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Página:Contos Tradicionaes do Povo Portuguez.pdf/383

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não quiz elrei na côrte fazer justiça d'elle, nem descobrir seus delictos; mas chamando-o ante si lhe disse:

— Esta carta não se fia de outra pessoa senão de vós; pelo qual com diligencia caminhando o mais que poderdes, a levae a foão, que está na raia d'este reino, em tal fortaleza, e dae-lh'a, e vêde como e de que sorte tem a guarda d'aquelle castello.

E logo lhe deu uma carta sellada com o sêllo real, que o mordomo tomou como leal criado; e visto o mandado delrey, partiu logo para a fortaleza por jornadas que já levava ordenadas da côrte, em que o terceiro dia avia de ir dormir áquelle castello. Porém, uma legoa antes de chegar a elle, se achou com o cavallo quasi desferrado de todo. E porque isto era passando pelo meio de uma boa povoação, quiz repoisar sua cavalgadura, e ouvindo trabalhar um ferrador, foi-se para aquella parte; mas antes que chegasse, lhe sahiu ao encontro um homem preto, alto de corpo, ladino, e lhe disse:

— Senhor, boa seja a vinda de vossa mercê; em verdade este é um alegre dia para mi; apeie-se, repousará aqui esta noite.

E poz-se a ferrar o cavallo, o qual fez com muito primor e graça, e feito disse:

— Senhor, conhecei-me, que tenho muita razão de vos servir, e fazei-me mercê que entreis n'esta casa, que é vossa.

E o mordomo attentando por elle, pareceu-lhe que já o vira. E n'estas detenças estiveram algum pequeno espaço, que lhe pareceu ao mordomo que devia de ficar ali, porque o preto se lhe deu a conhecer e era amigo que já recebera honras d'elle, e conforme ao terceiro conselho, não havia de passar adiante, e assi o fez com intenção de se erguer muito cedo e amanhecer na fortaleza. Cearam todos com contentamento, e sobre mesa lhe disse como ia áquelle castello não a mais que a dar aquella carta del rey ao capitão, que devia importar,