Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020
Em geral, interpreta-se que se trata dos deuses descendentes de Tiámat e Apsu, que é o primeiro (reštû). Contudo, em termos gramaticais, considerando-se o valor anafórico dos possessivos, seria de esperar que remetessem a algo ou alguém já dito, os únicos dois elementos até então nomeados sendo o firmamento (šamāmū) e o solo (ammatum). Assim, conforme George,
- essa passagem afirma que, antes que houvesse céu e terra, existiam duas massas de água: 'Apsû (água do solo) e Tiamat (mar). Essas águas são, respectivamente, masculina e feminina, e identificadas como os pais do 'firmamento' e da 'superficie sólida'. Estes últimos são expressões literárias para 'céu e terra'. Assim, as mais antigas estruturas no universo, Firmamento e Terra, foram criação da água. (GEORGE, 2016, p. 19)
Como, todavia, o Enūma eliš é uma teogonia, as duas expressões — "gerador deles" (zārūšun[u]) e "procriadora da totalidade deles" (mu´allidat gimrišun[u]) – poderiam ser entendidas como antecipação do que será referido a partir de dois versos depois, os deuses que se criaram no "seio deles" (gerebšun[u]), como propõe Talon: "os versos 3-4 anunciam, pelos sufixos šun(u) a geração dos deuses. O leitor sabe que de Tiámat e de Apsu nascerão os deuses. Esses dois versos dirigem-se a ele" (TALON, 1992).
Apsû é o primeiro deus de que o poema narra a saga. O acádio Apsû é um empréstimo do sumério 'ab.zu' (= ZU.AB), que designa a massa de água doce que há sob a terra, donde procedem as fontes e os rios, termo composto de 'ab' ('aba'), 'lago', 'mar', e 'zu' ('sú'), 'sabedoria', 'conhecimento' (cf. o verbo 'zu', 'conhecer', 'entender', 'ensinar'). Trata-se da residência do deus Enki (em acádio Ea), especialmente relacionado com o conhecimento, de sua mãe, Nammu, de sua esposa, Damgalnuna (Dámkina), além de outras divindades que se encontram sob o governo do primeiro.
Apenas no Enūma eliš se apresenta Apsu como um deus que realiza ações antropomórficas, gerando filhos, arrependendo-se disso,