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Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro IV/I

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I.


QUEM TEM FOME ACHA MAIS QUEM TENHA.


Quando Gilliatt acordou teve fome.

Acalmava-se o mar. Havia porém alguma agitação ao largo, que impedia a partida immediata. Demais o dia já estava adiantado. Com o carregamento da pança, para chegar a Guernesey antes de meia noite, era preciso sahir de manhã.

Embora a fome urgisse, Gilliatt começou por despir-se, unico meio de aquecer-se.

As roupas estavam molhadas da chuva, mas a agua da chuva lavára a agua do mar, o que fez com que agora podessem sêccar as roupas.

Gilliatt apenas ficou com as calças, que arregaçou até os joelhos.

Estendeu, com pesos em cima, nas saliencias do rochedo, todo o resto da roupa.

Depois pensou em comer.

Gilliatt recorreu á faca que teve o cuidado de afiar e tel-a em bom estado, e arrancou do granito alguns mariscos. Comeu-os crús. Mas depois de tantos trabalhos, fraca era a pitança. Já não tinha biscouto. Quanto á agua, não lhe faltava. Estava mais que saciado, estava innundado.

Aproveitou a vasante para perlustrar os rochedos á cata de lagostas. Já havia muita rocha descoberta; podia apanhar boa caça.

Sómente não reflectia elle que já não podia cozer peixe algum. Se tivesse de ir ao deposito veria tudo derrubado pela chuva. O pão e o carvão estavam encharcados, e da provisão de estopa, que lhe servia de isca, não tinha um fio que não estivesse molhado. Não havia meio de saccar fogo.

De resto, o folles estava desorganisado; a tempestade saqueou-lhe o laboratorio. Com o resto da ferramenta, Gilliatt, a rigor, podia ainda trabalhar de carpinteiro, não de forja. Mas Gilliatt, naquelle momento não pensava na officina.

Empuxado pelo estomago, sem mais reflexão, entrou a procurar comida. Errava, não na garganta do escolho, mas fóra, nas dobras dos cachopos. Foi desse lado que a Durande, dez semanas antes, esbarrára nas pedras.

Para a caça que Gilliatt fazia, o exterior da viella valia mais que o interior. Os carangueijos, nas aguas baixas, tem costume de tomar ar. Aquecem-se ao sol. Amam o sol aquelles entes disformes. É uma cousa estranha a sahida delles em plena luz. Quasi indigna-se a gente com elles. Quando os vemos, com o seu aspecto obliquo, subir pesadamente, um por um, os andares inferiores dos rochedos como degráos de uma escada, acreditamos por força que o oceano tambem tem os seus piolhos.

Desses piolhos vivia Gilliatt ha dous mezes.

Comtudo nesse dia os carangueijos e as lagostas andavam escondidos. A tempestade empurrára aquelles solitarios para os seus esconderijos, e ainda não se animavam a sahir. Gilliatt tinha na mão a faca aberta, e arrancava de quando em quando uma concha debaixo do sargaço. Comia andando.

Não devia estar longe do lugar onde se perdera o Sr. Clubin.

Quando Gilliatt já se resignara aos ouriços e castanhas do mar, fez-se um movimento a seus pés. Um grande carangueijo, assustado com a presença delle tinha pulado na agua. O carangueijo não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse.

Gilliatt começou a correr atraz do carangueijo no esvasamento da rocha. O carangueijo fugia.

De repente não vio mais nada.

O carangueijo mettera-se por algum buracco debaixo do rochedo.

Gilliatt atracou-se aos relevos da pedra e esticou o pescoço para ver se via alguma cousa.

Havia com effeito uma anfractuosidade. O carangueijo devia ter-se refugiado ahi.

Era mais que uma fenda, era um portico.

O mar entrava por baixo desse portico, mas não era profundo. Via-se o fundo coberto de pedrinhas. Essas pedrinhas eram esverdeadas e revestidas de filamentos, o que indicava que nunca estavam a secco. Assemelhavam-se a cabeças de criança com cabellos verdes.

Gilliatt pôz a faca nos dentes, desceu do alto da rocha e saltou na agua. Teve agua quasi até os hombros. Metteu-se pelo portico. Achou-se num corredor gasto, com um esboço de abobada ogiva por cima. As paredes eram polidas e lizas. Já não via o carangueijo. Tomára pé. Caminhava e dimimuia-se a luz. Começou a não vêr cousa alguma.

Depois de quinze passos, cessou a abobada. Estava fóra do corredor. Havia mais espaço, e por consequencia mais luz; as pupillas tinham-se-lhe dilatado; via bem. Teve uma surpresa.

Acabava de entrar naquella cava estranha visitada por elle um mez antes.

Sómente, desta vez entrou pelo mar.

Aquella arcaria que elle vira afogada, era a mesma por onde agora passou. Em certas marés baixas era praticavel.

Os olhos iam-se acostumando ao lugar. Via cada vez melhor. Estava estupefacto. Tornava achar aquelle extraordinario palacio da sombra, aquella abobada, aquelles pilares, aquelles rubros, aquella vegetação de pedras, e no fundo aquella crypta, quasi santuario, e aquella pedra, quasi altar.

Não se lhe despertavam muito os pormenores, mas tinha no espirito a idéa do todo, e reconheceu.

Via diante delle, em certa altura, na rocha, o buraco por onde penetrou a primeira vez, e que, do ponto onde estava agora, parecia inaccessivel.

Tornava a ver perto da arcaria ogiva as grotas baixas e obscuras, especie de cavas na cava, que já observára de longe. A que ficava mais perto delle estava a secco e era facil de se lhe chegar.

Mais perto ainda que essa descobrio elle, ao alcance da mão, uma fenda horisontal no granito. Provavelmente estava alli o caranguejo. Metteu a mão o mais que pôde, e procurou ás apalpadellas naquelle buraco de trevas.

De repente sentio que lhe agarravam no braço.

O que elle experimentou nesse momento foi o horror indescriptivel.

Uma cousa que era delgada, aspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra á roda de seu braço nú, e subia-lhe para o peito. Era a pressão de uma corrêa, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma especie de espiral tinha-lhe invadido o punho e o cotovello e tocava-lhe o hombro. A ponta mettia-se-lhe no sovaco.

Gilliatt atirou-se para traz, e mal pôde fazel-o. Estava como que pregado. Com a mão esquerda que ficava livre pegou na faca que tinha entre os dentes, e com essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para saccar o braço. Só conseguio inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era flexivel como o couro, solida como o aço, fria como a noite.

Outra corrêa, estreita e pontuda, sahio do buraco da rocha. Era uma especie de lingua sahindo de uma goela. Lambeu medonhamente o corpo nú de Gilliatt, e de repente, esticando-se, desmedida e fina, applicou-se-lhe na pelle e enrolou-se no corpo. Ao mesmo tempo um soffrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava os musculos de Gilliatt. Sentia que lhe abriam a pelle em muitos pontos, de um modo horrivel. Parecia-lhe que innumeros labios, pregados á carne, procuravam beber-lhe o sangue.

Terceira corrêa sahio fóra do rochedo, apalpou Gilliatt, e chicoteou-lhe os lados como uma corda. Afinal fixou-se como as outras.

A angustia, no paroxysmo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante luz para que elle podesse ver as fórmas repellentes applicadas ao corpo delle.

Quarta ligadura, esta rapida como uma flecha, saltou-lhe em roda do ventre e enrolou-se-lhe.

Era impossivel cortar nem arrancar aquellas corrêas viscosas que adheriam estreitamente ao corpo de Gilliatt e por muitissimos pontos. Cada um desses pontos era um fogo de terrivel e estranha dôr. Era o que sentiria quem fosse engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas.

Quinta ligadura rompeu do tronco. Sobrepôz-se aos outros e foi enroscar-se no diaphragma de Gilliatt. A compressão ajuntava-se á anxiedade. Gilliatt mal podia respirar.

Aquellas ligaduras, pontudas na extremidade, iam alargando como laminas de espada para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e arrastavam-se para Gilliatt. Elle sentia deslocar-se essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas.

Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata sahio de dentro da rocha. Era o centro; as cinco ligaduras prendiam-se a elle, como raios a um eixo; ditistinguiam-se do lado opposto daquelle disco immundo o começo de outros tres tentaculos, presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade haviam dous olhos.

Olhavam elles para Gilliatt.

Gilliatt reconheceu que era uma pieuvre.