Página:Os trabalhadores do mar.djvu/522

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casco assemelhava-se a um dyptico, partido em dous pedaços, e batendo ambos um no outro. Cinco ou seis peças apenas, vergadas e arrebatadas, mas não completamente soltas, ainda sustentavam o casco. As fracturas guinchavam e alargavam-se a cada sopro do vento, e o machado apenas ajudava. Esta circumstancia, que tornava facil o trabalho, tornava-o arriscado tambem. Tudo podia esboroar ao mesmo tempo debaixo Gilliatt.

A tempestade attingio ao paroxysmo. Até então fôra terrivel, agora fez-se horrivel. A convulsão do mar reproduzio-se no céo. A nuvem até então fôra soberana, parecia executar a sua vontade, dava o impulso, derramava ás vagas a loucura, conservando sempre uma lucidez sinistra. Em baixo havia demencia, em cima colera. O céo era o sopro, o oceano era apenas a espuma. Dahi vem a autoridade do vento. O furacão é genio. Entretanto a embriaguez de seu proprio horror tinha-o perturbado. Agora era o turbilhão. Era a cegueira produzindo a noite. Ha nos temporaes um momento insensato; é para o céo uma especie de sangue que sobe á cabeça. O abysmo já não sabe o que faz. Fulmina ás apalpadellas.

Nada mais horrendo. É a hora hedionda. Chegara ao cumulo o tremor do escolho. A tempestade tem um plano mysterioso; mas nesse instante perde-o. É a má hora da tempestade. Nesse instante, o vento, dizia Thomas Fuller, é um doido furioso. É nesse instante, que as tempestades fazem essa despeza continua de electricidade que Piddington chama a cascata de relampagos. É nesse instante, que apparece nas nuvens mais negras, não se sabe porque