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Osmîa/Acto IV

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ACTO IV.
 
SCENA I.
 
ELEDIA, e PROBO, que entraõ da parte eſquerda do Theatro.
 

Eledia. NA verdade bem pouco te merece
A miſera Princeza em tanta anguſtia.

Probo. Mal me pagas tu meſma tanto exceſſo,
Quanto fiz por haver de contentalia.
Naõ te baſta ſaber que o campo todo
Tem por certa a noticia? naõ te baſta
Dizer-te que nem Manlio já duvída
De Rindaco ſer morto?

Eledia. Que m'importa
O que diz o Queſtor? O campo todo
Que fé póde fazer-nos? os Romanos
Aſſáz conta acharáõ em que ſe espalhe
A voz de lhes faltar hum tal contrario.
Acreditar de leve naõ coſtuma
Oſmîa: O meſmo Lelio, que pertende
Da morte perſuadir-nos, naõ ſe eſquece
De notar que os Legados lha calaraõ.
He-nos preciſo, Probo, he-nos preciſo
Examinar nós meſmas a noticia,
D'um dos noſſos ſequázes.

Probo. Se iſſo baſta
Hum Vetaõ, podes crer-me, tanto affirma.

Eledia. Pois eſſe, eſſe Vetaõ he que devêras,
Conduzir-nos aqui. Deſeja Oſmîa
Per ſi meſma appurar hoje a verdade;
De ti confia tudo: o tempo he pouco;
Se o deixamos perder, quem ſabe quando
Poderemos achallo taõ propicio?

Probo. Debalde em mim naõ poem a confiança.
Naõ te affaſtes daqui, que pouco tardo.

Eledia. Aqui te eſperarei.

SCENA II.
 
ELEDIA.
 

Eledia. AH! naõ permittaõ,
Nao permittaõ os Deoſes que eſte encontro,
Fatal nos venha a ſer! Naõ ſei que eſpanto,
Que eſtranho aſſombramento eſta alma occupa!
D'Oſmîa a ſorte eſcaça m'inquieta.
Sé de Rindaco o Fado hoje s'apura;
Se a morte decepou ſeus claros dias:
Qual póde ſer o effeito que nao cuſte
Novo terror á mente já ferida
D'eſpantoſos preſſagios?...

SCENA III.
 
ELEDIA, e PROBO apreſſado.
 

Probo. CHama Eledia
Depreſſa a tua Princeza, felizmente
Encontrei o Vetaõ; mas curto eſpaço
De fallar-lhe terá. Naõ venci pouco
Para poder aſſim ſatisfazella. Eledia parte.

SCENA IV.
 
PROBO, o VETAÕ, que apparece quando PROBO o chama.
 

Probo. [1] VEtaõ!... para aqui chega, nem te affaſtes
Hum ſó paſſo daqui. Naõ tarda Oſmîa,
Podes livre fallar-lhe; mas debalde
Hum tempo precioſo naõ conſummas.
De Rindaco ſaber quer o deſtino,
Sem iſſo naõ ſocega. Até receio,
Que ao confirmar-ſe a morte do Conſorte,
Naõ poſſa reſiſtir. Quando eu lhe diſſe
Quanto ouvi referir-te, apenas pude
Julgar que reſpirava: vê ſe podes
Conſolalla, Vetaõ, e perſuadilla
A partir com os ſeus.

Vetaõ. [2] E perſuadilla
Julgas tu neceſſario? naõ reſpondes?
Probo. Não ſei que te reſponda; não tranſpira
Do coração d' Oſmîa algum ſegredo.
Pelo Eſpoſo ſómente ſe intereſſa,
E dezaſocegada naõ decide.

Vetaõ. E ſe ſabe que he morto, entaõ naõ parte?
Tanto naõ digo, bem que aſſáz o temo.
He grande a ſua virtude, mas naõ menos
He delicado, he perigoſo o ponto.

Vetaõ. Explica-te millor...

Probo. Que parta Oſmîa,
Romanos, e Vetoens verás contentes. Parte.

SCENA V.
 
O VETAÕ ſó.
 

Vetaõ. NAõ he pouco s'Oſmîa ainda encontramos
Ao Conſorte leal. Só s'inquieta,
Só pergunta por elle. E que! naõ ſabe
Que naõ podéra Rindaco ſoffrer-lhe,
Que hum ſó momento ſe eſqueceſſe delle?
Quanto empenho moſtrou por conſeguilla,
Lhe deve estar preſente: nem ignora
Que s'entre os mais naõ foſſe preferido,
No ſangue do rival vira alagado
O Thero infauſto... e no ſeu meſmo ſangue
A ingrata ſubmergira com ſeus Póvos
Ah! jámais ſem vingança hum Vetaõ ſoffre
O dezar de ſe ver dezattendido.
Ou foſſe gratidaõ, ou ſó prudencia
Foi Rindaco eſcolhido; e no ſeu peito
Quem ha que jámais viſſe amortecer-ſe
Eſſe ardor, que por ella s'ateára?
Combater, deſtroçar immenſos Póvos,
Só para ás leis d'Oſmîa ſubmetêllos,
He toda a ſua ambiçaõ. Quem naõ deſcobre
No reſgate propoſto a generoſa,
Occulta maõ de Rindaco excitando
A coragem dos Póvos ſuffocada.
Tempo virá, nem tardará já muito,
Em que Oſmîa conheça que devidas
Saõ as lagrimas ſuas ao Conſorte.
Naõ, naõ; de mais naõ faz ſe s'anguſtia.
De mais... quanto inda deve?... e porque tarda?
Ah! [3] que infiel talvez s' encontra Oſmîa!

SCENA VI.
 
OSMÎA, e o VETAÕ; eſte quando OSMÎA chama, volta do acto de deſeſperaçaõ, em que ſe conſervava, ſem attender ao que ſe paſſava no Theatro.
 

Oſmîa. [4] QUe voz!... Oh! Ceos que tom de voz
eſcuto ?
Os paſſos...a figura... hum ſentimento
Interior... Veraõ! [5] ah!...

Vetaõ. Oſmîa Oſmîa.
Mas que eſtranho veſtir!
[6] Que! tu ſopportas
Tamanha humiliaçaõ! Tu minha Eſpoſa!

Oſmîa. Conſorte... quanto poſſo... Naõ ſei como...

Vetaõ. Oſmîa ſe confunde!... [7]

Oſmîa. Quando afflicta
Temia ouvir a nova confirmar-ſe
(Nova fatal) de feres falecido...

Rindac. [8] Pois ſe vivo me vez, que te perturba?
Senaõ he que inda hum reſto de virtude
Contra eſſe eſtranho traje em ti relucta.
Falla; naõ me reſpondes?

Oſmîa. Melhor tempo
Teremos de fallar; partamos logo,
Sim, partamos, Eſpoſo. A forte amiga
Salvou-te, e conduzio-te em meu ſoccorro
No ponto delicado: naõ ſubiraõ
Os meus votos de balde ao Ceo piedoſo.

Rindac. Eu naõ venho roubar-te. Inda os Romanos
A deciſaõ naõ déraõ.

Oſmia. Dependia
O ponto de mim ſó. Ao Pretor mando
A certeza de haver-me reſolvido. [9]

Rindac. Eſpera, eſpera e tu porque reſolves
Em negocio, que a Roma ſó pertence?

Oſmîa. Naõ he melhor, Eſpoſo, que partamos?
Naõ pondéras, Senhor, que eſtás expoſto
Ao perigo de ſer reconhecido
Como falſo Legado? Ah! que hum tal crime
Levemente naõ fôra em ti punido.

Rindac. Eu Legado naõ ſou, nem tenho crime
Senaõ o de ſoffrer que me retardes
A reſpoſta de tudo o que t'inquiro.

Oſmîa. Salvemo-nos, depois...

Rindac. Depois! agora,
Agora meſmo quero ſaber tudo.
A tua confuzaõ, teu ſobreſalto
Aſſáz, aſſáz me dizem; mas eu quero
Da tua boca ouvillo.

Oſmîa. Ceos que eſtranha,
Que barbara afflicçaõ!

Rindac. [10] Senaõ te explicas...

Oſmîa. Eu me explico, Senhor, mas naõ te irrites
Sem de todo m'ouvir: Depois, a morte
Se queres, podes dar-me: Eu meſma a peço;
Eu a deſejo, Eſpoſo.

Rindac. [11] E como? a morte!
Oſmîa a pede? [12] Oſmîa pois culpada..

Oſmîa. Socega-te, Senhor, naõ ſou culpada;
Mas do crime a apparencia me perturba.

Rindac. Acaba, d'uma vez me raſga o peito.
Oſmîa. O

Oſmîa. Pretor... tem moſtrado que ſe agrada...

Rindac. De ti! (oh raiva!) e tu?...

Oſmîa. Eu... naõ te nego...
Naõ te nego, Senhor, que ſeus cortezes,
Seus termos generoſos mi'obrigáraõ.

Rindac. Dize qne o amas, e que por amallo
Até deſſe vil traje te carregas.

Oſmîa. Naõ, Rindaco; melhor conhece Oſmîa,
Eſte traje infeliz, que tanto peza
Sobre a minha virtude, foi o preço
Porque alcancei de Lelio que habitaſſe
Comigo a ſábia Eledia: ſeus conſelhos,
Seus rigidos coſtumes quiz ao lado,
Quando a ſorte de ti me ſeparava.

Rindac. E Eledia he teſtemunha de teus paſſos?

Oſmîa. Hoje Eledia alcancei. O Pretor moſtra
Querer aqui deter-me; mas podendo
Recuſar o reſgate, quer que eu meſma
Em liberdade a deciſaõ profira
Na ignorancia fatal do teu deſtino
A reſpoſta dilata; os Ceos quizeſſem
Que nem hum ſó inſtante a differiſſe!
No momento porém... (oh Deos!)

Rindac. Que dizes?

Oſmîa. Tudo o que n'alma tenho; e tu repara
Que generoſa, e firme to declaro.
Neſſe triſte momento em que a noticia
Da tua morte, Senhor, s'acreditava
Menos cauta..

Rindac. Inſolente!

Oſmîa. Menos cauta,
Ao Pretor deixei ver que a ſua virtude
Sobre o meu coraçaõ imperio tinha.
Infiel naõ te fui; ſou deſgraçada.
Tudo, Rindaco, ſabes, ſó nos falta
Partir-mos já daqui.

Rindac. Partir, Oſmîa!
Sem que eu poſſa vingar-me?

Oſmîa Oh! Ceos, que eſcuto!
Pois ſe vingar-te julgas neceſſario, [13]
Com eſſas fortes mãos, Senhor, bem podes
A vida ſuffocar-me na garganta,
E ſe hum ferro te falta... toma, aperta. [14]

Rindac. Que dizes (infeliz) nem já percebes,
Que huma occulta vingança... huma tal mancha
Com ſangue eu lavarei... mas ſangue, Oſmîa, [15]
Que toda a mancha lave.

Oſmîa. E que outro ſangue
Póde a mancha lavar, que o meu naõ ſeja?
Se a culpa em mim reſide... ſe eu ſou cauſa...

Rindac. Eu naõ decido, Oſmîa, ſe tens culpa:
Se tanto imaginaſſe; mas... naõ quero
Eu meſmo dar calôr á ſanha crûa,
Que o coraçaõ começa a devorar-me.
Se innocente pertendes que te julgue,
Dá-me a prova tu meſma. Occulto ferro,
Oſmîa, trago aqui [16] toma, e repara...
Que hum Eſpoſo aggravado de ti fia
Huma vingança digna de ti meſma.
Chama o Pretor.

Oſmîa. Que dizes? eu chamallo!
Ah! Conſorte naõ queiras arriſcar-me
A que de mim ſe diga huma baxeza.

Rindac. Se de Rindaco és digna hum ſó momento,
Te faraõ injuſtiça. Perca a vida
A's mãos daquella meſma a quem ſe atreve.

Oſmîa. Mas taõ feia traiçaõ! taõ negro opprobrio
Sobre mim cahirá! Salva-me, Eſpoſo,
Depois em campo razo te prometto
Combatello valente, abrir-lhe o peito,
Farpar-lhe o coraçaõ, deſpedaçallo.
A viſta das Cohortes en combate
Singular, que de gloria me corôe
E a teus olhos, em fim, me deſaffrontem.

Rindac. Naõ me enganas, Oſmîa.

Oſmîa. Eu enganar-te!
Salvar quero a tua gloria, e quero a minha.

Rindac. Mas o modo me toca.

Oſmîa. Naõ me atrevo.

Rindac. Naõ te atreves, ingrata? Pois eu meſmo
Direi que o chamas tu, e quando venha
(Repara que eu to mando) has de cravar-lhe
No peito eſte punhal!.

Oſmîa. [17] Que atrocidade!
Ah, Senhor! tu nao vês que o teu projecto
Hum diluvio de males precipita Sobre os noſſos Vetoens, e Turdetanos?
Aſſim pagarei eu o generoſo
Esforço, que elles fazem por ſalvar-me?
Com eſſe horrendo, abominavel golpe,
Eu meſma os farei victimas votadas
Ao furor vingativo dos Romanos.
Ah! reflecte e retrata o que me ordenas.

Rindac. Tenho alcançado, infame! que me offendes...
Que és indigna do ſangue Turdetano:
E pois que aſſim recuſas o vingar-me,
Bem pouco tardará que o mundo ſaiba
Quem eu ſou... quem tu és...

Oſmîa. Aſſáz conhece
A Luſitania toda quem nós fomos.
Sempre Oſmîa incapaz d'uma baxeza
O mundo julgará. Vulgar virtude
Meu peito nao reſpira. Sou eu meſma
Quem ſevéra me julgo. A mim primeiro,
Do que a ti me he preciſo ter contente.
A ti poſſo enganar-te, a mim naõ poſſo.
Guardo o ferro... e eſte ferro (naõ duvídes)
Ha de o Templo da Gloria franquear-me. [18]

Rindac. E's minha Eſpoſa, e baſta: reconheço
A virtude que exaltaõ os Romanos.
Eſcuta pois, Oſmîa, e treme em tanto
D'infringir o preceito que t'imponho,
E do ſegredo as ſantas Leis reſpeita.
Nas floreſtas vizinhas eſcondidos
Tenho de meus Vetoens os mais conſtantes
Generoſos Guerreiros; ſe o reſgate
Me foſſe recuſado, d'improviſp
Sobre o Romano campo ſe lançáraõ,
E o raivoſo furor d'aſpera vingança
Te arrancaria, Oſmîa, de ſeus laços.
Nova cauſa m'impelle a minha affronta
D'uma rouca buzina o ſom medonho,
O furor ſoltará dos emboſcados:
Triunfaremos, Oſmîa, o Pretor chamo;
Satisfaça c'o a vida meus ultrajes.
Mas ſe o golpe retardas, vê que a minha,
E a tua meſma vida ſacrificas.

Oſmîa. Differe ao menos o fatal momento.

Rindac. Naõ: demóras naõ ſoffro: a meu preceito
Obedece, ſe queres que te julgue
Digna do ſangue meu, e do teu ſangue. Parte.

Oſmîa. Que preceito! que Lei! que atrocidade!... Parte.

Fim do Acto IV.

  1. No fundo do Theatro chamado para o boſque.
  2. Inquieto.
  3. Retirando-ſe apaixonado para o fim do Theatro
  4. Obſerva o Vetaõ
  5. Volta Rindaco, e corre a abraçar Oſmîa.
  6. Tendo-a nos braços.
  7. Affaſta-a de ſi com deſabrimento.
  8. Interrompe-a com impaciencia.
  9. Em acto de partir.
  10. Indignado.
  11. Com aſſombro.
  12. Com indignaçaõ.
  13. Deſatando a cinta, com a qual em quanto diz os tres verſos ſeguintes, dá huma volta á roda da garganta; e ditos elles, entrega huma ponta da cinta a Rindaco, ficando com outra na maõ.
  14. Rindaco lança maõ da faxa com huma eſpecie de furor, que naõ deixa perceber o ſeu intento.
  15. Desfaz o laço, ſem tirar a faxa.
  16. Rindaco tira hum punhal, que apreſenta a Oſmîa, a qual naõ lança maõ delle ſenaõ no lugar notado.
  17. Aceita o punhal.
  18. Guarda o ferro.