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Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro I/XII

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XII.


O INTERIOR DE UM EDIFICIO DEBAIXO DO MAR.


A luz vinha a proposito.

Um passo mais, e Gilliatt estaria em uma agua talvez sem fundo. As aguas das cavas tem um tal resfriamento e uma paralysia tão subita, que lá ficam muitas vezes os mais fortes nadadores.

Demais, não havia meio de subir e agarrar ás rochas entre as quaes ficaria preso.

Gilliatt parou.

Á grota, donde elle sahira, ia ter a mesma saliencia estreita e viscosa, especie de vulcão na muralha a pique. Gilliatt encostou-se á muralha e olhou.

Estava n’uma grande cava. Tinha acima de si alguma cousa semelhante ao interior de um craneo dissecado. E parecia dissecado de fresco. As nervuras gotejantes das strias do rochedo imitavam na abobada as fibras dentadas de uma bola. Por tecto, a pedra; por assoalho, o mar; as ondas apertadas entre as quatro paredes da grota, pareciam vastos ladrilhos fluctuantes. A grota estava fechada por todos os lados. Nenhuma trapeira, nenhum respiradouro, nenhuma fenda na parede. À luz vinha debaixo atravez da agua. Era um resplendor tenebroso.

Gilliatt cujas pupillas se dilataram durante o trajecto obscuro do corredor, distinguia tudo naquelle crepusculo.

Conhecia, por lá ter ido mais de uma vez, as cavas de Plenmont em Jersey, o Croux-Maillé em Guernesey, as Boutiques em Jerk, assim chamadas por causa dos contrabandistas que alli depunham as suas mercadorias; nenhum desses maravilhosos antros era comparavel ao quarto subterraneo e submarinho onde penetrára.

Gilliatt via diante delle, debaixo da vaga, uma especie de arcada afogada. Essa arcada, ogiva natural, trabalhada pela onda, era brilhante entre as suas duas columnas profundas e negras. Era por aquelle portico submergido que entrava na caverna claridade do alto mar. Luz estranha que vinha por um buraco na agua.

Essa claridade esvasava-se debaixo da agua como um largo leque e repercutia no rochedo. Os raios rectilineos, cortados em longas fitas negras, sobre a opacidade do fundo, clareando ou escurecendo de uma anfractuosidade a outra, immilavam interposicões de laminas de vidro. Havia luz, mas luz desconhecida. Já não era a nossa luz. Podia-se crer que se estava em outro planeta. A luz era um enigma; dissera-se o verde clarão da pupilla de uma sphynge. A cava figura o interior de uma caverna enorme; a esplendida abobada era o craneo, e a arcada era a bocca; não havia buracos dos olhos. A boca engulindo e vomitando o flux e o reflux, aberta em pleno meio dia exterior, bebia a luz e vomitava o amargor.

Certos entes, intelligentes e máos, assemelham-se a isto. O raio do sol, atravessando aquelle portico obstruido de uma espessura vidrenta da agua do mar, tornava-se verde como um raio de Aldebaran. A agua, cheia dessa luz molhada, parecia esmeralda em fusão. Um reflexo de agua-marinha de incrivel delicadeza tingia brandamente toda a caverna.

A abobada com os seus lobulos quasi cerebraes e as suas ramificações semelhantes a nervos, tinha um fraco reflexo de chrysopraso. O chamalote da onda, reverberado no tecto, decompunha-se e recompunha-se constantemente, alargando e estreitando as suas rodas de ouro com um movimento de dansa mysteriosa. Sahia dalli uma impressão espectral; o espirito podia perguntar que preza ou que espera era aquella que fazia tão alegremente aquelle magnifico filete de fogo vivo. Nos relevos da abobada e nas asperidades da rocha pendiam longas e finas vegetações banhando provavelmente as raizes atravez do granito em alguma toalha de agua superior, e desbagando, nas pontas, uma gota d’agua, uma perola. Essas perolas cahiarn no golphão com um pequeno rumor. Todo esse conjuuto era inexprimivel. Não se podia imaginar nada mais lindo nem mais lngubre.

Era alli o palacio da Morte, alegre.