Parnaso mariano (1890)/Notas/Francisco de Sá de Miranda
Francisco de Sá de Miranda (XVII e XLV). Foi natural de Coimbra e doutor na Universidade este insigne poeta, que denominaram Seneca portuguez. Pertence á eschola classico-italiana, de que foi um dos fundadores. Poderuamos escrever muito acerca da sua influencia e estudos, que nunca diriamos bastante. Ha livros e memorias a seu respeito que o abonam, e com justiça, na qualidade de benemerito da lingua. No seu tempo não havia modelos a seguir; era mister destrinçar difficuldades, desbravar terrenos incultos, constituir-se por si mesmo discipulo e mestre: discipulo pela applicação porfiada ás novas ideias que a Renascença indicava, mestre por levantar o ensino na nossa peninsula, intimando novo rumo, um novo codigo ao gosto e á metrificação. Sob este aspecto Sá de Miranda foi reformador habil, e o seu exemplo serviu de norma e de eschola. É clássico nas duas litteraturas, portugueza e castelhana, e em ambas citado com elogio.
O celebre allemão Bouterwek na sua Historia da litteratura hespanhola, cuja traduccão franceza de 1812 temos á vista, avalia-o lisongeiramente como poeta castelhano, reputando-o ao mesmo tempo superior em portuguez. Henri Prat no seu livro Études littéraires (xvi.e siècle) não lhe é menos favoravel, e aponta as suas poesias á Virgem Nossa Senhora, em que muito sobresahe (diz elle) o seu talento. Mas de todos os seus criticos o mais minucioso e justo é ainda hoje Francisco Dias, no tomo iv das Memorias de Litteratura portugueza da Academia Real das Sciencias, onde affirma que «a sua expressão resumida, mas cheia de força e clareza, offerece quasi egual numero de ideias que de palavras; e pinta com tanta vivacidade... que... de todos os poetas portuguezes este seria o mais capaz de ser um Lafontaine.» Nas poesias religiosas cita-o com enthusiasmo pelas suas bellezas de elocução.
A canção que inserimos em fragmento (XVII), dedicada á festa da Annunciação de Nossa Senhora, é copiada das Obras de Francisco de Sá de Miranda, edição do anno de 1614, pag. 141 e seguintes.
Extractámos tambem algumas estancias d’outra notavel canção (XLY) a Nossa Senhora, que confessam bem o seu alto merecimento e influencia extraordinaria nas nossas lettras. Essas estrophes persuadem melhor que qualquer dissertação erudita ou livro volumoso, que historiasse com factos ou desenvolvesse eom argumentos o seu prestimo e a excellencia de suas composições. Ellas até revelam o seu genio poetico em lucta com as difficuldades da lingua; pelo que o poderíamos denominar o nosso Ennio, precursor d’um novo Virgilio. Vejam-se esses endecasyllabos, versos que elle quasi que amoldou ao nosso idioma, os quaes, embora ainda não perfeitos, são comtudo menos ásperos que os de Ferreira, elegantes alguns como os de Bemardes, e outros tão canoros como os de Camões. O nosso Sá foi o primeiro degrau d’esta escala, o mestre de taes discipulos; e sob este aspecto ninguem lhe negará capital importancia.
Na transição do provençal para o classicismo a poesia portugueza ensaiou os seus vòos na lvra de Miranda. Era a lingua pobre, a fórma acanhada, e com meios taes a sua musa fez prodigios. Sob seu influxo creador outros poetas se foram desenvolvendo; é esta a sua gloria: dar claro a tanto escuro, remedio a tanta mingua; para os que andavam apalpando pela nevoa baça era um pharo que os guiava.
Ia alvorecendo naquelle tempo a Renascença; da Italia se diffundia o gosto da litteratura antiga, e assim se preparava uma evolução que talvez não fosse ainda a mais sensata. Poliu a rudeza, aperfeiçoou a fórma, mas desbastou muito viço e florescencia espontanea que não eram inuteis. Desbastou, não extinguiu; e ainda bem, que d’ahi ao menos se dividiram as duas escholas que mutuamente se retemperaram.
Diogo Bernardes, na poesia que expozemos no numero XXVII, teve os olhos fitos nesta de Miranda, e ambos aproveitaram, tanto no conceito sublime como na elegancia de phrase, o texto de Petrarca na sua canção cviii. O numero de estrophes e ordem de versos são identicos, e até tèm todos a mesma invocação da Virgem no começo de cada estancia; Diffunde-se por elles certo sabor latino e biblico, que era proprio do tempo e da erudição da moda.
A segunda canção que copiamos sahiu na primeira edição conforme a letra da de 1614 das Obras; mas nesta segunda modifica-se um pouco seguindo a lição da de 1885, feita pela ex.ma sr.a D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos.
No Bosquejo metrico da Historia de Portugal, cant. iii, est. 27, indica o sr. Antonio José Viale com rara elegancia o merecimento do nosso Sá:
Bemquisto do monarcha, e aos bons acceito,
Miranda, probo, culto, ingenuo e grave,
De Platão portuguez ganha o conceito,
Pela pura moral, dicção suave.
Os thesoiros que encerra o sabio peito
Folga a todos abrir com aurea chave:
Sem que jámais do assumpto o tom desvaire,
Quanto escreve tem sal, siso e donaire.