Paulo/XVI

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— Ancoremos aqui - disse Eugênio fechando o livro. -Agradeço-te a atenção com que escutaste aquele aranzel...

— Então não continuas? - perguntou Paulo.

— Não é preciso - tornou Eugênio; - tenho escrito este livro para divertir-me e a este cão em nossas horas vagas. És o primeiro a quem li aquelas páginas e serás o último. Pelo que ouviste, poderás fazer uma idéia aproximada da vida que tenho levado.

— Deu-me a natureza um pouco de talento - continuou o moço depois de breve pausa - mas faltando-me com os meios que o cultivassem, desperdiçou-se. Tive crenças, muitas crenças!... Cri até em almas do outro mundo... e arrenegue de todas as minhas crenças, porque os homens assim o quiseram. Poeta, poeta no coração, meus pensamentos eram cheios de pureza como os credos das donzelinhas... Veio um dia, quase às bordas do abismo, conduzido até lá pela miséria, lancei mão do livro em cujas páginas escrevera aqueles pensamentos ditados pela fé e esperança, pelas mais profundas crenças e mais santas aspirações, e fui oferecê-los a um pai de família a troco de algumas moedas. Ouviste o que se passou entre mim e ele. Rejeitou os livros, porque não estavam escritos ao paladar dos libertinos, e pôs à escolha do poeta - ou abraçar-se com a miséria, ou prostituir-se! A fome subjugou a virtude, prostituiu-se o poeta! Mas, em recompensa, desde a hora da prostituição nunca mais editor algum rejeitou os seus livros.

Agora toma o conselho que te prometi: queres dar saída aos teus quadros? Prostitui os pincéis, como eu prostitui aquela centelha sagrada, que era como a seiva de que se alentava a vida deste crânio.

— Nunca - respondeu Paulo com resolução -, nunca.

— Nunca? - replicou Eugênio. - Pois então abraça-te com a miséria.

— Quem - continuou o jovem pintor -, em caminho para o abismo, conduzido pela miséria, recua prostituído antes de topar as bordas, não maldiga dos homens, não maldiga do mundo porque se prostituiu; não, que é uma ingratidão. Maldiga de si, da sua fraqueza, da sua fraqueza, digo, porque forte é só aquele que mesmo saindo do fundo do abismo, até onde foi conduzido pelo infortúnio, de lá sai forte como dantes e com a virtude intacta pelo mal. Onde está a virtude daquele que não se prostituiu, porque teve a ventura de não lutar com as decepções da vida? Ninguém responderá. Como também não responderá o velho capitão - onde está a coragem do soldado que não viu entre as lides da ação.

Os homens são cínicos? Deixa-os ser. Puro é aquele que entre os cínicos não se prostitui. Não nasci para cético, e não hão de ser os cínicos, ainda deixando-me passar pelas mais amargas provações da vida, que terão forças bastantes para desquitar-me das crenças que se casaram com minha alma no seio de minha mãe.

Pincéis, que meu velho pai tão cheio de resignação ensinou-me a manejar; que fizeram os seus primeiros exercícios, copiando as expressões de ternura dos olhos de minha mãe; copiando os sorrisos com que minha irmã me afagava e que mais tarde, copiaram aquelas feições risonhas da mulher que tão bem compreendeu todos os sentimentos de minha alma, prostituí-los, e por que? Por que morrerei à míngua de uma migalha de pão?

Eugênio é muito pouco; prefiro morrer de fome.

Todavia, não te faço uma exploração. Sinceramente, agradeço-te o conselho, como se dele me servisse com vantagem.

Agora, por minha vez, vou dar-te também um ótimo conselho.

Consente que te fale francamente.

Simpatizo contigo. Bastardo entre os homens, lamento-te, porque não tiveste forças e generosidade para relevar-lhes a injusta indiferença com te encaram. Ave branca, desceste do céu, pediste pouso e foste enlamear as tuas asas no charco que te apontaram os homens do pó! Melhor fora que adejasses pelo alto, até que sem forças caísses e fosses morrer além, no cimo da montanha, longe dos homens e do seu pó. Ao menos morrerás com as tuas asas brancas, e com todas as crenças! Mas... talvez ainda seja tempo de lavar as asas que se enlamearam no charco...

— Falas comigo - interrompeu Eugênio com ironia -, ou com alguma ave? Mas, eu não a vejo...

— Falo contigo - replicou Paulo. - Contigo, homem esquecido do coração. Contigo que não és um cético e sim um cínico. Atende, meu amigo, olha; como do rio Jordão as águas lavam o pecado original, há um outro rio, cujas águas lavam o pó com que o cinismo enxovalha o crânio do poeta. Esse rio chama-se o amor. Toma o meu conselho, Eugênio, ama e te regenerarás.

— Já fui banhar-me nesse rio - respondeu Eugênio sorrindo-se - e saí das suas águas mais sujo de poeira do que estava.

— Não foste tal - replicou Paulo. - Desse rio, nem sequer ainda pisaste as margens.

— Como te enganas!...

— Não me engano. Ou quererás chamar amor àquela paixão fantástica de que falas num dos capítulos do teu romance?

— Não, três vezes não - tornou Eugênio. - Refiro-me ao amor, tal qual ele é, como eu o compreendi quando fui poeta, como tu o compreendes. Senão, atende-me.

— Fala - respondeu Paulo.