Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro VI/VII
VII.
INTERVEM O INESPERADO.
Clubin olhou espantado.
Era o medonho escolho isolado.
Não era possivel a illusão a respeito daquella configuração disforme. As duas Douvres gemeas campeavam horriveis deixando ver entre si, como uma armadilha, a garganta de que fallámos. Dissera-se um quebra-costas do oceano.
Estavam perto delle as rochas Douvres; o nevoeiro, como cumplice, escondera-as.
Clubin errara o caminho por causa do nevoeiro. Apezar de toda a attenção, aconteceu-lhe o mesmo que a dous grandes navegadores, a Gonzalez que descobrio o Cabo Branco, e a Fernandez que descobrio o Cabo Verde. A bruma desencaminhou-o. Pareceu-lhe excellente para a execução do projecto, mas tinha os seus perigos. Clubin desviou-se para o oeste e enganou-se. O passageiro guernesiano, acreditando ver o Hanois, determinou o movimento do leme final; Clubin cuidou que se atirava ao Hanois.
A Durande arrombada por um dos bancos do escolho, estava separada das duas Douvres apenas por algumas centenas de braças.
A duzentas braças mais longe via-se um massiço cubo de granito. Descobria-se nas faces escarpadas desta rocha algumas estrias e relevos apropriados para galgal-a.
Os cantos rectilinios dessas rudes muralhas de angulo recto faziam presentir no cume uma planura.
Era o Homem.
A rocha Homem era mais alta ainda que as Douvres. A sua plataforma dominava as pontas inacessiveis das duas rochas. Essa plataforma, abatendo-se pelas bordas, tinha uma cimalha e mostrava uma certa regularidade architectural. Não se podia imaginar nada mais triste e funesto. As vagas iam dobrar as suas tranquillas toalhas, nas faces quadradas daquelle enorme rochedo negro, especie de pedestal para os espectros immensos do mar e da noite.
Tudo aquillo estava mudo e morto. Havia apenas um sopro no ar e uma ruga nas ondas. Debaixo daquella superficie muda da agua advinhava-se a vasta vida afogada das profundezas.
Clubin vira muitas vezes de longe o escolho Douvres.
Convenceu-se bem que era ali as Douvres.
Não podia duvidar.
Subita e terrivel mudança. As Douvres em vez dos Hanois. Em vez de uma milha, cinco leguas do mar! o impossivel. A rocha Douvres, para o naufrago solitario, é a presença, visivel e palpavel dos ultimos momentos. É impossivel chegar á terra.
Clubin estremeceu. Tinha se mettido no goela da sombra. Não havia outro refugio além do rochedo Homem. Era provavel que a tempestade sobreviesse de noite, e que a chalupa de Durande sobrecarregada sossobrasse. Nenhum aviso do naufragio chegaria a terra. Não se saberia mesmo que Clubin ficara no rochedo Douvres. Não havia outra perspectiva senão a morte por frio e fome. Os seus setenta e cinco mil francos nem mesmo lhe davam um bocado de pão. Tudo quanto elle construira deu em resultado aquella cilada; foi elle proprio o architecto laborioso de sua emboscada. Nenhum recurso. Nenhuma solução possivel. O triumpho fazia-se precipicio. Em vez da liberdade, a captura. Em vez de um futuro prospero e longo, a agonia. De um relance esboroou-se-lhe o edificio. O paraizo sonhado por aquelle demonio retomou a sua verdadeira figura; o sepulchro.
Entretanto soprava o vento. O nevoeiro, saccudido, furado, repuxado, desfazia-se no horisonte em grandes lanhos informes. Reappareceu o mar.
Os bois cada vez mais invadidos pela agua, continuavam a berrar no porão.
Approximava-se a noite; provavelmente a tempestade.
A Durande a pouco e pouco levantada pelo mar, oscilava da direita para a esquerda, depois da esquerda para a direita, e começava a girar sobre o escolho como sobre um eixo.
Podia-se pressentir o momento em que uma vaga arrancaria o navio, e o levaria agua abaixo.
Havia menos obscuridade do que no momento do naufragio. Apezar da hora ser já avançada, estava mais claro. O nevoeiro levou comsigo uma parte da escuridão. O oeste limpou-se de nuvens. O crepusculo é um vasto céo branco. Essa vasta claridade allumiava o mar.
A Durande naufragara em plano inclinado de pôpa a prôa. Clubin trepou á prôa que estava quasi fóra da agua. Fitou no horisonte os olhos.
É proprio da hypocrisia ater-se á esperança. O hypocrita é o homem que espera. A hypocrisia é uma esperança horrivel: o fundo dessa mentira é feito desta virtude, tornada vicio.
Cousa estranha de dizer, ha confiança na hypocrisia. O hypocrita confia-se a certa indifferença do desconhecido, que consente no mal.
Clubin olhava para a extensão.
A situação era desesperada: aquella alma sinistra não desesperou.
Dizia comsigo que depois daquelle longo nevoeiro os navios conservados na bruma, á capa ou ancorados; iam continuar viagem, e algum passaria no horisonte.
E com effeito appareceu uma véla.
Vinha de leste e ia para oeste.
Appoximando-se desenhava-se o navio; tinha apenas um mastro, e estava armado em goleta. O gurupés era quasi horisontal.
Antes de meia hora devia passar por perto do escolho Douvres.
Clubiu disse comsigo: estou salvo.
Em momentos semelhantes, pensa-se primeiro na vida.
O cuter era quasi estrangeiro. Quem sabe se não era um dos contrabandistas que iam a Plainmont? Quem sabe se não era Blasquito? Nesse caso, não sómente salvava a vida como a fortuna; e o encontro do rochedo Douvres, appressando a conclusão, supprimindo a espera na casa mal assombrada, dando desfecho á aventura em pleno mar, seria um incidente feliz.
Toda a certeza do bom exito entrou freneticamente naquelle espirito sombrio.
Extranha cousa é ver com que facilidade os tratantes acreditam que devem ser bem succedidos.
Cumpria fazer apenas uma cousa.
A Durande, mettida nos rochedos, misturava a sua configuração á delles; confundia-se com os seus recortes, sobre os quaes parecia apenas um lineamento, ficava indistincta e perdida, e não bastava, com o pouco dia que havia, para attrahir a attenção da embarcação que ia passar.
Mas uma figura humana desenhando-se na alvura crepuscular, de pé na planura do rochedo Homem, e fazendo signaes de perigo, seria vista, sem duvida alguma. Mandariam um escaler para recolher o naufrago.
O rochedo Homem ficava a duzentas braças. Era simples attingil-o a nado, facil trepar por elle.
Não havia tempo a perder.
Estando a prôa da Durande sobre a rocha, era do alto da pôpa e do ponto em que estava, que Clubin devia atirar-se ao mar.
Começou por deitar um sonda, e reconheceu que havia ao pé da pôpa muito fundo. As conchas microscopicas de foraminiferos e de polydistineas que a sonda trouxe comsigo estavam intactas, o que indicava que havia alli profundas cavas de rocha, onde a agua, qualquer que fosse a agitação da superficie, era sempre tranquilla.
Despio-se, deixando as roupas no tombadilho. Acharia roupa no cuter.
Conservou apenas o cinto de couro.
Depois de despir-se, levou a mão ao cinto, apertou-o bem, apalpou a caixinha de ferro, estudou rapidamente com o olhar a direcção que devia seguir no meio dos parceis e das vagas para alcançar o rochedo Homem; depois, precipitou-se de cabeça para baixo.
Como cahio de alto mergulhou muito.
Chegou ao fundo do mar, tocou-o. Costeou alguns instantes as rochas submarinhas, depois fez um movimento para subir á superficie.
Nesse momento sentio-se aggarrado pelo pé.