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Paulo/XV

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Eugênio, chamava-se o amigo de Paulo, representava ter 25 a 28 aros de idade.

O seu mundo, dizia ele, era a sua consciência, o seu conselheiro a circunstância, o seu rei Paulo de Kock, e a sua pátria a cabeça de Sócrates, um cão por que se desvelava extremosamente.

— Quê! - exclamou Eugênio ao concluir Paulo a sua narração - deixas-te ficar sem dinheiro possuindo tu tintas e pincéis que tão bem manejas?

— Que queres tu? - respondeu-lhe Paulo. - Não acabei de dizer-te quanto me ofereceram pelo meu melhor quadro? Hei de vendê-lo por semelhante preço, que nem ao menos chega para a desforra das tintas? Não, nunca. Antes pedir esmolas, antes dar mais um novo desgosto à minha velha mãe escrevendo-lhe circunstanciadamente a respeito da minha situação.

— É justo - atalhou Eugênio - que por semelhante preço não o dês, nem eu te aconselharia nunca que o fizesses. Ora atende-me. Tu já me tens falado de ti, da tua vida tão cheia de privações, do teu amor quase sacrificado pelas encantadoras esperanças que te riem ao coração quando olhas para o futuro; entretanto, eu ainda não tive ocasião para dizer-te alguma coisa a meu respeito. Pois bem, já que não te posso oferecer neste momento as minhas algibeiras, porque tu precisas de dinheiro e elas estão vazias, ao menos dar-te-ei um ótimo conselho com que, se o tomares, poderás em poucos dias adquirir bem boas patacas. É preciso, porém, que tenhas a paciência de escutar por tua vez alguns pormenores da minha vida.

E, para tornar-te essa maçada mais divertida, não omitindo os ff e rr de romance, que dão chiste às minhas desventuras, ler-te-ei alguns capítulos da minha história. Estás disposto a ouvi-los ?

— Com muito prazer - respondeu Paulo.

Eugênio tirou um livro em manuscrito da sua pequena estante de pinho, sentou-se junto a Paulo e leu:

ROMANCE A LÁPIS

ou

Apontamentos dos transes mais apertados da minha vida e da do meu fiel Sócrates; e de outras muitas coisas, o que tudo fiz, por sua muito descomunal novidade, em minhas horas de laser, para desagravo da nossa igual desventura.

Não te previnas - disse Eugênio suspendendo a leitura -, que não sou nenhum quinhentista; adotei a linguagem à d. Quixote, no argumento dos capítulos, para não ter o trabalho de perder tempo mendigando para eles, aí pelas estantes, epígrafes facetas.

E continuou:

I

De como o autor e personagem deste livro chegando aos seus 20 anos se achou com o seu fiel Sócrates em uma posição muito crítica; da maneira por que se tirou dela em favor de Sócrates, vendendo a estimada princesa de seu tio. Do modo por que se desfez de um cavalo que a fortuna lhe mandou, e do grande prazer que isso lhe deu à alma e também ao estômago de Sócrates.

Aos 20 anos de idade era eu órfão de pai e mãe.

Não tinha irmãos, nem parentes mais próximos que um velho tio materno. Major reformado do Exército, meu tio não tinha outro haver que o mesquinho ordenado que lhe dava a sua reforma. Eu vivia em sua companhia e às suas expensas desde o tempo em que minha mãe enviuvou. Tinha-se ela casado com meu pai por amor; ambos eram pobríssimos, e meu pai juntava à pobreza uma inextinguível dose de extravagância que bem pouco se harmonizava com a sua vida de empregado público.

Morreu ainda moço, deixando-me na idade de dez anos, e por conseqüência incapaz de trabalhar para ajudar minha mãe a satisfazer um enxame de credores que nos ficou como herança.

Por esse acontecimento, que nos deixou mesmo ao deus dará, meu fio chamou-nos para a sua companhia, falecendo minha mãe oito anos depois.

Tornando aos meus 20 anos. Tinha-os eu, e freqüentava o primeiro ano de medicina, quando a morte veio privar-me do único arrimo que me restava.

O velho major faleceu nesse mesmo ano!

Eis-me um Pedro-Sem em miniatura, ou um Job dos tempos modernos! Meu tio não deixara nada, completamente nada! Daí em diante comecei a provar todas as taças da necessidade, cada qual mais amarga.

Não fui mais à academia.

Quando procurei meus livros, já os tinha vendido.

Até uma espada velha, o mais predileto traste de meu tio que ele não trocaria pelo maior posto do Exército, a sua princesa, como ele chamava naqueles momentos de entusiasmo de que o velho soldado se possuía ao recordar-se do dia em que teve de desembainhá-la para com ela em punho saudar o sol da liberdade, que, à voz do seu querido d. Pedro I, fazia despontar no céu de Ipiranga; ela que coisas tão bonitas lembrava; ela, espada por todos os títulos livre, pois até ela vendi e a um tão digno senhor como é um sr. belchior!

Eu precisava de um pão para mim, que forçado a ouvir os impropérios e ameaças de meu senhorio, não tinha tempo de responder às queixas que me fazia o estômago, de uma fome de três dias que se hospedava com ele, mas para o meu cão Sócrates, que comigo irreligiosamente jejuava três dias seguidos, irreligiosamente digo porque o jejum, segundo a cartilha, deve ser voluntário e nós nenhuma vontade tínhamos de jejuar. Estava eu a refletir no passo que devia dar para arranjar-me o mais depressa possível, quando dei com os olhos do irracional, que, no canto da casa, cheio de resignação, parecia ir-se definhando caladamente, dizendo-me silencioso o seu último adeus, com aqueles olhos lânguidos e lacrimosos! Como que acordei sobressaltado do meu sono de reflexão; doeram-me dolorosamente as fibras todas!

Chamei o cão, animei-o e cheguei mesmo a gritar-lhe nos ouvidos que também me definhava de fome.

Vesti-me, e não encontrando coisa que mais valesse, tomei a espada e saí com o cão. Fui vendê-la a um belchior. O homem, depois de muito regatear, resolveu-se a ficar com ela por quatro vinténs; aceitei-os e com eles comprei um pão, que dei a Sócrates para entreter a fome.

Alguns dias antes de falecer meu velho tio, apareceu lá pela academia um colega meu rifando um cavalo, com que de Minas o mimoseara seu pai; obrigou-me a ficar com um bilhete, e com tão boa vontade que foi ele o premiado.

Concordei com o dono de uma cocheira em tratar ele do animal como coisa sua, permitindo apenas servir-me dele uma ou outra vez.

Era um excelente alazão e o dono da cocheira fez um excelente contrato.

Mais satisfeito com o ver Sócrates menos descontente da vida, que tão carrancuda via nas agonias da fome, fui propor ao dono da cocheira a venda do meu cavalo. Foi essa a minha primeira lembrança logo que tive falta de dinheiro, mas infelizmente o diabo do homem lembrara-se também de ir passear com o alazão não sei por onde, e deixou que primeiramente as minhas privações chegassem ao extremo em que estavam, para voltar do seu passeio.

Nesse dia, graças à fortuna, já estavam eles em casa.

Propus-lhe a venda.

O homem, mal acabou de ouvir a proposta, folheou um almanaque de defeitos contra o cavalo, rematando por declarar-me que nascera entre cavalos, que com ele tratara até aquela hora, e que, enfim, tomasse-lhe o diabo conta da alma, se não era o meu cavalo o mais ordinário alazão que ele tinha conhecido.

Disse-lhe que desse pelo animal o que fosse mais razoável.

Tomou duas notas de 30 mil-réis e ofereceu-mas.

Era a primeira vez na minha vida que eu podia dispor de tanto dinheiro.

Fui a um hotel, mas qual vontade de comer?

O prazer acalentava a fome. Outro tanto não se deu com Sócrates que enquanto eu contra a vontade comia a sopa, regalava-se ele devorando o segundo prato que lhe mandei dar.

Ocupava eu então um pequeno quarto, cujo primeiro mês de aluguel lá estava vencido e ainda não estava pago o que me obrigava a ouvir silenciosamente todos os impropérios do senhorio; paguei-o nesse mesmo dia e bem assim o segundo mês que estava quase no meado.

II

Grande susto do autor e juntamente de Sócrates com o aparecimento de seu tio; vergonha porque passou ao tomar-lhe este contas da sua espada, e da ordem que lhe passa do outro mundo. Saí o autor a resgatar a princesa. De como uma espada aumenta de valor de um dia para outro. Parte a cumprir o mando do seu tio.

Com o espírito mais tranqüilizado por ver-me livre por alguns dias de tal senhorio, com um pouco de dinheiro nos bolsos e o meu cão mais contente com o seu estômago, passei o resto do dia satisfeito como um frade.

À noite deitei-me cedo; alquebrantado por aquelas privações de três dias, dormi com a maior facilidade.

Creio que dormi profundamente duas horas seguidas.

Daí comecei a sonhar.

Sonhei que eu tinha acordado e que via diante de mim o vulto de um homem que não me atrevia a encarar. Vi o vulto aproximar-se da minha cabeceira sem fazer o menor ruído, porque seus pés não tocavam no soalho. Tive medo, quis reprimir a respiração para que o vulto não soubesse que estava acordado e apertando as pálpebras tornei a adormecer.

Sonhei que sonhava, e que o vulto, que estava à minha cabeceira, era meu tio, que esperava que eu acordasse para perguntar-me pela sua espada e que, como eu não acordasse, despertou-me ele chamando-me baixinho:

— Eugênio?

— Meu tio - respondi-lhe.

— Onde puseste a minha espada?

Que ao perguntar-me lembrei-me de que a tinha vendido, e tive vergonha de aclarar-lhe.

E ele foi continuando, alterando a voz:

— Não é preciso que o digas. Vendeste a minha espada, desgraçado! Ela a quem devias render vassalagem de escravo! Sim, de escravo, porque o escravo reconhecido jamais se esquece que foi escravo do senhor que lhe deu a liberdade! Vendeste a minha espada, ela que também concorreu para te ajudar a quebrar as cadeias de escravo que te apertavam os pulsos! Renegado, quero a minha espada! Vai resgatá-la com o teu sangue se for preciso! Tirá-la das mãos daquele indigno senhor que tão infame uso faz dela. Daquele cativeiro sai ela imunda de opróbrio; pois bem, que a malfadada seja resgatada e atirada às profundezas do mar. Vai resgatar a minha espada, viste, renegado!

Acordei sobressaltado, sentei-me; a cama estremecia, como se alguém a tivesse sacudido. Em meus ouvidos zunia a palavra renegado! Sócrates rosnava, a lamparina crepitava, e um relógio, como um profundo e rouco gemido de moribundo, tangia uma hora da noite.

O aspecto lúgubre do quarto, o silêncio sepulcral que reinava de uma sombra que se me afigurou ver a um canto parecendo caminhar para mim, à proporção que a lamparina crepitava, e o cão rosnando amedrontado, os meus cabelos hirtos e o coração que me batia sem compasso e isto tudo a um tempo causou-me a mais medonha impressão.

Cheio de pavor, deitei-me novamente, chamei o cão, fi-lo deitar comigo, cobri-me com todos os panos da cama, fechei os olhos e fui repetindo, in mente, o padre-nosso, a ave-maria, o credo e não sei o que mais, até que dormi outra vez.

Acordei às sete horas da manhã.

Foi o meu primeiro cuidado ir à casa do belchior resgatar a espada.

Lá fui.

Perguntei-lhe por ela. O homem não tinha idéia de nunca me ter visto, e nem sabia que espada era essa por que eu lhe perguntava.

Expliquei-lhe ser aquela que eu tinha vendido no dia antecedente.

— Ah! sim - exclamou ele - lembra-me que ontem comprei uma espada e que é de aço superior. Comprei-a ao senhor?

— Justamente respondi-lhe - e por oitenta réis.

— Só? - murmurou ele. - Pois olhe, fiz uma pechincha: o aço é o melhor que por aqui tem aparecido; também é em paga das espigas que levamos. Então o senhor arrependeu-se, hein? Eu logo vi que havia de arrepender-se.

E dizendo isto, foi a um canto do seu bazar e voltou com a espada.

— Ora, aqui a ternos - disse apresentando-ma. É uma espada real, tão valente como a de Carlos Magno; pergunte-lhe que façanha fez ela ontem à noite.

— Que façanha foi essa - repliquei-lhe.

— Foi - respondeu - que ela deu-me cabo de um batalhão de ratos que por aqui andava a destruir-me os trastes.

A lâmina estava toda tinta de sangue.

Pasmei com a coincidência, lembrando-me do sonho.

Perguntei ao homem quanto queria pela espada; respondeu-me que visto ser eu seu freguês e de mais a mais o próprio que a tinha vendido, dava-me por dez tostões. Não regateei, dei-lhe o dinheiro e sai.

Fui à praia dos Mineiros, fretei um bote e mandei remar para a ilha das Cobras. Quando vi que já teria vencido umas 20 braças mais ou menos, fingi distrair-me e deixei a espada ir ao mar.

Os remadores soltaram uma exclamação a seu modo. Eu soltei também a minha e fingindo-me amuado mandei que voltássemos, dando-lhes a entender que já não tinha o que ir fazer à ilha.

III

O romance faz-se de mais em mais interessante. Raro caso de que o encontro de um antigo amigo traz felicidade. Em que se explica de como o capricho de uma amante rende cem mil-réis, e como acontece que muitas vezes se vende o que ainda não se possui.

Tornando às minhas circunstâncias. Restavam-me uns 20 mil-réis dos 60 que rendera o alazão. Ansioso por ver-me livre daquela quantia pensava como desfazer-me dela.

Dizia, falando com Sócrates: temos o quarto pago, e ainda restam-nos livres uns 20 dias; a lavadeira também está paga, o fato ainda resistirá alguns três meses bem puxados: o que nos falta, Sócrates? Ai, o alimento! Mas ontem e hoje temos comido sofrivelmente, e não há de ser no jantar de amanhã que havemos de desperdiçar todo este dinheiro. Pensa, Sócrates ?!

E o cão punha-se a pular daqui e dali todo alegre da sua vida com o ver-me prazenteiro.

— Qual amanhã! - exclamei interrompendo a voz da prudência que se entremetia com as minhas reflexões, lembrando-me o futuro.

— Eu sou - prossegui - como os tapuia; não tenho amanhã. Há de ser hoje; o meu futuro é o presente e este dinheiro pesa-me nas algibeiras; preciso reparti-lo com alguém... pelo menos.

Eram seis horas da tarde, vesti-me e saí.

Na rua encontrei um meu amigo e contemporâneo de estudos na academia.

Foi logo perguntando se eu tencionava perder o ano.

— Não tenciono - respondi-lhe -, perdi-o. A ciência é lá para ti e outros; vocês que têm papai fazendeiro rico, e mesada à vontade, cama, mesa e luz; livros e extraordinários quando bem lhes parece, e não para mim, que não tenho nada disso, e, entretanto, preciso de cama e mesa.

E francamente expus-lhe todas as minhas circunstâncias.

— E agora? - tornou-me ele.

— Agora - respondi-lhe - namoro a lua, e quando ela não está à janela, dou lições de mímica a este cão. E como a ele dei férias, e, a namorada está de nojo, vou por aqui pensando em que hei de gastar uns 20 mil-réis que aqui levo.

— Como! - exclamou ele - acabas de expor-me as mais críticas circunstâncias...

— Sim, sim - atalhei -, explico-te como isto é em duas palavras. Olha, uns 20 mil-réis para um sobrinho que não via vintém desde que lhe morreu o tio, é um fortunão; mas para um estudante que precisa de tantos 20 mil-réis quantos sejam suficientes para sustentá-lo quatro ou cinco anos numa academia, um 20 mil-réis pesa-lhe nos bolsos, porque não serve para alguma coisa útil. Queres cear comigo?

O meu amigo riu-se do meu modo de pensar, e foi aceitando o convite.

— Aceito - disse - porque preciso falar-te e não quero perder a ocasião. Ando a tua procura há oito dias e não encontrei ninguém que me desse notícias tuas.

— O que vem a ser então? - perguntei-lhe.

— É que de ti - respondeu - depende a minha felicidade...

Parei surpreendido. Aquilo pareceu-me zombaria.

— Falo sério - continuou ele -; por minha mãe, que falo sério.

— Desembucha - gritei-lhe - antes que me aborreças.

— Eugênio - continuou ele -, qual foi o primeiro dos teus companheiros a quem deste a ler na academia uma poesia tua?

— Já não me lembro.

— Pois lembre-te que fui eu. Assim como fui eu o primeiro que fez justiça a esse talento que a privação vai, sem dúvida, embotar, e que muitas vezes te defendeu quando alguns dos nossos mais levianos companheiros, despeitados com os teus merecimentos, cuidavam em deprimir-tos. Isto não é alegar é recapitular os fatos para regenerar a amizade, essa amizade que dizias consagrar-me, de que eu me prezava tanto, e de que vou dar uma prova fazendo-te um pedido. Primeiramente, porém, deixa-me acabar o exórdio. Não te lembras que foste ma vez encontrar-me lutando com um terceiranista e que até nos separaste?

— Parece-me que sim.

— Pois bem, brigava com esse esturdio, porque tinha tido o descoco de chamar-te um grandecíssimo maluco. Falou-se em poetas eu nomeei-te como um excelente e ele saiu-se com aquela! Lembras-te que na academia era contigo que eu mais me dava, contigo, o mais pobre de todos; eu, um dos mais ricos e felizes de lá? Lembras-te...

— Com os diabos - interrompi-lhe - não sabes pitada de retórica! Onde já se viu um exórdio maior do que a exposição?

— Está bom - tornou-me ele -, entro já na exposição! Ora, dize-me, meu amigo, sabes o que é amar-se uma mulher caprichosa?

— Nem sei como se principia - respondi-lhe, e respondi-lhe uma verdade.

— Pois - continuou ele - não principies nunca. Nunca, se não queres ter o inferno na cabeça e todas as fúrias do ciúme nos seios da alma! Atende-me. Amo, Eugênio, como nunca pensei amar! Oh! que nunca pensei que o amor fosse assim ! Endoideço, eu endoideço ou suicido-me se isto que por aqui vai dentro deste crânio não estoura de uma vez!

Considera que eu amo apaixonadamente como um louco ou antes como um estulto, numa palavra, considera-me perdido por uma mulher casada, a mulher mais caprichosa que possas imaginar, e em cima de tudo lê esta carta.

Entrávamos num hotel. Tomamos lugar, e enquanto o caixeiro arranjava a mesa, li a tal carta.

Era, mais ou menos, este o seu teor.

"Senhor. - Acredito, enfim, no nosso amor; tal é a pintura que dele me fizeste! mas neste instante ainda não vos amo eu. Entretanto, tendes-me cativado muita diferença. Falta pouco, bem vedes, para uma completa vitória. Dizeis-me que sois poeta, romancista e médico; como poeta, causais-me compaixão; como médico, horrorizais-me! Desculpai o falar-vos tão positivamente... porém, em paga, confesso-vos que como romancista serei capaz de amar-vos. Não fazeis idéia, sou louca pelos romances, e por um romancista serei capaz de endoidecer. Aproveitai pois, o enredo deste amor que dizeis consagrar-me, as vossas loucuras, os meus caprichos, as minhas privações como mulher casada, arranjai tudo isso, ainda que seja como um esboço de romance de que eu seja a heroína. Dai mais essa prova de obediência aos meus caprichos, e cortai com os meus sacrifícios..."

— E então? - perguntou-me ao concluir eu a leitora de semelhante carta - E então? É ou não caprichosa?

— Escreve-lhe o romance - respondi-lhe.

— Pois eu lá tenho jeito para escrever um romance? Encarregas-te disso ?

— Não tenho tempo.

— Qual não tens tempo, se não tens o que fazer?

— Mas não mandaste dizer à mulher que és romancista?

— Ora, não me perguntes por isso! Mandei, sim, e vês que essa mentira serviu-me de muito. Ela é capaz de endoidecer por um romancista!... Oh! que cabeça de fogo para reclinar-se neste seio, onde labora um vulcão! Oh! se a visses... é realmente um tipo para romance! Que olhos lânguidos e que desdém o seu? Quanta poesia, quanta... Oh! pelo amor de Deus, faze-me feliz, Eugênio?!

— Como?

— Escrevendo o romance. Conheces-me bem, sabes que eu sou incapaz de escrevê-lo, palavra de honra que não saberei encadear um único capítulo.

— Contudo mandaste dizer à mulher que és romancista.

— Pois se eu já não tinha mais o que dizer-lhe? Lancei mão desse estratagema pensando ser mais feliz por intervenção da impostura e não me enganei. Façamos um contrato?

— Vai dizendo.

— Daqui a três dias sigo para a minha fazenda. Meu pai está bastante doente e minha mãe escreveu-me pedindo-me que deixe a academia e parta o quanto antes. Não posso ali demorar-me mais de um mês. Durante esse tempo escreve o romance e o mês corre por minha conta. Faze de conta que és meu guarda-livros. Tens o ordenado de duzentos mil-réis por mês; pago-te já 15 dias adiantados, e os outros ao entregares-me os livros em dia, isto é, o romance concluído, aceitas?

Não me fiz rogar. O meu amigo era credor de toda a minha gratidão, e de mais a mais sabia alegar com tão bons modos, que ingrato fora eu não cedendo-lhe ao pedido. Sem impostura teimei com ele, não querendo aceitar os cem mil-réis que me oferecia, mas ele, mais teimoso do que eu, saiu vencedor - ficando com cem mil-réis de menos.

Tomei minuciosamente alguns apontamentos dos pormenores do seu amor, e prometi o romance concluído quando ele voltasse de sua fazenda.

E ceamos como três príncipes, ele, eu e Sócrates.

IV

De como o autor prova com um - por conseguinte - que Creso em ser Creso, não teve talento para escrever o primeiro capítulo de um romance, tendo provado antes que o si vis, potes dos antigos é uma pulha de primeira ordem. De como ele saber pitada de álgebra, mostra-se transformado em um Arquimedes moderno graças às magias do amor. Do que deu azo a um pequeno pega do autor com um dilettanti do barracão do campo de Santana. Torna-se o romance patético. O autor expõe a um seu amigo, que se ri e não fala, com energia romântica, o que foi e o que é, e no melhor dos seus períodos é chamado à ordem por uma sentinela.

Quem era o amigo do autor.

De fato, meu amigo estava apaixonadíssimo, e a mulher por quem se apaixonara, pela pintura que dela me fez, pareceu-me um tipo aproveitável para personagem de um romance.

No outro dia comecei a debuxar, in mente, o enredo do seu romance. À noite, quis escrever os primeiros capítulos, mas qual! Eu, então, não possuía um único 20 mil réis, estava rico como o Créso, e, por conseguinte, incapaz de escrever um romance.

Embalde assentei-me muitas vezes com as melhores disposições de escrevê-lo - é teimar em vão - disse; enquanto eu tiver dinheiro serei estúpido.

Tinha-o desenvolvido na cabeça, prometi a mim mesmo passá-lo para o papel quando empobrecesse, e cuidei em divertir-me.

Eis-me no teatro Lírico.

Com a intenção de Arquimedes, procuro o X de um problema, e não sei o que se passa em derredor de mim.

— Oh senhor? Oh senhor de um dado! Faz-me o favor de não amarrotar-me o chapéu? Há um quarto de hora que o advirto; se é surdo não lhe gabo o gosto de vir ao Lírico.

— Certamente, é péssimo gosto: sabe dizer-me em que ato estamos?

O meu despertador, cujo inofensivo chapéu, distraidamente eu amarrotava com os cotovelos, mirou-me de alto a baixo, assim a modo de mulher requebrada, que franze a testa desdenhando lá um indivíduo, que, ao passar por ela, atirou-lhe uma gracinha de algibeira.

Era um homúnculo a quem os moços de 25 anos não deviam por dúvida em chamá-lo de avô; trajava-se à pelintra e recendia à almíscar.

— Acredite-me - tornei-lhe, sem dar importância ao desdém -, tão distraído tenho estado, que nem sei a quantas anda a peça.

O homem anão virou-me a cara, e pôs-se a cochichar com um outro pelintra que lhe ficava à direita q que calculei andar pela mesma idade.

Cochichou... cochichou...

O outro deitou-me uma olhada irônica, sorriu-se e encolheu os ombros como quem dizia para si: ora... é um pedaço de asno...

Deixei-os e tornei ao problema.

Era num camarote de segunda ordem, e que ficava à minha frente uma mulher.

Aquela mulher já parecia ter concebido todo o meu sentimento. Eu estava apaixonadíssimo por ela.

No entanto havia duas horas que nos víramos pela primeira vez.

O caso que ela fazia de mim não o tinha eu compreendido ainda.

Eu olhava-a... - olhava-a fixamente.

E ela, ora deitava-me um olhar como por acaso, indiferente e ligeiro; ora demoroso e risonho; agora, sorria-se medrosa; agora, entristecia e contemplava-me, e daí a pouco repetia tudo isso para um ou outro lado!

No cenário gorjeavam sabiás da Itália. A platéia dava-lhes os seus estrondosos aplausos, e nem os gorjeios das aves, e nem o rebuliço cansado pelos aplausos despertavam-me do êxtase em que me abstraíam os olhos lânguidos daquela mulher.

Alguém entrou no camarote... sentou-se ao lado dela.

Era um homem...

Seu pai? Não. Ela representa ter 25 a 28 anos de idade, e esse personagem, 30 a 35.

Também não é um irmão, nem um primo; não é, que ambos conversam distraídos ou como aborrecido um do outro.

Decididamente é seu marido...

Refletia assim quando percebi um movimento geral em todo o teatro.

Estava findo o espetáculo. Apressei-me em sair.

Fui postar-me à porta por onde me pareceu que ela passaria.

Com efeito, passou. Viu-me, sorriu-se triste e tomou o braço de seu marido.

Resolvi-me a segui-la; foi debalde. Estava num coupé à sua espera.

Entraram, mulher e marido; o boleeiro sacudiu as rédeas e os animais dispararam.

Quando cuidei em tomar um caro, lá era tarde!

— Algum dia! - disse comigo, consolando o coração.

Algum dia! - fui continuando - é impossível que nunca mais nos encontremos! Algum dia! Talvez amanhã...

Como é bom ter esperanças... mas... se, com efeito, nunca mais nos encontrarmos?... Oh! dize-me algumas palavras que objetem este pensamento! Dize, meu amigo, dize-me, que eu ainda hei de vê-la, que estarei junto dela, que falaremos de amor... dize a meu amor que não se acovarde com este pensamento, negro como as noites do inferno, nunca mais!

Nunca mais! E por quê? Onde fica o inferno, dize-me, onde? Lá mesmo a irei buscar!

Tu o sabes, sou poeta, sou-o de consciência, de inspiração.

Aqui neste crânio labora um quê superior à mediocridade dos positivistas. Neste coração há fibras que não ficam inabaláveis ao sofrimento alheio. Pois bem, tem dó de mim! De mim, que amo como poeta! De mim, que a amo, caprichosa como mostrou-se, com fogo, com desespero, com loucura, com... E tu a rires-te! Oh! pelo amor de Deus, não te rias!

Escuta, insensato e insensível. Também eu já me ri e rime muito, com crueldade, dos amantes como eu apaixonados. Presumia encarar o amor com o desdém de um estóico. Escarnecia dos namorados, chamava-os polichinelos que serviam para divertir as mulheres com os seus trejeitos. Entretanto vês-me? Sou também um polichinelo, degenerei! Vês como deu-se a metamorfose com tamanha facilidade? O simples volver dos olhos de uma mulher bastou-me para abater-me!

Não te rias, se ainda não sabes o que é o amor... Não te rias, que, como eu, serás algum dia abatido. Quem sabe se amanhã, se daqui a uma hora, ou daqui a um instante ao dobrares aquela esquina?

Tu não a viste, se a visses, e aqueles olhos cheios de desdém, mas desdém que escraviza, que fará ajoelhar ante ele o mais orgulhoso sultão. - se a visses... abatido, escravizado como eu, como eu desorient...

— Quem vem lá?

Esta pergunta, arrogante e ameaçadora, feriu-me os ouvidos como o inesperado estampido de uma peça de alto calibre.

Como de um atribulado sono se desperta ao estalar de um raio, despertei daquele meio dormir de sonâmbulo.

Estava a 20 passos de uma guarda, e aproximava-me abstratamente.

Caí em mim, o vi que o vulto, que se me afigurava de um amigo caminhando a meu lado, era o de Sócrates, que não entendia palavra do que porventura lhe revelei.

Respondi a segunda pergunta da sentinela, e advertido a passar ao largo tomei novo caminho.

Doía-me a cabeça e pesavam-me as pálpebras.

V

O primeiro amor do autor. Nas asas do seu primeiro amor vai ele ter ao mundo da lua. Diálogo triste, para fazer rir, entre ele autor - lá em cúria - e um seu amigo - aqui embaixo.

Prova-se que uma lanceta pode servir de escada para os habitantes da lua desceram a terra. Notícias de Sócrates.

Sabidas as contas...

No outro dia, vagamente, lembrava-me daqueles acontecimentos. Dominava-me, porém, a plena certeza de ter amado a uma mulher casada e que esse, o meu primeiro amor, tinha tido origem num teatro.

Amélia - chamava-se ela -, depois de fazer-me lutar com os seus mais exigentes caprichos, concedeu-me uma entrevista.

À hora marcada fui ao sítio designado mas, tarde soou para mim essa hora!

Seu marido por indiscrição do fâmulo que nos servia de correio, soube de tudo, e, antes que soasse aquela hora, tudo obstou, levando sua mulher não sei para onde.

Em vão fui, pois, ao sitio da entrevista; lá não encontrei ninguém.

Embalde esperei por ela até o alvorecer da madrugada.

Maldisse de mim, maldisse do amor, maldisse dela e de todos.

Contudo não perdi de todo a esperança. Acreditei que Amélia ainda quisesse experimentar-me.

O amante é como o sentenciado: este, ainda subindo as escadas do patíbulo, não tem perdida a esperança de ser perdoado; aquele ainda desenganado de uma vez que a mulher, o objeto do seu amor, para todo o sempre ocultaram-na dos seus olhos, alenta-se da esperança de ainda vê-la um dia... Alentava-se-me o coração da esperança de tornar a encontrar-me com Amélia, apesar da idéia que tinha de ter lido as seguintes palavras e ela escreveu-me na hora da partida.

"Meu amigo.

Somos muito desgraçados!... Procure-me, que eu não sei para onde vou...
Meu marido soube de tudo. O criado cortou o fio dourado de nossa felicidade.
Adeus... quem sabe se para sempre!...

A..."

Não sei quantos dias fui subjugado por este tresvario.

Sei que uma manhã despertei na minha cama tendo à minha cabeceira o meu amigo do romance.

Sua presença surpreendeu-me bastante. Eu não conservava a mais pequena idéia do passado!

Contou-me ele que no dia antecedente chegara de sua fazenda, que nesse mesmo dia foi procurar-me e que se conservara à minha cabeceira até aquela hora.

— Achei-te num completo estado de alienação mental - concluiu ele -, e foi este mais ou menos o nosso diálogo antes de caíres no letargo de que felizmente sais agora.

— Eugênio - disse-te eu entrando -, já cheguei, dá-me cá um abraço, meu amigo.

Não te moveste. Estavas assentado à beira da cama, e assim te deixaste ficar.

— Como estás pálido e magro. E sujo como um meirinho! Meu pobre amigo, o que é isto ?

— O amor! - disseste estremecendo todo, e deitando-me um olhar assustador.

— O amor? repliquei-te. - Ah! o amor! Ainda bem que não te hás de rir mais das dores desse cáustico. Pobre Eugênio - continuei compreendendo o teu triste estado - como estás? E quem é essa a quem amas, meu amigo?

— Ela - respondeste com arrebatamento dramático -, ela, que ocultaram de meus olhos! Cometa que descambou no ocaso para nunca mais vê-lo surgir! E sabes o que quer dizer nunca mais? Vai perguntar aos demônios!...

— Eugênio - gritei-te - Eugênio, o que é que tens? Não te lembras de mim, do teu amigo Ovídio? Não te lembras de ti próprio? Que é das tuas poesias? O que é feito de Sócrates?

Sócrates! - respondeste sentimental - lembro-me, pobre Sócrates! morreu em meus braços um quarto de hora depois de ter tomado a cicuta.

— E de mim lembras-te, do teu amigo Ovídio lá da academia?

— Oh Ovídio... - murmuraste - ah! ah! ah! Olhem que foi mesmo um poeta desmoralizado!

— Não te falo do Ovídio poeta - tornei-te - falo-te de mim, o teu companheiro de estudos. De mim, a quem prometeste escrever um romance, não te lembras? Olha, sou aquele Ovídio que. se apaixonou por uma mulher casada, que queria ser heroína de um romance, a Amélia, lembras-te?

— Ah! - bramaste pondo-te em pé - ah! tu conheces Amélia, conheces o seu marido? Então vieste do fim do mundo? oh! mostra-me o caminho por onde vieste! Fala, dize-me foi ela quem te mandou, deixa ver o que é que trazes para sinal...

E Ovídio rematou, dizendo-me que eu segurei-o por um dos braços e com força descomunal puxei-o para mim como querendo revistar-lhe as algibeiras. E que depois de prolongada luta cai no letargo, de que acordara graças à sua lanceta!

Como disse, eu não conservava a mais pequena idéia do passado. Estava sangrado e aéreo como se despertasse de um longo sono de seis meses.

Perguntei por Sócrates. O infeliz cão, ouvindo a minha voz natural, saiu de debaixo da cama. Mal se podia suster nas pernas. Mas, fazendo da fraqueza força, pulou a meu colo, acariciou-me como de costume. Leve como uma pena, o malfadado estava reduzido a pele e ossos.

Sabidas as contas eu tresvariei.

Quase louco, se não o estive, o que eu acreditava passar-se comigo, nada menos era do que os pormenores dos amores de Ovídio, e que ele me revelara quando acordei em escrever-lhe o romance.

VI

O autor decide-se a abandonar os livros das ciências. Relata, por alto alguns pormenores tristes.

Vai bater às portas de um editor.

Entra em cena o editor, que pega o sono no melhor da conversa.

Desperta o homem, faz um discurso sobre o gosto literário do povo e acaba aconselhando o autor a compor sonetos bocagianos.

Enquanto aquele bom amigo parecia sumamente comovido, eu ria-me de mim próprio afligindo-me somente quando considerava os transes por que teria passado o meu infeliz cão.

Ovídio, condoído da minha situação, ofereceu-me as suas algibeiras com delicadeza e sinceridade. Não fiz a mais leve reflexão de recusa, porque realmente eu já não possuía um só vintém. A generosidade daquele coração ainda foi mais longe. Aconselhou-me que continuasse com os meus estudos às suas expensas.

— Decididamente não, e três vezes não - respondi-lhe -; já não quero ser médico, meu amigo, e de mais estou inutilizado para as ciências. Passei por uma metamorfose anti-científica. Quero ler Paulo de Kock, quero fumar, compor versos, ensinar mímica a Sócrates e não quero mais nada.

Para resolver-me foram baldados todos os seus arrazoados esforços. Desse dia em diante era eu pôr os pés na rua, via-me cercado de pessoas curiosas, e que eu tinha a desgraça de conhecer, a perguntarem-me, a um tempo, se eu já estava bom, que diabo foi aquilo etc., e antes que lhes respondesse, cada qual por sua vez se referia às minhas faces, e, com desmascarado escárnio, um fato burlesco das minhas loucuras.

Tomei a sério o acontecimento, e refleti profundamente sobre mim e o meu futuro.

Eu não via nada por onde começasse.

Continuar a freqüentar as aulas às expensas de Ovídio, repugnava-me o espírito.

— Viver, viver o homem desde a hora do berço, quem sabe se até o fim da vida, à custa do suor alheio, dizia para mim, lembrando-me de meu amigo, é fazer o mais ridículo papel do mundo... Não quero, não aceito. Não posso estudar, não tenho meios; pois bem, não pode ser. Vou trabalhar. Tenho alguns títulos de habilitação, vou mendigar um emprego público.

Baldada resolução!

A orfandade, a pobreza e algum talento eram títulos nulos aos olhos de tantos homens a quem, inutilmente, fui repetidas vezes implorar um óbolo de generosidade que me desviasse da estrada da miséria, óbolo que eles podiam dar-me com um aceno, se quisessem. Mas eu era como um réprobo que lhe aparecia! Alguns nem sequer dignavam-se a olhar-me.

O meu futuro dependia de uma carta de recomendação, e eu não via ninguém que ma desse.

O melindre, que naturalmente a educação planta no coração do homem, opunha-se a que eu lançasse mão daqueles meios de vida, que aí, diariamente, vêm anunciados nas colunas dos - Precisa-se - do Jornal do Comércio.

Assim, enteado da fortuna, bastardo entre os homens, na minha pátria, no Brasil, o torrão da fertilidade e riquezas, eu era como um paralítico faminto que a fortuna caprichosa lançasse no meio de um pomar, onde o desgraçado morreria de fome por não poder dar um passo para colher um fruto dos tantos que visse.

Um dia, quando vi a miséria já me acenar de peito, lembrei-me das minhas poesias. Não é presunção; dois volumes em manuscrito que eu possuía, cheios desses romances de meu coração, tinha-os eu em conta de agradáveis.

Fui à casa de um editor.

Depois de um conciso resumo das minhas circunstâncias, ofereci-lhe os livros em troca de uma quantia qualquer, que ele visse conscienciosamente que me indenizava do trabalho.

O homem tinha acabado de jantar. Repimpado em uma cadeira de balanço, fumava placidamente, tirando de quando em quando dentre os dentes o charuto para sorver um gole de café.

— De que gênero são as suas poesias, meu amigo ? - perguntou-me ele com familiaridade.

— Lírica - respondi-lhe.

— Tenha a bondade de ler uma delas.

— Veja-as V. S.ª - repliquei, oferecendo-lhe os livros.

— Por favor, meu amigo - instou ele -, leia o senhor. Os autores têm um quezinho para ler os seus escritos, que vale a pena mesmo ouvi-los ler.

Abri a esmo um dos volumes, e li a seguinte:

AI, MARIA!

... Je ne suis plus à toi!
A. CHÊNIER.

Ai, Maria! na várzea de esperança
Desmaiaram as rosas de amores,
E não hão de jamais novas flores
Nessa várzea viçosas brotar!
Mas não chores! as dores são minhas,
As insônias e tédios da vida!
Ai Maria! A ventura perdida
Nunca mais hei de eu vê-la tornar!

Tu verás o jambeiro vestir-se
Novamente de ramas e flores
E em roupagens de ternos amores
Meigas esperanças sorrir-te verás;
Terás tardes de novos crepúsculos,
Outras noites de sonhos mais belos,
E, cativo a teus agrados desvelos,
Outro amante mais felice terás.

E eu serei no abandono esquecido,
Tu serás no bulício, entre galas,
A querida, a formosa das salas,
Entre risos e afetos de amor!
Amanhã, entre as palmas ruidosas,
Entre a orquestra dos hinos e danças,
Hás de, certo, esquecer as lembranças
Que te fazem chorar minha dor.

Amanhã - meus afetos e extremos,
Amanhã - meus amores meu nome
Esquecidos serão, outro homem
Esquecê-los fará! amanhã,
Eu serei no abandono esquecido,
Tu serás nos bulícios das salas,
Noiva envolta em cambraias de galas,
Rosa branca sorrindo louçã.

Dormirás sobre leitos dourados
Perfumados do aroma das rosas,
Aos sons ternos de notas saudosas
De outra lira que a minha melhor!
Dormirás... e a teu lado, em vigília,
Teu amante, tremendo em anhelos,
Beijará teus castanhos cabelos
Nos delírios da febre de amor!...

E depois.. e depois... quantos beijos!...
Que de anseios! que arroubos! que sono!
E eu serei como a flor em abandono
Que a sertana por outra esqueceu!
Ai, não chores! as dores são minhas,
As insônias e tédios da vida!
Ai, não chores, não chores, querida,
Só eu sei o que esta alma perdeu!

Ai, não chores! se tens de esquecer-me
Amanhã no renovo de amores!
Só minh'alma compreende estas dores,
Estas dores quem sente sou eu!
Para mim - não há flores nas várzeas,
Uma estrela na céu! ai, não chores!
Para ti - lá vicejam mil flores,
Lá despontam mil astros no céu!

Ao concluir a leitura desta última estrofe, o homem ressonava como um opiófago!

— Não é mazinha - disse ele despertando com o meu silêncio -, comove mesmo. Mas há de concordar comigo que em tempos de apatia como os nossos, as poesias tristes aborrecem. E, demais, convirá também que essas lamentações amorosas já enfastiam. Ainda mais, o povo, o senhor sabe que nós, os negociantes, só com o povo nos havemos; o povo quer rir-se, dar gargalhadas em horas de descanso, distrair-se, enfim, alegremente, e portanto nunca compra livros tristes quando quer ler. O meu amigo parece ter o seu jeito para a coisa, é só mudar de rumo, isto é, em vez de escrever queixas amorosas, escreva aventuras jocosas que façam rir até doer o umbigo, sirva-lhe de modelo este soneto de Bocage.

E como a sem-cerimônia de um libertino recitou magistralmente um dos mais livros sonetos do autor da Pavorosa Ilusão, rematando o último terceto com uma gargalhada.

— Isto, sim - continuou -, faz rir o homem como um perdido; faça disto e verá a saída e têm os seus versos, apesar de serem vendidos por portas travessas.

Eu estava admirado!

— Vá - continuou ainda -, vá, meu amigo, e volte com cem volumes destes sonetos bocagianos, e sairá daqui com as mãos abanando e os bolsos recheados.

— Então o senhor edita...

— Nem se pergunta - interrompeu-me ele. - Vá e volte como lhe disse, e verá.

Despedi-me do homem, e quando cheguei à casa estava completamente decidido a compor sonetos ao seu paladar.