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NOVELLAS EXTRAORDINARIAS

porém sem dirigir mais a palavra ao passaro, cujo olhar ardente me abrazava até ao intimo do coração. Eu procurava adivinhar o estribilho do corvo e muitas cousas mais, com a cabeça encostada ao estofo da cadeira; esse estofo macio de velludo violeta, onde a cabeça d'ella se recostava outr'ora!... onde não se recostará jámais!

Então pareceu-me que o ar se tornava mais espesso, perfumado por um thuribulo invisivel, balouçado por seraphins, cujos passos deslisaram pelo tapete do quarto.

— Desgraçado! exclamei eu; Deus, pelos seus anjos, manda-te treguas e nepenthes contra as saudades de Leonor! Bebe, oh! bebe este bom nepenthes e esquece Leonor, perdida para sempre!

E o corvo tornou a dizer:

— Jámais !

— Propheta! disse eu ser de desgraça! passaro ou demonio, comtudo propheta! quer sejas um mensageiro do Tentador, ou um simples naufrago, lançado pela tempestade a esta terra deserta e enfeitiçada, a este lar de miseria e de horror, dize-me sinceramente — supplico-t'o! — é verdade que existe um balsamo da Judéa? oh! dize-m'o, dize-m'o por piedade!

O corvo respondeu:

— Jámais !

— Propheta, continuei eu, ser de desgraça! passaro ou demonio, comtudo propheta! Pelo céo que nos cobre, pelo Deus que ambos adoramos, dize-me se esta alma, esmagada pela dôr, poderá um dia, no paraiso longinquo, abraçar uma donzella santa, preciosa e deslumbrante, a quem os anjos chamam Leonor?

O corvo disse:

— Jámais!

— Sejam as tuas palavras o signal da nossa separação, passaro ou demonio! exclamei eu, pondo-me