; Satanaz embolsou-o, Clubin embriagou-se de desfaçamento, pois que os homens tinham desapparecido e apenas ficara o céo. Disse comsigo: Sou um picaro! e ficou satisfeito.

Jamais houve cousa igual em uma consciencia humana.

Erupção de um hypocrita, não ha rompimento de cratera igual a esse.

Achava-se feliz por não haver ali ninguem, e não desgostaria que alguem o visse. Teria prazer em ser medonho á vista de uma testemunha.

Teria prazer em dizer ao espirito humano: és idiota!

A ausencia de homens assegurava-lhe o triunpho, mas diminuia-o.

Só elle era o espectador da sua gloria.

Ha certo encanto em estar de golilha. Toda a gente vê que és infame.

Obrigar a multidão a examinar-te é reconhecer a tua força. Um galé, sobre um estrado, com uma coleira de ferro ao pescoço, é o despota de todos os olhares que elle obriga a voltarem-se para si. Aquelle cadafalso é ao mesmo tempo pedestal. Que mais bello triumpho do que esse de ficar no centro de convergencia para a attenção geral? Obrigar o olhar publico é uma das formas da supremacia. Os que tem o mal por ideal acham no opprobrio uma auréola. Domina-se dahi. Olha-se de cima de alguma cousa. Mostra-se com soberania. Um poste, á vista de todo o universo, tem alguma analogia com um throno.

Estar exposto, é ser contemplado.

Um máo reinado tem evidentemente jubilos do pelourinho. Nero incendiando Roma, Luiz XIV tomando traiçoeiramente o Palatinado, o regente Jorge matando lentamente Napoleão, Nicoláu assassinando a Polonia em face da civilisação, deviam sentir um pouco daquella volupia sonhada por Clubin. A immensidade do despreso parece grandesa ao despresado.

Ser desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma victoria. É a ebridade, é a impudencia insolente e satisfeita, é uma nudez transportada que insulta tudo diante de si. Suprema felicidade.

Estas ideas em um hypocrita parecem contradição, e não são. Toda a infamia é consequente. O mel é fel. Escobar confina no marquez de Sade. Prova: Leotade. O hypocrita, sendo o perverso completo, tem em si os dous polos da perversidade. De um lado é padre, do outro cortezão. O seu sexo de demonio é duplo. O hypocrita é o horrivel hermaphrodita do mal. Fecunda-se a si proprio; gera-se, transforma-se. Queres vel-o formoso? olha-o; queres vel-o horrivel? vira-o.

Clubin tinha em si toda esta sombra de idéas confusas. Pouco as percebia, mas gozava-as muito.

Uma porção de faiscas do inferno attravessando a noite, era a successão dos pensamentos naquella alma.

Clubin conservou-se pensativo algum tempo; olhava para a sua honestidade com o ar com que a serpente contempla a pelle que despio.

Toda a gente acreditou naquella honestidade, elle proprio acreditou um bocadinho nella.

Deu segunda gargalhada.

Iam pensar que elle estava morto, e estava vivo. Pensavam que estava perdido, e estava salvo. Que boa caçoada á tolice universal!

E nessa tolice universal contava-se Rantaine. Clubin pensava em Rantaine com um desdem sem limites. Desdem da fuinha para com o tigre. Tinha conseguido o que falhára a Rantaine. Rantaine retirara-se enfiado, e Clubin triumphante. Tomou o lugar de Rantaine no leito da sua má acção, e foi elle quem teve a boa fortuna.

Quanto ao fucturo, Clubin não tinha plano. Possuia os bilhetes do banco na boceta de ferro atada á cintura; bastava-lhe esta certeza. Mudaria de nome. Ha paizes onde sessenta mil francos valem seiscentos mil. Não seria má solução ir para um desses lugares viver honestamente com o dinheiro apanhado ao ladrão Rantaine. Especular, entrar em um grande negocio, engrossar o capital, tornar-se seriamente millionario, também não era máo.

Por exemplo, em Costa Rica, como era o começo do grande commercio do café, podia ganhar toneis de ouro. Veria isso.

Demais, pouco importava. Clubin tinha tempo de pensar nessas cousas. O mais difficil estava feito. Despojar Rantaine, desaparecer com a Durande era o mais importante. Estava feito. O resto era simples. Não havia obstaculo possivel. Nada de temer. Não podia acontecer nada. Nadaria para a costa, abordaria a Plainmont, de noite, galgaria as rochas da praia, iria á casa mal assombrada, entraria facilmente por meio da corda de nós escondida de antemão no buraco do rochedo; acharia na casa a mala contendo roupa e viveres, dentro de oito dias lá estavam os contrabandistas de Hespanha, Blasquito provavelmente; por alguns guineos, far-se-hia transportar, não a Tor Bay, como disse a Blasco para illudir, mas a Pasages ou a Bilbáo. Dahi iria a Vera-Cruz ou a Nova-Orleans. Já era tempo de atirar-se ao mar, a chalupa estava longe, uma hora a nado era cousa nenhuma para Clubin, só uma milha o separava de terra, pois que estava no Hanois.

Neste ponto dos seus calculos, rasgou-se uma fresta do nevoeiro. O formidavel rochedo Douvres surgio aos seus olhos.