Peleja da Alma
Havia um homem no mundo
Dono de muita riqueza
Homem de muita valia
Homem de muita nobreza
Dizia que só trabalhava
Pra sustentar a avareza
Era rico desta forma
E não estimava a pobreza
Este homem era casado
E de Deus não tinha auxílio
Por sua infelicidade
A mulher não tinha filho
Andava se maldizendo
Com tão semelhante estrago
Dizia que só trabalhava
Pra sustentar o diabo
— Foi um dia na igreja
Pediu com lágrimas doces
Que o bom Deus lhe desse um filho
Fosse de que jeito fosse
— Assim que ele pediu
Deus do Céu determinou
Que a cabo de poucos meses
A mulher um filho encarnou
Teve nove meses no ventre
Foram nove meses de dor
Assim, do modo seguinte
Deus do Céu determinou
A cabo de poucos meses
A riqueza se acabou
Nascendo o dito menino
Riqueza nenhuma achou
Nasceu o dito menino
Ficou com muita alegria
Procurando padrinho rico
Com arte de sabedoria
Procurando um homem rico
Para ser padrinho do filho
Só não procurava os pobres
Porque eles não serviam
Os restos dos farelinhos
Se acabaram nesse dia
— Pegou este menino
Mal educado criou
Nunca lhe deu um conselho
Para o bem nunca educou
O menino logo de pequeno
O pai e mãe largou
Não quis saber de padrinhos
Nunca mais o procurou
E para amar a Deus
Também nunca se lembrou
Nunca foi ao pé do padre
Também nunca jejuou
Nunca deu uma esmola
Nem por Deus, nem por seu amor
Os mandamentos divinos
Toda vida desprezou
Só entrou dentro da igreja
No dia em que se batizou
Nesta miserável vida
Deus depressa o matou
Quando teve de morrer
Neste ínterim infeliz
Foi logo se confessá
Com Deus, o reto juiz
E chegou aos pés de Deus
Tratou de se ajoelhar
Publicando estas palavras:
"Senhor, me quero salvar"
— Deus olhou para a alma:
"Alma de onde viesses?
Com idade de 31 anos
Que pelo mundo estivesses
Sem te lembrares de mim
Como é que me apareces?
Para eu poder te salvar
Primeiro te confesses
Publica por tua boca
Que benefícios fizesses?"
— Eram diabos de todas as maneiras
Diabo roxo, diabo preto
Uns com garfos
Outros com facas
Outros com ferro
Outros com espeto
Perguntavam uns aos outros:
"Em qual cama nós a deita?"
— A alma olhou para Deus:
"O que será de mim aqui
Nos pés do reto juiz
Onde não posso mentir...
Mas... como vós me obrigais
Com vós me confessarei
Meus ocultos pensamentos
Eu de vós não negarei:
Muito cedo, bem pequeno
Meu pai e minha mãe larguei
Não quis saber de padrinho
Nunca mais o procurei;
Para amar ao nosso Deus
Também nunca me lembrei
Nunca fui aos pés do padre
Também nunca jejuei
Esmola por vosso amor
Eu no mundo nunca dei
Os mandamentos divinos
Toda a vida desprezei
Só entrei dentro da igreja
No dia que me batizei
Nesta miserável vida
Não sei como me salvarei"
Todos os diabos falaram
Tudo em palavras belas
Lucifer dizia aos outros:
"Que confissão aquela!..."
Deus olhou para a alma
Em seu sentido moderno:
"Como eu sou reto juiz
Completo senhor eterno
Está justa minha sentença
Estás condenada ao inferno".
Os diabos gritavam
Outros sorriam
Lucifer dizia aos outros:
"Daquela sentença eu sabia!"
Quando eles foram vendo
Deus do Céu sentenciá-la
Uns gritavam, outros uivavam
Batiam palma em senzala
"Se não fosse ao pé de Deus
Acolá queria pegá-la!"
A alma viu-se apertada
De angústias e agonias
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem Maria
Para ver se como mãe
Que ainda a socorria
"Maria, Virgem Maria
Mãe de meu Deus Redentor
Mãe de Deus e mãe de Cristo
Mãe do Padre Salvador
Rogai por mim a teu filho
Que nesta hora me condenou!"
— "Alma sai-te dos meus pés
Para que vem valer-te de mim?
Que meu filho, reto juiz
Não faz o que é ruim"
Lucifer se levantou
Disse: "Alma, que viesse ver cá?
Manuel já deu a sentença
Maria jeito não dá
Aquilo que Manuel faz
Não é para Maria desmanchar."
— "Senhora, tem compaixão
De minha necessidade
Já que o pecado roubou
A minha felicidade
Será possível, Senhora?...
O próprio pecado diz
Que eu me vejo a vossos pés
— Ainda hei de ser feliz
Maria, Virgem Maria
Esposa do Espírito Santo
Se vós não me valerdes
De vossos pés não me levanto
— Maria, Virgem Maria
Vai pedir a teu bom filho
Que teu pedido não rejeita
Se vós não fores ouvida
Então irei satisfeita"
"Pobre alma fica aí
Que vou falar com Domício
Para ver se como mãe
Inda dou um jeito a isso"
— Os diabos quando foram vendo
A Virgem para a partida
Lucifer dizia aos outros:
— "Lá vai a compadecida!
Pelo jeito que estou vendo
Esta sentença é perdida"
E os diabos lá ficaram
Todos com a cara torta
— "Lá vai a compadecida!
Mulher que com tudo se importa
Pelo jeito que estou vendo
Esta sentença está torta"
Nossa Senhora pediu
Rogando a Nosso Senhor:
— "Filho meu, meu bento Filho
Filho e meu Redentor
Aquela alma esteve aqui
Por que Jesus não a salvou?
Dizei-me, meu bento Filho
Foi ela só quem pecou?"
— "Minha mãe, para que me pede
Perante sua linda imagem?"
— "Por que vós não condenastes
O bom ladrão da Pelagem?"
"Filho meu, meu bento Filho
Consolação dos aflitos
Para que vós salvastes
A Maria do Egito?"
— "Minha mãe, para que me pede
Como no seu coração?
Aquela infeliz esteve aqui
Privada da salvação
Que pecou sem ter temor
Sem a menor compaixão"
— "Valha-me Santa Isabel
Nossa Senhora Santana
Estou vendo meu bento Filho
Com as feições tão tiranas!
Por aqueles nove meses
Que estivesse em carne humana!"
— "Minha mãe, como me pede
Por Santana e Santa Isabel
Posso dar algum recurso
Com a vista de São Miguel!"
— "Pronto estou aqui, Senhor
À vossa disposição!
Como havia de faltar
À Virgem da Conceição
Sabendo que, poderosa
Tem o remédio nas mãos!
Felicidade da alma
A quem der a proteção
Ela querendo derruba
Té a força do Aragão!"
Lucifer se levantou:
— "Tenho razão de falar
Esta alma já é minha
Pois Miguel, queres tomar?"
— "Maldito cabo de embira
Quem foi que te chamou cá
Vais para as profundas do inferno
Pois é lá que é teu lugar
Voltemos pra trás, Miguel
Vamos falar com o juiz
Pra ver que se dá recurso
Pra aquela alma ser feliz."
"Dizei-me, meu bento Filho?
Onde está vosso poder
Se aquela alma tem castigo
Pronta estou pra receber"
— "Minha Santíssima mãe
Botai-me vossa bênção
Que a senhora é a Rainha!
É a flor da Redenção".
Foi a protetora da alma
Que satisfez a paixão!
Se não fosses, ó Maria
Uma protetora tão forte
Soberana Virgem Pia
Se não fosse a Rainha
Bem pouco se salvaria"
"Vem cá, Miguel! — Quem me chama?
Lucifer que vá embora
Que ele não tem parte em nada
Que a alma que ele veio ver
Da Virgem foi amparada"
"Está tão triste o Maldito!
Eu alegre agora estou!
Recebe esta embaixada
Que o Rei dos Reis te mandou:
Disse que fosses embora
Para tormentos eternos
Fosses em chamas de fogo
Pras profundas dos infernos
Disse mais que aquela alma
Que tu viesses tentar
Hoje triunfa na glória
A Virgem fez triunfar"
Disse o diabo a São Miguel:
"Pois nada posso lucrar?
Meus serviços são perdidos
Não vale a pena tentar!"
"Desgraçado sem ventura
Um milhão tem de tentar
A todos que iludires
Pretendo sempre tomar"
"Desgraçado sem ventura
Como queres pelejar?
Já estou fazendo um serviço
Sem Jesus Cristo mandar"
Lucifer se levantou
Lendo num livro sem letra
Com pé de preá cambeta
Faiscando pelos olhos
Lançando brasas de fogo
Fazendo muitas caretas
São Miguel saiu sorrindo
"Dou-te figas, cara preta!"
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.