Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/8

Wikisource, a biblioteca livre
8
A esperança

 

Amores invisiveis

 

(A' memoria d'um condiscipulo)

Ha certas almas, cuja tristesa scismadora parece o presentimento vago d'uma curta existencia n'este mundo. Apparições d'um dia, caminham de fronte curvada para a terra, como a procurarem alli um tumulo onde se escondam.

Eu conheci um moço assim, bom como um santo, intelligente como um anjo e triste como um poeta.

Na pallidez suave d'aquelle rosto sympathico havia o signal mystico dos filhos da tristeza, um veu de melancolia atravez do qual se estava divisando o anjo da morte, como a luz frouxa d;um sacrario atravez das cortinas leves d'um templo.

Tinha apenas vinte e duas primaveras aquelle corpo fragil quando o tufão mysterioso da noite atirou com elle, despedaçando-o, sobre a pedra d'um tumulo.

Parece que ainda lhe estou vendo aquelle sorriso triste e resignado, que n'elle tanto era a expressão dos seus poucos jubilos como a manifestação dos seus pezares. Sorria-se sempre, o pobre moço, como se tivesse a certesa de não ter tempo de alcançar aqui muitas alegrias, como se não quizesse sulcar as faces com o fogo d'uma lagrima para as apresentar puras de toda a macula terrena ao beijo fatal da morte que lhe estendia os braços.

A ultima vez que lhe apertei a mão foi no jardim de S. Lazaro, por um bello domingo de primavera. Estava elle scismando, poeta do coração, a escutar não sei que muzicas da Norma, que uma banda marcial executava na outra extremidade do jardim. O espirito de Bellini, fluctuando n'aquellas harmonias, parecia ter vindo pousar de manso e espalhar-se como um fluido impalpavel por aquelle rosto pensativo e melancolicamente inclinado para o peito.

Dias depois partiu para Villa Real, sua patria, e alguns mezes mais tarde, aquelle namorado da morte, recebia no leito nupcial d'um tumulo, o primeiro beijo da sua mysteriosa amante.

A' hora do sol posto, um poeta, seu conterraneo, Custodio José Duarte, foi escrever sobre a pedra raza do triste scismador estes versos:

 

O' virgens que passaes baixando os olhos castos,
frontes que andaes seismando em uma aurora nova,
vêde que procuraes inda que andeis de rastos
o ouro fino de lei perdido n'esta cova.

E tu, poeta, e tu que vaes na hora
do occaso meditar das florestas na calma,
detem-te aqui um pouco e estuda este poema:
se em flor se torna o corpo, em que se torna a alma?..

Vós que um anjo acompanha ao lado todo o dia,
tu que ao bello sómente o canto has consagrado,
gó eleitos do Senhor!.. ó innocencia, ó poesia,
elle era vosso irmão... beijai-lhe o pó sagrado.

 

Effectivamente n'aquella alma, que se voara, sequiosa de luz e amores, para o seio do Senhor, havia a dupla aureola da virgem e do poeta; participava d'uma pela sensibilidade delicada e fragil, e do outro pela intelligencia intuitiva e pela melancolia scismadora.

E' sempre ephemera e curta a vida terrena d'estes exilados do céo; matam-nos as saudades da patria.