Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/30

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Para os tratados especiaes remeto pois o leitor menos affeito a taes assumptos, e hesitante ainda em quaesquer hypótheses orthográphicas.

Abro porém uma excepção, visto como esta obra vai parar a muitas mãos, que só folhearam algum compêndio escolar e que não podem folhear todas as obras que se têm escrito com mais correcção, nem os livros e dissertações, que já temos em nossa língua sôbre questões philológicas.

Refiro-me pelo menos a metade, se não á maioria, de um milhão de Portugueses, isto é, àquelles que logram a fortuna de escrever o seu nome e lêr por alto... Desde o Méthodo Facillimo, que lhes deram na escola, até o Almanaque do Lavrador, que lhes aponta as phases da lua, e até o periódico que diz mal do Govêrno e lhes recommenda um candidato a legislador, leram sempre portuguez e portugueza, e admiram-se ingenuamente de receber um Diccionário, que lhes fala da língua portuguesa.

É para êsses meus ingênuos compatrícios que eu vou trasladar para aqui o que, a tal propósito, deixei escrito noutro livro meu:

 

— «Portuguez e português são duas variantes da mesma palavra. Ora, entre duas variantes, naturalmente me inclino para a que se baseia na sciência, reforçada pelas tradições e pelo bom senso.

Portuguez é ainda fórma generalizada, e autorizada pela prática de alguns mestres, que nunca se preoccuparam de Philologia, até porque esta sciência póde dizer-se que nasceu há dois dias; mas é uma fórma puramente convencional. E direi porquê.

Os nossos velhos clássicos, como as typographias do seu tempo eram ainda mais pobres que as de hoje em accentos gráphicos, escreviam, um pouco á espanhola, frances, ingles, portugues. Viu-se porém que a orthoépia não correspondia á graphia, e notou-se que o z final costumava fazer agudas ou oxýtonas certas palavras: feliz, apraz, viuvez, arroz...; e, em vez de se recorrer aos accentos gráphicos, recorreu-se ao z para os substituir, introduzindo-se em palavras que nunca os poderiam têr legitimamente: Pariz, Thomaz, quiz, poz, inglez, portuguez...

Demonstra-se facilmente que estas e outras palavras, escrevendo-se como manda a sciência da linguagem, não têm z, mas, sim, s. Restringindo-me porém a portuguez, não dou novidade, ponderando que todas as palavras têm a sua evolução, a sua história. Aquellas, cuja história é obscura ou desconhecida, e aínda algumas, cuja história foi completamente pervertida pelo uso popular, escrevemo-las como as pronunciamos; mas o maior número dellas, visto que lhes conhecemos o berço, temos que tratá-las consoante os seus títulos e genealogia.

Toda a gente saberá que Portugal deu primitivamente o adjectivo e substantivo portugalense, como Brácara deu bracarense, Conímbrica conimbricense, Ebora eborense, Setúbal setubalense...

A phase immediata da evolução de portugalense, pela lei glottológica do menor esfôrço, sería portugalens, que, por contracção, veio a dar portugalês.

Ora, a quéda de certas consoantes mediaes é phenómeno averiguado na evolução da linguagem românica; assim, de médio saiu meio; de videre saiu vier, veer, vêr; de malo saiu máo, mau; de coelo saiu céo, céu; de portugalês saiu portugaês > português.

Vejam se, nesta odysseia de séculos, o português achou algum z no seu caminho.

Não achou. O z que lhe appuseram é uma intrusão, um arrebique convencional, que tería desapparecido há muito, sem deixar saudades, se os nossos escritores tivessem tido a pachorra de pensar dois minutos no caso, e no bom senso de Alexandre Herculano que, na sua História de Portugal, e contra o uso dos seus contemporâneos, á excepção de Rodrigo Felner, escreveu sempre português, e nunca portuguez.» —

 

Quanto a outras graphias, que possam ferir a vista dos mais ingênuos ou dos menos lidos, julgo inopportuno alargar explicações, não só porque isso me