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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

informação provavelmente procedente de Eudemo de Rodes, discípulo de Aristóteles—, acreditava que Múmmu fosse o primeiro filho de Apsu e Tiámat: "dentre os bárbaros, os babilônios parecem ter deixado em silêncio o princípio único do todo para postular dois, Tauthé [isto é, Tiámat] e Apason [Apsu], fazendo de Apason o marido de Tauthé e chamando esta última mãe dos deuses, dos quais nasceu um filho unigênito, Mumin, sendo ele, creio, o mundo inteligível procedente dos dois princípios" (DAMASCIUS, Sobre os princípios 125, 1).

Tiāmat é a forma absoluta (status absolutus ou estado indefinido) de Tiāmtu ou tâmtu, termo feminino com o significado de 'mar'. Nos manuscritos, como anota Lambert, seu nome aparece em diferentes formas, que os editores normalizam como Tiāmat. Diferentemente do que ocorre com Apsu, de etimologia desconhecida, Tiámat deriva da raiz semítica tḫm, presente tanto no hebraico teḫôm (o abismo primevo de águas referido em Gênesis 1,1: "A terra era vaga e vazia, e trevas sobre o teḫom"), como também no ugarítico tḫmt (na expressão grm wthmt, 'montanhas e abismo de águas') e no árabe Tiḫāmat (planície costeira ao longo das margens sudoeste e sul da Península Arábica; cf. TOORN, 1999, p. 867).

Ainda que se tenha tornado comum considerar que Tiámat é a água salgada (do mar), por oposição a Apsu, que seria a água doce de fontes e rios, isso não aparece em nenhum texto. No Enūma Eliš o contraste é entre uma divindade feminina, Tiámat, e outra masculina, Apsu (cf. GABRIEL, 2014, p. 116, nota 31). Conforme Lambert, sem dúvida o fato de Tiámat significar 'Mar' fala por si. Contudo,


'Mar', para os babilônios significava qualquer vasta extensão de água, tanto os lagos armênios quanto o Golfo Pérsico e o Mediterrâneo. E os dois rios [Tigre e Eufrates] eram muito salinos, o que os antigos conheciam e tentavam solucionar com seus sistemas de irrigação. Não há nenhuma evidência de que a salinidade da água fosse um critério para a designação de 'mar'. De modo similar, não há nenhuma prova de que a diferença entre Apsû e Tiamat no Enuma Eliš fosse pensada pelos babilônios como a da água