Página:Novellas extraordinarias.pdf/297

Wikisource, a biblioteca livre
O GATO PRETO
289

Apenas lhe toquei, levantou-se, rosnou prolongadamente, esfregando-se pela minha mão, e pareceu encando com a importancia que eu lhe dava. Disse logo ao taberneiro que lh'o comprava; mas o homem respondeu-me que o gato não era d'elle, que não o conhecia, que era a primeira vez que alli vinha.

Continuei a fazer-lhe festas, e quando voltei para casa, o animal acompanhou-me; de vez em quando, pelo caminho, abaixava-me para o acariciar. Apenas chegámos, procedeu como se estivesse em sua casa, e tornou-se desde logo o grande amigo de minha mulher.

Pela minha parte, ao contrario do que eu mesmo esperava, comecei immediatamente a antipathisar com elle; não sei como, nem porque. Os seus carinhos aborreciam-me, quasi me desagradavam. Pouco a pouco, aquella sensação de aborrecimento converteu-se em aversão. Comtudo, a lembrança do meu primeiro acto de crueldade e tambem certa vergonha impediram-me de o maltratar. Durante alguns mezes abstive-me de lhe bater ou de o repellir com brutalidade; mas gradualmente, insensivelmente, apoderou-se de mim tal horror pelo animal, que cheguei a não poder tolerar a sua presença. Odiei-o profundamente, e, não querendo aggredil-o, fugia d'elle como da peste.

O que contribuiu, indubitavelmente, para a minha aversão pelo gato, foi a descoberta que fiz, na manhā seguinte á noite em que o trouxe para casa, de que, como Plutão, tambem elle havia sido privado de um olho. Essa circumstansia, todavia, ainda o fez querer mais de minha mulher que, como já disse, possuia a um grau elevadissimo a ternura de sentimentos que outro tempo fóra a minha feição caracteristica e a fonte perenne dos meus simples e innocentes prazeres. Comtudo, a affeição do gato por mim parecia augmentar na razão