Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro IV/II

Wikisource, a biblioteca livre

II.


O MONSTRO.


Para acreditar na pieuvre é preciso tel-a visto.

Comparadas á pieuvre, as velhas hydras fazem sorrir.

Em certos momentos parece que o elemento fugitivo que fluctua em nossos sonhos, encontra na realidade imans aos quaes esses lineamentos se prendem, e dessas obscuras ficções do sonho surgem creaturas. O ignoto dispõe do prodigio e serve-se delle para compôr o monstro. Orpheu, Homero e Hesiodo só poderam fazer a chimera; Deos fez a pieuvre.

Quando Deos quer excede no execravel.

A razão desta vontade é o medo do pensador religioso.

Admittidos todos os ideaes, se o terror é um fim, a pieuvre é uma obra prima.

A baleia é enorme, a pieuvre é pequena; o hypopotamo tem uma couraça, a pieuvre é núa: a jararaca tem um silvo, a pieuvre é muda; o rhinoceronte tem um chifre, a pieuvre não tem chifre; o scorpião tem um dardo, a pieuvre não tem dardo; o macaco tem uma cauda, a pieuvre não tem cauda; o tubarão tem barbatanas cortantes, a pieuvre não tem barbatanas; o vespertilio-vampiro tem azas com unhas, a pieuvre não tem azas; o porco espinho tem espinhos, a pieuvre não tem espinhos; o espadarte tem um gladio, a pieuvre não tem gladio; o torpedo tem um raio, pieuvre não tem raio; o sapo tem um virus, a pieuvre não tem virus; a vibora tem um veneno, a pieuvre não tem veneno; o leão tem garras, a pieuvre não tem garras; o gypoéte tem um bico, a pieuvre não tem bico; o crocodilo tem uma guela, a pieuvre não tem dentes.

A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem cauda, nem barbatanas, nem azas, nem espinhos, nem espada, nem descarga electrica, nem virus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é de todos os animaes o mais formidavelmente armado.

O que é então a pieuvre? É a ventosa.

Nos escolhos em pleno mar, onde a agua mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconhecidas aonde abundam as vegetações, os crustaceos e as conchas, debaixo dos profundos porticos do occeano, o nadador que se arrisca, arrastado pela belleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro não sejas curioso, foge. Entra-se fascinado, sahe-se apavorado.

Eis o que é esse encontro sempre possivel nas rochas do mar alto.

Uma fórma cinzenta oscilla n’agua, da grossura de uma braça e de meia vara de comprido; é um trapo; essa fórma assemelha-se a um guarda-chuva sem capa; a pouco e pouco o trapo caminha para o homem. De repente abre-se, oito raios sahem bruscamente da roda de uma face que tem dous olhos; esses raios vivem; flammejam ondeando; é uma especie de roda desenrolada, tem quatro ou cinco pés de diametro. Desentolamento medonho. Atira-se ao infeliz.

A hydra harpôa o homem.

Este animal applica-se á sua presa, cobre-a, envolve-a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é terrea; nada póde imitar esse inexplicavel matiz de poeira; dissera-se um animal feito de cinza, e morando n’agua. É arachnida pela fórma, e cameleão pelo colorido. Irritada, torna-se roxa. Cousa horrivel, é flacida.

Os seus nós garroteara; o seu contacto paralysa.

Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a molestia feita monstruosidade.

Não se póde arrancal-a; agarra-se estreitamente á sua presa; como? Pelo vacuo.

As oito antenas largas na origem, vão estreitando-se e terminam como agulhas: debaixo de cada uma dellas alongam-se parallelamente duas filas de pustulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fila tem vinte e cinco. Ha cincoenta pustulas em cada antenna, e todo o animal tem quatrocentas. Essas pustulas são ventosas.

As ventosas são cartilagens cilyndricas e lividas. Na grande especie vão diminuindo de diametro—desde uma moeda de cinco francos até á grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos sahem e entram no animal. Podem metter-se no corpo de um homem mais de uma pollegada.

Este apparelho de sucção tem a delicadeza de um teclado. Levanta-se, esconde-se. Obedece á menor intensão do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam á contractibilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. Este dragão é uma sensitiva.

Este monstro é aquelle que os marinheiros chamam polvo, que a sciencia chama cephalopode, e a que a legenda chama kraken. Os marinheiros inglezes chamam-no devil-fish, o peixe diabo. Chamam-no tambem blood-sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam-na pieuvre.

É muito rara em Guernesey, muito pequena em Jersey, muito grande e frequente em Serk.

Uma estampa da edição de Buffon por Sonnini representa um cephalopode estreitanto uma fragata. Dionizio Monfort pensa que na verdade o polvo das altas latitudes póde metter um navio a pique. Bory Saint-Vincent nega-o, mas attesta que nas nossas regiões o polvo attaca o homem. Quem for a Serk verá perto de Brecq-Hou o buraco do rochedo onde uma pieuvre ha annos agarrou, reteve e affogou um pescador de lagostas. Peron e Lamarck, enganam-se quando duvidam que o polvo não tendo barbatanas possa nadar. Aquelle que escreve estas linhas, vio com seus proprios olhos em Serk, na cova das Lojas, uma pieuvre perseguir a nado um homem que tomava banho. Foi morta e medida; tinha quatro pés inglezes de largura e pôde-se contar quatrocentos chupadores. O bicho agonisante atirava-os para longe de si convulsamente.

Segundo Dionizio Montfort, um desses observadores, cuja alta intuição faz descer ou subir até o magismo, o polvo tem quasi as paixões de homem; o polvo odeia. E no absoluto ser hediondo é odiar.

O disforme debate-se debaixo de uma necessidade de eliminação que o torna hostil.

A pieuvre nadando conserva-se por assim dizer na bainha. Nada com as antennas fechadas. Imaginem uma manga cozida com um punho dentro. Esso punho, que é a cabeça, impelle o liquido e avança com um vago movimento ondulatorio; os dous olhos, embora grandes, são pouco distinctos por serem da côr da agua.

A pieuvre quando espreita caça esquiva-se; diminue-se, condensa-se; reduz-se á mais simples expressão. Confunde-se com a penumbra. Parece uma dobra de vaga. Assemelha-se a tudo, excepto a cousa viva.

A pieuvre é o hypocrita. Não se rapara nella; repentinamente abre-se.

Que ha ahi de mais medonho que isso; uma viscosidade com uma vontade! O viscoso amaçado de odio.

É no mais bello azul d’agua limpida, que surge essa hedionda estrella voraz do mar. O que é terrivel, é que não se sente de longe. Quando a gente a vê, já está agarrada.

Comtudo á noite, e particularmente na estação do desejo, a pieuvre é phosphorica; aquelle pavor tem os seus amores. Aguarda o hymeneu. Faz-se bella, illumina-se, e do alto de algum rochedo, póde-se vel-a nas profundas trevas aberta n’uma irradiação, sol espectro.

A pieuvre anda; tambem nada. É um tanto peixe e um tanto reptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utilisa as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.

Não tem osso, nem sangue e nem carne. É flacida. Não tem nada dentro. É uma pelle. Póde-se virar-lhe os tentaculos de dentro para fóra, como dedos de uma luva.

Tem um só orificio no centro dos oito raios.

É fria toda ella.

Repelente bicho, é um do mediterraneo. É um contacto hediondo, essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se pucha sem tirar, especie de creatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos; mas nada iguala a subita apparição da pieuvre, Medusa servida por oito serpentes.

Não ha aperto igual ao do cephalopode.

É uma machina pneumatica que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes; uma scarificação indisivel. Uma mordedura é temivel; é menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra, é o animal que entra na carne; a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os musculos, torcem-se as fibras, rebenta a pelle, debaixo de um peso immundo, jorra o sangue, mistura-se horrivelmente á limpha do mollusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames; a hydra iucorpora-se ao homem; o homem amalgama-se á hydra. Ficam sendo um só. Pesa aquelle sonho. O tigre póde apenas devorar; o polvo (horror!) aspira. Pucha o homem a si e em si, e, atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvasiado naquelle terrivel sacco, que é um monstro.

Além do terrivel, que é ser comido vivo, ha o inexprimivel, que é ser bebido vivo.

Essas estranhas animações são ao principio regeitadas pela sciencia, segundo o habito de sua excessiva prudencia; depois estuda-os, descreve-os, classifica-os, inscreve-os, põe-lhes rotulos, procura exemplares; expõe-nos em museos; elles entram na nomenclatura; ella os qualifica molluscos, invertebrados, raiados; verifica-lhes as fronteiras; um pouco além os calmares, um pouco aquem os depiarios; para estas hydras da agua salgada acham um analogo na agua doce, o argyronete; divide-as em grande, media e pequena especie; admitte mais facilmente a pequena especie que a grande, o que é, em todas as regiões, a tendencia da sciencia, a qual é mais microscopica que telescopica; olha a sua construcção e chama-os cephalopodes; contam-se as suas antennas e chama-os octopedes. Feito isto, deixa-os assim. Onde a sciencia os larga, a philosophia os retoma.

A philosophia estuda por sua vez esses entes. Ella vae menos longe e mais longe que a sciencia. Não os disseca, medita-os. Onde o scalpello trabalhou, immerge a hypothese. Procura a causa final. Profundo tormento de pensador. Essas creaturas o inquietam quasi sobre o creador. São as sorprezas hediondas. São os perturbadores do contemplativo. Elle as verifica desvairado. São as formas intencionaes do mal. Que fazer diante dessas blasphemias da creação contra si propria? A quem deve elle queixar-se?

O possivel é uma matriz formidavel. O mysterio concreta-se em monstros. Lanhos de sombra sahem deste penedo,—a imminencia,—rasgam-se, destacam-se, rolam, fluctuam, condensam-se, enchem-se do negrume ambiente, recebem as polarisações desconhecidas, tomam vida, compõem uma forma com a obscuridade e uma alma com o miasma, e vão-se, larvas, atravez da vitalidade. É alguma cousa semelhante ás trevas feitas animaes. Porque? para que? Volta a questão eterna.

Esses animaes são fantasmas e monstros, a um tempo. São provados e improvaveis. Ser, é o facto, não ser, é o direito. São os amphibios da morte. A sua inverosimilhança complica a sua existencia. Tocam a fronteira humana e povoam o limite chimerico. Negaes o vampiro, apparece a pieuvre. É uma certeza que desconcerta a nossa segurança. O optimismo, que é a verdade, perde-se quasi diante delles. São a extremidade visivel dos circulos negros. Marcam a transição da nossa realidade a outra. Parecem pertencer a esse começo de entes terriveis que o sonhador entrevê confusamente na noite.

Esses prolongamentos de monstros, no invisivel, no principio, no possivel depois, foram suspeitados, vistos talvez, pelo extasis severo, e pelo olhar fixo dos magos e dos philosophos. Dahi a conjectura de um inferno. O demonio é o tigre do invisivel. A besta feroz das almas foi denunciada ao genero humano por dous visionarios, um que se chama João, outro que se chama Dante.

Se com offeito os circulos da sombra continuam indefinidamente, se depois de um annel ha outro, se isto vai em progressão illimitada, se existe a cadêa, de que estamos resolvidos a duvidar, é certo que a pieuvre numa extremidade prova Satanaz na outra.

É certo que o mal n’um limite prova a maldade no outro.

Todo o animal feroz, como toda intelligencia perversa, é sphynge.

Sphynge terrivel, propondo o enigma terrivel. O enigma do mal.

Essa perfeição do mal é que faz inclinar ás vezes os grandes espiritos para a crença do Deos duplo, para o tremendo bifronte dos manicheos.

Uma rede chineza, roubada na ultima guerra, no palacio do imperio da China, representa o tubarão comendo o crocodilo, o qual come a serpente, a qual come a aguia, a qual come a andorinha, a qual come a lagarta.

Toda a natureza devora ou é devorada. As prezas mastigam-se umas ás outras.

Entretanto os sabios que tambem são philosophos, e por consequencia benevolos para a creação acham ou acreditam achar a explicação disto. O fim destas cousas apparece, entre outros, a Bonnet de Genebra, aquelle mysterioso espirito exacto, que foi opposto a Buffon, como mais tarde Geoffroy Saint-Hilaire o foi a Cuvier. A explicação dizem ser esta: a morte exige a inhumação. Esses vorazes são coveiros.

Todas as creaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnivoro, tambem é a lei terrifica. Somos sepulchros.

No nosso mundo crepuscular, esta fatalidade da ordem produz monstros. Perguntais: Porque? É por isto.

Será isto a explicação? Será esta a resposta? Mas então porque não será outra a ordem? Reapparece a questão.

Vivamos, seja.

Mas façamos com que a morte nos seja progresso. Aspiremos aos mundos menos tenebrosos.

Sigamos a consciencia que nos leva para lá.

Porquanto, não o esqueçamos nunca, o preferivel só é achado pelo melhor.