Página:Uma lôa do Natal.pdf/4

Wikisource, a biblioteca livre


FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE I


O espectro de Marley


(Continuado do n.º 295)


Era Marley com o rabicho da cabelleira, collete usual, calções e botas; n'estas ultimas as borlas estavam hirtas como o rabicho, as abas do cazaco e o cabello na cabeça. A cadeia que o phantasma arrastava prendia-o no meio da cinta. Era comprida e affastava-se d'elle como se fôra um rabo; e era feita (porque Scrooge observou-a de perto) de cofres, de chaves, de fechaduras, de livros d'escripturação, d'acções de Bancos e de pesadas bolsas d'aço. O corpo do phantasma era de tal forma transparente, que Scrooge observando-o e olhando-o atravez do collete, podia ver os dois botões na parte posterior do casaco.

Scrooge ouvira muitas vezes dizer que Marley não tinha entranhas, mas até aquelle momento nunca acreditara tal asserção.

Nem mesmo agora acreditava. Apesar de poder ver o phantasma d'um lado ao outro, e de o ver alli de pé diante de si; apesar de sentir a influencia glacial dos seus olhos gelados pela morte, e de notar o proprio tecido do lenço que lhe cobria a cabeça e lhe passava debaixo do queixo, do que a principio não dera fé; convervava-se incredulo, e recusava o testemunho da propria vista.

— Então que temos! disse Scrooge caustico, e frio como sempre. Que quereis de mim?

— Muita coisa!

Era a voz de Marley; nenhuma duvida se lhe offereceu a tal respeito.

— Quem sois vós?

— Perguntai-me antes quem eu era.

— Quem ereis vós então, disse Scrooge alteando a voz. Sois muito preciso nos termos para uma sombra.

— Em vida era o vosso socio, Jacob Marley.

— Podeis... podeis sentar-vos? perguntou Scrooge olhando para elle com desconfiança.

— Posso.

— Então sentai-vos.

Scrooge fez esta pergunta, porque não sabia se um phantasma tão transparente se acharia em estado de pegar n'uma cadeira; e pensava que no caso de isso lhe ser impossivel, o obrigaria a entrar em explicações que lhe não causariam pouco embaraço. Mas o phantasma sentou-se no lado opposto do fogão como se estivesse a isso muito costumado.

— Não acreditaes em mim? perguntou o phantasma.

— Não... não acredito, disse Scrooge.

— Que mais provas quererieis ter da minha realidade além da que vos dão os vossos sentidos?

— Não sei, disse Scrooge.

— Porque duvidaes dos vossos sentidos?

— Porque, disse Scrooge, basta a menor coisa para os affectar. Uma pequena desordem no estomago torna-os mentirosos. Podieis muito bem ser um pedaço de roastbeef mal digerido, uma pequena colher de mostarda, um bocadinho de queijo, ou um fragmento d'uma batata mal cozida. Quem quer que sejaes cheiraes mais a aguardente, do que a agua benta.

Scrooge não tinha por costume fazer trocadilhos de palavras, e n'aquelle momento fracas disposições sentia no fundo do coração para se tornar espirituoso. Procurava todavia fazer-se engraçado afim de distrahir os seus pensamentos, e de afogar o seu terror, porque a voz do espectro gelava-o até á medulla dos ossos.

Ficar sentado olhando de frente para aquelles olhos fixos e envidraçados, ainda mesmo por um instante, era uma experiencia diabolica para Scrooge. Havia o quer que fosse de horrivel, na athmosphera infernal que rodeava o espectro; Scrooge não a podia sentir por si proprio, mas nem por isso deixava ella de ser menos real; porque apezar do espectro ficar sentado e immovel, o cabello, as abas do casaco e as borlas das botas ainda estavam agitadas como pelo vapor que se exhala d'um forno.

— Vêdes este palito? disse Scrooge voltando de repente á carga, pela razão emittida; e desejando, ainda que fosse por um unico segundo, desviar o olhar do espectro, frio como o marmore.

— Vejo.

— Mas não olhaes para elle, disse Scrooge.

— Mas apezar d'isso vejo-o, disse o phantasma.

— Pois bem, replicou Scrooge. Não tenho mais que engulil-o e para o resto dos meus dias ser perseguido por uma legião de duendes, todos da minha creação. Asneiras! meu amigo... asneiras!

A estas palavras o espirito soltou um formidavel grito, e abalou as cadeiras com um ruido tão lugubre e terrivel, que Scrooge segurou-se á cadeira com ambas as mãos, para obstar a cahir desfallecido.

Mas quão maior não foi o seu horror, quando o phantasma arrancando o lenço que lhe segurava os queixos, como se fizesse muito calor para o trazer dentro de casa, deixou cahir até ao peito a mandibula inferior!

Scrooge cahiu de joelhos, e occultou o rosto entre as mãos.

— Misericordia! exclamou elle, terrivel apparição, porque vens atormentar-me?

— Alma mundana, replicou o espectro, crês ou não em mim?

— Creio, disse Scrooge; devo crêr. Mas porque andam os espiritos sobre a terra, e porque veem elles procurar-me?

— É obrigação inherente a toda a creatura, retorquiu o phantasma, que a sua alma se misture com os seus similhantes, e que viage por todos os lados; e se tal dever se não cumpre durante a vida, é a alma obrigada a cumpril-o depois da morte. Fica condemnada a errar pelo mundo — oh! quão desgraçada eu sou! — e ser testemunha de prazeres que não pode partilhar, quando na terra podia ter tido o seu quinhão, e tel-os convertido em felicidade das outras creaturas.

De novo o espectro soltou um grito e abalou as cadeiras, torcendo as descarnadas e frias mãos.

— Estaes encadeado, disse Scrooge a tremer, dizei-me por que?

— Arrasto a cadeia que forjei em vida, replicou o espectro. Fabriquei-a élo a élo, e palmo a palmo; fui eu que a prendi á minha livre vontade, e por minha livre vontade a trouxe sempre. Ser-vos-ha estranha a sua forma?

Scrooge temia cada vez mais.

— Ou querereis saber, proseguiu o espectro, o peso e o comprimento do cabo que vós mesmos arrastaes? Era exactamente tão comprido e tão pesado como este, faz agora sete vesperas de Natal. Depois disso tendes trabalhado nelle. Deve agora ser uma bem pesada cadeia!

Scrooge deitou um relancear d'olhos ao soalho, na espectativa de se vêr rodeado por algumas cincoenta ou sessenta jardas de ferro; mas não pôde vêr coisa alguma.

— Jacob, disse elle implorando. Velho Jacob Marley, falla-me mais. Dirige-me palavras de consolação, Jacob.

— Não tenho consolação para ti. As consolações, vem d'outras regiões, Ebenezer Scrooge, e são trazidas por outros ministros, a outra classe de homens.

Nem eu te posso dizer tudo o que queria. Muito pouco tempo me é concedido. Não posso descançar, não posso permanecer, não posso habitar em lugar fixo. Sabes bem, que em vida, a minha alma nunca ultrapassou os limites do nosso escriptorio — toma bem sentido — nunca o meu espirito caminhou além dos limites da nossa casa de desconto; eis a razão porque tenho de cumprir tão angustiosas viagens!

Tinha Scrooge o inveterado costume de metter as mãos nos bolsos quando se tornava meditabundo. Pesando as palavras do espectro, tomou a attitude habitual, mas sem erguer os olhos ou mover os joelhos.

— Deveis então estar muito atrazado, Jacob, observou Scrooge em tom de quem trata negocio, mas com humildade e deferencia.

— Atrazado? repetiu o espectro.

— Sim! murmurou Scrooge, morto ha sete annos, e todo esse tempo a caminhar.

— Todo esse tempo, replicou o espectro... nem descanço nem paz. Tortura incessante do remorso!...

— Viajaes rapidamente? perguntou Scrooge.

— Nas azas do vento, replicou o espectro.

— Deveis ter visto muitas terras n'esses sete annos, disse Scrooge.

O espectro ao ouvir taes palavras, soltou um novo grito, e tão horrivel estrepito produziu com a cadeia, no silencio profundo da noite, que a policia justificar-se-hia se o tivesse prendido por desordeiro e perturbador do socego publico.

— Oh! estou captivo, encadeiado, e carregado de ferros, por ter olvidado que todo o homem se deve associar, pela sua parte, ao grande trabalho da humanidade, prescrito pelo Senhor, e perpetuar o progresso, porque esta terra deve passar á eternidade antes que o bem de que é susceptivel esteja de todo desenvolvido; por não ter sabido que qualquer alma christã trabalhando com energia na sua pequena esphera da vida, qualquer que seja, ainda assim poucas occasiões encontra na sua vida mortal para poder compensar aquellass em que podia fazer o bem. E foi o que eu fiz, desgraçado de mim!

— Mas fosteis sempre um bom negociante, Jacob, balbuciou Scrooge, que agora applicava a si mesmo as palavras do espectro.

— Bom negociante! disse o espectro freneticamente, retorcendo outra vez as mãos. A humanidade devia ser o meu negocio. O bem dos meus semelhantes devia ser o meu negocio; caridade, misericordia, perdão e benevolencia, deviam ser tão sómente o meu negocio. O trafego do meu commercio era apenas uma gota d'agoa no comprehensivo oceano do meu negocio!

O espectro ergueu as cadeias a todo o comprimento do braço, como para mostrar a causa de todos os seus pesares inuteis, e novamente as deixou cahir em todo o peso sobre o sobrado.

— Neste epocha do anno, disse o espectro, é quando soffro mais. Porque atravessei os grupos dos meus semelhantes, com olhos sempre postos na terra e nunca os ergui para aquella Bemdita Estrella, que conduziu os Magos a uma pobre choupana!

Não haveria acaso tambem pobres habitações onde a sua luz podesse ter-me conduzido?

Scrooge estava tranzido de susto por ouvir o espectro fallar de tal sorte. Começou a tremer excessivamente.

— Escuta-me, exclamou o espectro; o meu tempo quazi está passado.

— Escuto, disse Scrooge, mas não me masses muito, Jacob; deixa as flôres de rethorica.

— Como é que appareço, deante de ti em forma que podes vêr, não o sei dizer. Muitos e muitos dias tenho estado invisivel a teu lado.

Não era esta uma confidencia agradavel para Scrooge que estremeceu, e limpou o suor escorrendo-lhe da fronte.

— Não é esta a menor parte da minha penitencia, proseguiu o espectro. Estou hoje aqui para te advertir que tens ainda esperança e probabilidade d'escapar ao meu fado. Esperança e probabilidade que eu te procurarei, Ebenezer.

— Sempre fostes muito meu amigo, disse Scrooge. Agradeço-vos.

— Apparecer-te-hão, concluiu o phantasma, tres Espiritos.

A physionomia de Scrooge tornou-se tão pallida como a do proprio phantasma.

— É essa a esperança que me prometteis Jacob? perguntou elle com voz desfallecida.

— É.

— Pois eu... eu pensava que não, disse Scrooge.

— Sem as suas visitas, disse o espectro, não podes esperar o evitar a senda que eu trilho. Aguarda o primeiro ámanhã, quando o relogio soar uma hora.

— Não poderia eu, Jacob, recebel-os todos a um tempo, e acabar depressa com essa tarefa? insinuou Scrooge.

— Espera o segundo na noite seguinte á mesma hora, continuou o phantasma sem lhe prestar attenção. O terceiro na noite seguinte quando a ultima pancada da meia noite tiver cessado de vibrar. Não esperes ver-me mais; e por teu proprio interesse recorda-te do que se passou entre nós.

Apenas ditas estas palavras, o espectro arrebatou o lenço de cima da mesa, e embrulhou a cabeça como antes. Scrooge conheceu isto pelo ruido secco dos dentes quando as maxillas se uniram com a pressão do lenço. Atreveu-se novamente a erguer os olhos, encontrou o visitante sobrenatural contemplando-o em soberba attitude, com a cadeia enrolada em volta do braço.

A apparição affastou-se d'elle recuando; e a cada passo que dava, a janella erguia-se um poucochinho de sorte que quando o espectro se approximou d'ella, estava de todo aberta. O phantasma fez signal a Scrooge para se adiantar; este obedeceu.

Quando estavam distantes dois passos um do outro, o espectro de Marley levantou a mão, fazendo-lhe signal para que se não approximasse mais. Scrooge parou.

Não tanto por obediencia, como suprehendido e receioso; porque quando a sombra levantou o braço, Scrooge ouviu alguns sons confusos no ar; sons incoherentes de lamentos e saudades, queixumes inexprimiveis de tristeza e remorso. O espectro, depois de ter escutado por um momento, juntou-se a esse côro triste, e desappareceu no seio da pallida e escura noite.

Scrooge seguiu-o á janella, com o desespero da curiosidade. Olhou para fóra.

A athmosphera estava repleta de phantasmas errando d'aqui para alli, em incessante movimento, e exhalando queixumes quando passavam. Todos arrastavam cadeias como o espectro de Marley; alguns poucos (talvez ministros culpados) estavam manietados uns aos outros; nenhuns caminhavam livres. Muitos, durante a vida, tinham sido conhecidos pessoaes de Scrooge.

Scrooge fôra muito amigo d'um velho phantasma, de collete branco, com um monstruoso annel de ferro no tornozello, gritando que fazia lastima, por não poder socorrer uma pobre mulher com uma criancinha, que elle via em baixo no limiar d'uma porta. O supplicio de todos elles, via-se bem claro. Procuravam interferir nos negocios humanos, para fazerem algum bem; mas desgraçadamente eram vãos os seus esforços. Era já tarde.


Se aquellas mal fadadas creaturas se desfizeram em nevoeiro, ou se o nevoeiro as absorveu, foi cousa que Scrooge nunca poude dizer. Mas elles e as suas vozes phantasticas desappareceram e a noite volveu a ser o que fôra quando elle caminhava para casa.

Scrooge fechou a janella e examinou a porta por onde o phantasma tinha entrado. Estava fechada a duas chaves, como elle a fechara com suas proprias mãos; os ferrolhos estavam intactos. Procurou dizer «...ora asneiras!» mas parou na primeira syllaba. E necessitando muito dormir, ou pela comoção que soffrera, ou pelas fadigas do dia, ou pelo seu relance d'olhos ao mundo invisivel, ou pela triste conversação com o espectro, ou finalmente pela hora adiantada, foi direito para a cama, sem se despir, e cahiu em profundo somno no mesmo instante.

(Continua.)