Página:O Engenhoso Fidalgo D. Quichote de La Mancha, v1 (1886).pdf/20

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«Emquanto ao negocio de citar nas margens do livro os nomes dos auctores, dos quaes vos aproveitardes para inserirdes na vossa historia os seus ditos e sentenças, não tendes mais que arranjar-vos de maneira que venham a ponto algumas d’essas sentenças, as quaes vós saibaes de memoria, ou pelo menos que vos dé o procural-as muito pouco trabalho, como será, tractando por exemplo de liberdade e escravidão, citar a seguinte:

Non bene pro toto libertas venditur auro,

e logo á margem citar Horacio, ou quem foi que o disse. Se tractardes do poder da

morte, acudi logo com:

Pallida mors æquo pulsat pede pauperum tabernas

Regumque turres.

Se da amisade e amor que Deus manda ter para com os inimigos, entrae-vos logo sem demora pela Escriptura Divina, o que podeis fazer com uma pouca de curiosidade, e dizer depois as palavras pelo menos do proprio Deus: Ego autem dico vobis: Diligite inimicos vestros. Se tractardes de maus pensamentos, vinde com o Evangelho, quando este diz: De corde exeunt cogitationes male; se da instabilidade dos amigos, ahi está Catão que vos dará o seu distico:

Donec eris felix, multos numerabis amicos;

Tempora si fuerint nubila, solus eris.

Com estes latins, e com outros que taes, vos terão sequer por grammatico, que já o sel-o não é pouco honroso, e ás vezes tambem proveitoso nos tempos de agora.

«Pelo que toca a fazer annotações ou commentarios no fim do livro, podeis fazel-os com segurança da maneira seguinte: Se nomeardes no vosso livro algum gigante, não vos esqueçaes de que este seja o gigante Golias, e somente com este nome, que vos custará muito pouco a escrever, tendes já um grande commentario a fazer, porque podeis dizer, pouco mais ou menos, isto: «O gigante Golias, ou Goliath, foi um Philisteu, «a quem o pastor David matou com uma grande pedrada que lhe deu no valle de Te«rebintho, segundo se conta no livro dos Reis, no capitulo onde achardes que esta his«toria se acha escripta. Em seguida a esta annotação, para mostrar-vos homem erudito em lettras humanas e ao mesmo tempo um bom cosmographo, fazei de modo que no livro se commemore o rio Tejo, e vireis logo com um magnifico commentario, dizendo: «O rio Tejo foi assim chamado em memoria de um antigo rei das Hespanhas; «tem o seu nascimento em tal logar e vae morrer no mar Oceano, beijando os muros «da famosa cidade de Lisboa, e é opinião de muita gente que traz areias de ouro, etc.»