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A CIDADE E AS SERRAS

Oh! mas decerto eu a lera, corridamente, com a alma desatenta! E insistia em me iniciar, ele, e me conduzir, através do Livro sem igual. Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava por consentir, e me estirava no canapé de verga. Ele, diante da mesa, direito na cadeira, abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava numa lenta ode sentida. Aquele grande mar da Odisseia, — resplandecente e sonoro, sempre azul, todo azul, sob o voo branco das gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a areia fina ou contra as rochas de mármore das Ilhas divinas, — exalava logo uma frescura salina, bem-vinda e consoladora naquela calma de Junho, em que a serra se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulisses e os seus perigos sobre-humanos, tantas lamúrias sublimes e um anseio tão espalhado da Pátria perdida, e toda aquela intriga, em que embrulhava os heróis, lograva as Deusas, iludia o Fado, tinham um delicioso sabor ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de subtileza ou de engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança imutável com que cada manhã sempre o Sol igual nascia, e sempre centeios e milhos, regados por águas iguais, seguramente medravam, espigavam, amadureciam... Embalado pela recitação grave e monótona do meu Príncipe, eu cerrava as pálpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, por Terra e Céu, me alvoroçava... E eram os rugidos de Polifemo, ou a grita dos companheiros de Ulisses roubando as vacas de Apolo. Com os olhos logo esbugalhados para Jacinto, eu murmurava: Sublime! E sempre, nesse momento o

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