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O ROMANCE DO CHOPIM

não é esthetico, respondeu preciosamente d: Zenobia.

E assim corria o tempo. O romance era á moda antiga; em varios volumes, systema Rocambole. Já tinha acontecido o diabo. A moça fugira de casa, raptada em noite de tempestade pelo cavalleiro gentil; mas o dinheiro do monstro vencia tudo: foram presos e encarcerados, ella no convento, elle num calabouço infecto. Mas quem pode vencer o amor? O cavalheiro conseguiu, illudindo os guardas, abrir um subterraneo que la ter ao convento. Que tarefa ingente! Como as professoras deliraram acompanhando a obra desesperada do homem - toupeira, escavando a terra humida com as unhas sangrentas! Afinal, venceu, alcançou o pavimento da cella onde Lucia chorava de amor e conseguiu falar-lhe. Que lance este, quando Lucia comprehende o estranho murmurio de voz subterranea que a chamava! Era a redempção, afinal! Entendem-se e combinam a fuga. Um barqueiro os operarios no lago, á meia noite etc. e tal,

D. Zenobia parava nos trechos mais empolgantes, deixando a assembléa ora em lagrimas, ora em arroubos de indizivel extase. A's vezes, quando estava de saia preta, em seus dias azedos, não adeantava a novella de um passo, siquer.

— Hoje, descanço. Eduardo está com um pouco de dôr de cabeça e não escreveu uma linha.

As professoras ficavam pensativas...

Afinal chegou o dia da fuga, ponto culminante da obra. D. Zenobia, perita na arte de armar effeitos, annunciou-o de vespera.

— E' amanhã, o grande dia!

— Mas escapam, d. Zenobia? — disse uma torturada do romantismo, com a mão no seio, arquejante.

— Não sei...

— Pelo amor de Deus, d. Zenobia! Eu não posso mais! Si o monstro ganha a partida mais esta vez, diga, que eu tiro umas ferias e vou para a roça esquecer este maldito romance qué já me está deixando hysterica.

— Paciencia, filha! Como eu posso saber o que lá se passa na imaginação do artista?

— Mas peça'a elle, peça por nós todas, que não deixe os espiões do monstro descobrirem os fugitivos desta vez. Pelo menos agora. Mais tarde vá, mas agora elles precisam uns mezes de recompensa. Arre, que tambem é demais...

No dia seguinte d. Zenobia appareceu sorridente. As professoras anciosas, ao vela assim, criaram alma nova.

— Então? exclamaram palpitantes.

D. Zenobia fez um muxoxo.

— Esperem lá. A coisa não vae a matar. Eduardo neste momento attinge o ponto culminante, o Itatiaia da obra. Deixei-o com o olhar em fogo — o fogo da inspiração! — os cabellos revoltos, a cabeça febril. E' o momento supremo do fiat! Toda obra depende deste fecho de abobada. Como a solução do caso vem das profundas do subconsciente esthetico, e inda não veiu até á hora de eu sahir, pedi-lhe que me communicasse o resultado pelo telephone. Esperemos...

As moças puzeram os olhos no céo e a mão no peito.

— Meu Deus! disse uma. Estou com o coração aos pinotes! Si Lauro é preso, si os emboscados o matam... O monstro é capaz de tudo!

Nisto vibrou a campanhinha do telephone. D. Zenobia piscou para as amigas estarrecidas e foi attender.