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CARTA DE GUIA DE CASADOS

sada, e serem dias de inverno, cuidei que o não achasse já em casa. Era mancebo, e notados de pouco govêrno, êle, e sua mulher. Cheguei enfim à sua porta, e mandando saber se estava em modo de receber minha visita, enquanto lidava nesta averiguação um pagem (batendo em vão a muitas portas) ouvi eu muito bem lá de dentro uma voz que dizia : Fulano, ide a casa do cura, e perguntai-lhe da parte do snr. D. Fulano, se é hoje dia de peixe, ou de carne. Se disser que de peixe, trazei-o da ribeira ; se disser que de carne, trazei-a do açougue ; ide de-pressa, para que se faça de jantar. Era isto, quando menos, de uma para as duas horas. Veja v. m. que tal seria para os servos o govêrno daquela casa, quando para os senhores dela era desta maneira.

Não são numeráveis os descontos, que causa um senhor frouxo. Vulgar, mas certíssima, sentença é aquela, de que então doem todos os membros, quando a cabeça está doente. Conheci um homem de grande qualidade, e juízo, em tanta maneira remisso, que mandava pedir a um seu amigo viesse a pelejar com os seus criados e obrigá-los a que o servissem.

Ora êstes excessos contam-se como monstruosidade ; e não poucas vezes convém trazê-los à memória para os aborrecer.

Tôda a governança de uma casa, eu reduzo a dous pontos : Pão, e pano ; ou prato, e trato, regra, que muitos dias há que sabe a prudência. Pelo pão, ou prato, podemos entender todos os bens, e cómodos das portas adentro. Pelo pano, ou trato, entenderemos todos os bens, e cómodos das portas afóra. Alguma cousa disto toquei nos avisos passados ; menos porém do necessário.

Mas especializando de novo esta matéria, convém