Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro I/XI

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XI.


DESCOBERTA.


Um escolho proximo da costa é algumas vezes visitado pelos homens; um escolho em mar largo, nunca. Que se iria buscar ahi? não é uma ilha. Não se pode contar com vitualhas, nem arvores com fruta, nem pastos, nem animaes, nem fontes de agua potavel. É uma nueza n’uma solidão. É uma rocha, com declives fóra d’agua, e pontas debaixo d’agua. Nada se encontra ahi a não ser o naufragio.

Essa especie de escolhos que a velha lingua marinha chama os Isolados, são, como dissemos, lugares estranhos. Só ha o mar. O mar faz alli o que lhe parece. Nenhuma apparição terrestre o perturba. O homem assusta o mar; o mar desconfia delle; esconde-lhe o que é e o que faz. No escolho, está seguro; lá não vai o homem. Não será perturbado o monologo da onda. A agua trabalha no escolho, repara-lhe as avarias, aguça-lhe as pontas, eriça-o, concerta-o. Emprehende a abertura do rochedo, desconjunta a pedra mole, desnuda a pedra dura, tira a carne, deixa o osso, remeche, fura, esboraca, canalisa, põe os intestinos em communicação, enche o escolho de cellulas, imita a esponja em grande, cava o interior, esculpe o exterior.

Nessa montanha, que lhe pertence, o mar faz para si antros, sanctuarios, palacios; tem uma vegetação hedionda e esplendida; compõe-se de hervas fluctuantes que mordem e monstros que se enraizam; mette na sombra da agua essa horrivel magnificencia. No escolho isolado, ninguem o espreita, nem o incommoda; o mar desenvolve ahi a gosto o seu lado mysteriosa inaccessivel ao homem. Depõe ahi as secreções vivas e horriveis. Acha-se alli todo o ignorado do mar.

Os promontorios, os cabos, os cachopos, os arrecifes, são verdadeiras construcções. A formação geologica é pouca cousa, comparada á formação oceanica. Os escolhos, casas da vaga, pyramides da espuma, pertencem á arte mysteriosa que o autor deste livro chamou algures a Arte da Natureza, e tem uma especie de estylo enorme. Alli o fortuito parece intencional. Essas construcções são multiformes. Tem o embaraçado do polypo, a sublimidade da cathedral, a extravagancia do pagode, a amplidão da montanha, a delicadeza da joia, o horror do sepulchro. Tem velaolas como uma colmêa, latibulo como um páteo de bichos, tuneis como um combro de toupeiras, carceres como uma bastilha, emboscadas como um campo. Tem portas, mas tapadas columnas, mas truncadas, torres, mas inclinadas, pontes, mas despedaçadas. Os seus compartimentos são inextrincaveis; isto é só para os passaros; aquillo é só para os peixes. Não se passa. A figura architectural transforma-se, desconcerta-se, affirma e nega a estatica, quebra-se, detem-se, começa em archivolta, acaba em architrave; seixo sobre seixo. Encelado é o pedreiro. Uma dynamica extraordinaria ostenta alli os seus problemas resolvidos. Terriveis abobadas pendentes ameaçam cahir, mas não cahem. Ninguem sabe como se seguram estes edificios vertiginosos. Declives, lacunas, suspensões insensatas; desconhece-se a lei desse babelismo. O Ignoto, immenso architecto, nada calcula e tudo consegue; os rochedos, construidos confusamente, compõem um monumento monstro; nenhuma logica, um vasto equilibrio. É mais do que a solidez, é a eternidade. É a desordem ao mesmo tempo. O tumulto da vaga parece ter passado no granito. Um escolho é a tempestade petrificada. Nada mais impressivel para o espirito do que essa medonha architectura, sempre esboroante, sempre de pé. Tudo alli se ajuda e se contraria. É um combate de linhas donde resulta um edificio. Reconhece-se a collaboração dessas duas querellas, o oceano e o furacão.

Architectura que tem terriveis obras primas. O escolho Douvres era uma dellas.

Esse foi construido e aperfeiçoado pelo mar com um amor formidavel. Lambia-o a agua rabugenta. Era hediondo, perfido, obscuro; cheio de cavas.

Tinha um systema de veias que eram fendas submarinas, ramificando-se em profundezas insondaveis. Muitos orificios desse rasgão inextrincavel ficavam a secco nas vasantes.

Podia-se entrar então, com risco.

Gilliatt, pela necessidade do trabalho, teve de explorar todas essas grotas. Nenhuma dellas deixava de ser temivel. Em todas as cavas, reproduzia-se, com as dimensões exageradas do oceano, aquelle aspecto de matadouro e açougue extranhamente imitado do centro das Douvres. Quem não vio as excavações desse genero, na parede do eterno granito, esses horriveis frescos da natureza, não póde fazer uma idéa do que é.

Eram dissimuladas essas grotas ferozes, era inconveniente demorar-se nellas. A maré enchente invadia-as até o tecto.

Abundavam os mariscos e os fructos do mar.

Estavam cheias de seixos rolados e amontoados no fundo. Muitos pesavam mais de uma tonelada. Eram de todas as proporções e de todas as côres, a maior parte pareciam ensanguentados, alguns cobertos de filamentos pelludos e viscosos, pareciam grossas toupeiras verdes focinhando no rochedo.

Muitas dessas cavas terminavam como um forno. Outras, arterias de uma circulação mysteriosa, prolongavam-se no rochedo em fendas tortuosas e negras. Eram as ruas do golphão. Essas fendas estreitavam-se constantemente de modo a não deixar passar um homem. Um brandão aceso deixava ver obscuridades gotejantes.

Gilliatt aventurou-se uma vez numa dessas fendas. A hora da maré prestava-se a isso. Era bello dia de calma e de sol. Não havia que temer nenhum accidente do mar que pudesse complicar o perigo.

Duas necessidades como dissemos, levavam Gilliatt a essas explorações: procurar os destroços uteis, e achar lagostas para comer. Já lhe faltavam conchas nas Douvres.

A fenda era estreita e a passagem quasi impossivel. Gilliatt via claridade do outro lado. Fez esforço, espremeu-se como pôde, e entrou até onde lhe foi possivel.

Achou-se, sem pensar, no interior do rochedo da ponta do qual Clubin atirára-se da Durande. Gilliatt estava debaixo dessa ponta. O rochedo, abrupto exteriormente, e inaccessivel, era vasio no interior. Tinha galerias, poços e quartos como o tumulo de um rei do Egypto. Aquelle dedalo era dos mais complicados, trabalho da agua, infatigavel solapa do mar. As divisões daquelle subterraneo submarinho, communicavam provavelmente com a agua immensa do exterior por mais de uma sahida, umas abertas ao nivel da agua, outras profundos funis invisiveis. Perto dalli, Gilliatt nem o sabia, foi que Clubin atirou-se ao mar.

Gilliatt, naquella fisga de crocodillos, onde na verdade não havia medo de achal-os, serpenteava, arrastava-se, esbarrava, curvava-se, levantava-se, perdia o pé, encontrava o chão, avançava penosamente. A pouco e pouco alargou-se o bocal, appareceu uma meia luz, e de repente Gilliatt entrou em uma caverna extraordinaria.