Página:Ultimas Paginas (Eça de Queirós, 1912).djvu/112

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de bandolim e de flauta, tropeçando com os seus imensos sapatos bicudos nos cadáveres abandonados: e, para os ver passar, surgiam aos balcões mulheres pálidas, com o seio descoberto, peles de arminho na orla do vestido, e a cabeça coberta de uma mitra aguda de onde pendiam molhos de longas fitas, que o vento fazia ondear como flâmulas de mastros.

Toda a noite Cristóvão trabalhara. Como os guardas não fechavam as portas, por vezes os lobos, atraídos pelo cheiro da podridão, apareciam nas ruas escuras. E Cristóvão, que juntava os cadáveres, corria contra eles bradando, com uma tocha na mão. Os mortos, que assim juntava, ia-os de manhã sepultar nos campos de oliveiras. Depois ia colher à serra ervas aromáticas, que salvam da infecção, e pondo-se às esquinas oferecia-as à gente que saía das suas moradas e que, tomando um milho, se afastava respirando-o com confiança. Como os ladrões abundavam, Cristóvão vigiava a casa dos cambiadores da moeda, dos joalheiros: e se surpreendia uns homens correndo, com alguma coisa escondida sob o saião, tirava-lha e ia depositá-la numa igreja. Era ele quem distribuía a água, varria as imundícies, acendia as fogueiras para depurar o ar. E pouco a pouco, era tão conhecido, que as mulheres, vendo a sua sombra passar rente das gelosias, chamavam sobre ele a benção do Senhor.