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Pensar é preciso/I/O pensamento reflexivo: Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Estoicismo e Cinismo

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Sócrates (470-399): “Sei de nada saber”

O pensamento reflexivo, pelo qual os gregos começaram a questionar seus mitos sobre as divindades do Olimpo e a procurar a origem e a formação do universo, a partir da própria natureza cósmica, começou com os filósofos pré-socráticos. Mas, como afirma o escritor latino Marcuss Túlio Cícero, foi Sócrates

“o primeiro a fazer descer a filosofia do céu e a instalou nas cidades e a introduziu nos lares, obrigando-a a indagar acerca da vida e dos costumes, do bem e do mal”.

O pensamento do primeiro grande mestre de filosofia está contido nos Diálogos do seu discípulo Platão que, por sua vez, foi mestre de Aristóteles. Esta tríade de pensadores gregos lançou a base de toda a filosofia no Ocidente. Sócrates não deixou nenhum escrito, por dois motivos: ele achava que não sabia nada e que se aprende algo só através do diálogo, da discussão. Seu método de ensino tinha duas etapas: pela “ironia”, ele fazia perguntas a seus discípulos, criando a dúvida sobre seus conhecimentos; pela “maiêutica” (= parteira, a profissão de sua mãe), fazia com que a verdade, que estava no espírito do interlocutor, viesse à luz da consciência.

Ele foi, portanto, o criador da “autognose”, o conhecimento a partir de si próprio, pois o saber está dentro de nós, não vem de fora. Ele nos ensinou a pensar com a nossa própria cabeça, questionando a doxa, a opinião comum, que é enganosa, e legitimando o “paradoxo”, o pensamento que vai “além” do parecer, buscando uma verdade verdadeira. Por colocar em dúvida as crendices e os valores morais da época foi acusado de corruptor da juventude e condenado à morte, tornando-se o primeiro mártir do livre pensamento. Sua figura é comparada à de Jesus Cristo, também ele vítima de uma massa ignorante que se deixa influenciar por líderes fundamentalistas, contrários a qualquer forma de evolução.

Para dar um exemplo do funcionamento do método socrático de ensinamento, praticado por perguntas e respostas, transcrevo um trecho da peça do comediógrafo grego Aristófanes, As Nuvens, adaptado por Christopher Hitchens (Deus não é grande, pág. 237):

“Um fazendeiro das vizinhanças (da escola de ceticismo, em Atenas) se sai com uma das habituais perguntas obtusas feitas pelos fiéis, como: se não há Zeus, quem manda a chuva para regar as plantações? Convidando o homem a utilizar sua cabeça por um segundo, Sócrates (o filósofo funciona como personagem da peça) destaca que, se Zeus pudesse fazer chover, poderia haver chuvas em céus sem nuvens. Como isso não acontece, deve ser mais sábio concluir que as nuvens são a causa da chuva. Tudo bem, diz o fazendeiro, mas então quem coloca as nuvens em posição? Certamente deve ser Zeus. Não, diz Sócrates, que explica os ventos e o calor. Bem, nesse caso, replica o velho rústico, de onde vêm os raios para punir os mentirosos e os que agem errado? Os raios, é gentilmente explicado a ele, não parecem discriminar justos e injustos. De fato, freqüentemente é noticiado que eles atingem os templos do próprio Zeus olímpico. Isso é suficiente para derrotar o fazendeiro, embora ele depois abjure sua falta de reverência e queime a escola com Sócrates dentro”.

Também, pudera! O autor da peça, Aristófanes (445-386), era um rico proprietário de terras, crente reacionário e misógino. Conseqüência da postura filosófica de Sócrates era sua concepção da moral, que devia ser liberta de qualquer superstição religiosa. Ele achava que o único pecado do mundo era a ignorância, vista como a causa de todos os males. A maldade, dizia o velho mestre, não existe em si, sendo apenas o desconhecimento do que é o certo. Quando o homem comete uma atrocidade é porque ele não sabe o que está fazendo ou, melhor, ele pensa de estar fazendo a coisa certa. Efetivamente, quanto mal não se comete, pensando de fazer uma obra de bem. Hoje diríamos que de boas intenções está cheio o inferno!


Platão (428-348): o mundo das idéias

O discípulo mais famoso de Sócrates foi Platão, um rico aristocrata, fundador da Academia (do nome do herói Academos, amigo do mestre), um parque de Atenas onde se juntavam, além dos esportistas, também pensadores, poetas e artistas. Platão começou sua atividade de filósofo questionando a democracia de Atenas que condenara à morte Sócrates, “o mais sábio e o mais justo de todos os homens”. Politicamente, ele propunha uma república comunitária, onde seria abolida a propriedade privada, inclusive dos filhos que seriam educados pelo Estado. Na sua República, os cidadãos seriam divididos em três classes, de acordo com as três partes da alma humana: a razão, própria dos filósofos, a coragem dos guerreiros e o instinto dos trabalhadores. O Estado encaixaria cada indivíduo numa classe social conforme sua aptidão natural. Evidentemente, o governo da cidade estaria a cargo dos filósofos, a classe privilegiada.

Como se vê, apesar dos melhores propósitos, também os gênios escrevem besteiras, propondo uma ditadura educacional exclusivamente estatal, sem a participação da família, num contexto cultural eugênico de elite. O problema de Platão é que ele foi essencialmente um sonhador, vivendo no mundo das idéias, que ele inventou de uma forma gratuita, apenas como pressuposto teórico, sem nenhuma sustentação no plano da realidade. Foi por isso que o qualificativo “platônico” passou a ser sinônimo de ideal, utópico, algo inatingível. Sua teoria do conhecimento está baseada em duas hipóteses completamente indemonstráveis: a existência do mundo das idéias, essências puras e eternas, das quais os objetos do mundo real seriam apenas cópias imperfeitas; e a reminiscência, pela qual a alma humana, preexistente ao nascimento da parte material do homem, teria contemplado as idéias antes de juntar-se ao corpo, considerado a prisão do espírito.

Para o filósofo grego, portanto, saber é “recordar” o que a alma sabia antes da encarnação. Talvez, Platão, ainda ligado à tradição grega de criar mitos divinos para explicar comportamentos humanos, tenha inventado o “mito da caverna”, para entender o processo psicológico da aprendizagem, que se dá pela repetição e recordação. Geralmente, nós não aprendemos pela primeira vez. Precisamos voltar no tempo para que imagens e sensações amadureçam no nosso espírito. Um livro, um filme, uma música adquirem uma compreensão bem melhor quando revistados após anos de experiência. No livro VII de seu diálogo República, o filósofo narra a seguinte alegoria: numa caverna há homens amarrados por correntes, de frente para uma parede e de costas para a luz. Na parede são projetadas apenas as sombras dos objetos. O ser humano só percebe a aparência (os fenômenos) das coisas, pois a realidade (as idéias) está fora da caverna, na luz do sol, somente atingível pela atividade intelectual, pelo pensamento reflexivo. Na unidade do Sol estaria contida a trindade das idéias fundamentais: a do bom, do belo e do verdadeiro, que interagem, pois não existe Bondade sem Verdade ou sem Beleza.


Epicuro (342-270): o culto do prazer (hedonismo)

Carpe diem (aproveite o momento que passa): este verso do poeta latino Horácio, um admirador entusiasta de Epicuro, se tornou proverbial, pois sintetiza uma doutrina que coloca na busca do prazer a finalidade de qualquer atividade dos seres vivos. O homem estuda e trabalha para adquirir posição social e dinheiro, de que se serve para satisfazer, da melhor forma possível, seus dois instintos básicos: a conservação própria, pela alimentação, e da sua espécie, pelo acoplamento sexual. Sábio, porém, é quem usa o prazer de uma forma ponderada, pois qualquer excesso é prejudicial: se comer menos do que precisa, pode sofrer por inédia ou anorexia, se comer mais, estará sujeito aos males causados pela obesidade. Portanto, in médio stat virtus (a virtude está no meio-termo), citando outro verso do epicurista Horácio.

As poucas notícias sobre o filósofo grego Epicuro, considerado, como Sócrates, um “mestre” de vida, nos foram transmitidas por discípulos e admiradores. Sabemos que lecionou em várias cidades da Grécia, em Atenas inclusive, pregando o Atomismo de Demócrito, com uma postura materialista. Mas ele passou à posterioridade pela sua doutrina moral, fundamentada no Hedonismo (do grego hedone = prazer), que prega o equilíbrio entre os prazeres possíveis. Epicuro foi o primeiro pensador ocidental a negar claramente a possibilidade da existência de uma “providência transcendental”, de um Deus preocupado com suas criaturas. Num fragmento de seus escritos, lemos:

“Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom;
ou quer mas não pode: então não é onipotente.
Em cada qual das duas hipóteses: ele não existe!”

A contradição da existência do mal, junto com a crença na bondade divina, inquietou não apenas Epicuro, mas também muitos sábios posteriores que procuraram encontrar uma explicação racional. Santo Agostinho tentou resolver o dilema pela teoria do livre arbítrio: Deus deu ao homem a liberdade de fazer o mal e, portanto, ele pagaria o preço pela maldade cometida. Mas, e quando não há culpa pessoal? Como acreditar num Deus Onipotente e Misericordioso face à dor das vítimas inocentes de um terremoto ou de um desastre aéreo? Que dizer, então, da mortalidade infantil, de genocídios, de ódios étnicos, de bolsões de miséria extrema?

Em verdade, o mal, em qualquer uma de suas formas, constitui um mistério racionalmente inexplicável para quem acredita na existência de um Ser Transcendental que, por ser Deus, deve necessariamente ser “Perfeito”, possuindo todas as virtudes, no máximo grau, na virtualidade e na ação. O epicurista prefere não se inquietar com problemas religiosos insolúveis à luz da razão, como a morte e a hipótese da existência de outra vida, vivendo apenas o momento presente, da forma mais natural e prazerosa possível, atento apenas em respeitar a liberdade e os direitos do seu semelhante. Se alguém me perguntasse qual é meu credo, não teria dúvida em responder: não sou judeu, ateu, cristão ou islamita: considero-me apenas um epicurista!


Estoicismo: a virtude, acima de tudo!

Na Grécia antiga, quase concomitante com o Epicurismo, surge outra importante doutrina filosófica, mas em direção oposta. Enquanto o mestre Epicuro exaltava o prazer, Zenão de Cítio (335-264) ensinava que o sumo bem estava na virtude, no desapego aos bens materiais. Ele fundou a Escola do Pórtico (stoá, significa “pórtico”, o átrio sustentado por coluna onde o mestre discursava sobre filosofia) e teve ilustres seguidores, especialmente na Roma do 1° e 2° séc. d.C: Sêneca (60-39), Epicteto (55-135), Marcus Aurélio (121-180).

Conforme alguns estudiosos, a “teoria do justo”, apregoada pelo Estoicismo, estaria na base do Direito Romano, disciplina ainda hoje estudada nos cursos de jurisprudência. Os estoicos, como a maioria dos pensadores antigos, não acreditavam na existência de um ser fora do universo, preexistente e criador, pois, para eles, Deus era a própria totalidade do mundo. Todos os seres existentes (homens, animais, plantas, pedras) participariam desta forma de panteísmo (Deus está em todas as coisas), cada qual sendo uma partilha cósmica, de acordo com sua natureza. A morte, para os estoicos, não é aniquilamento, mas transformação, uma passagem para outro estado, no seio do universo. Segundo um profundo estudioso de Epicteto, Luc Ferry (Aprender a viver), as duas grandes fontes de infelicidade, apontadas pelos estoicos, são o peso do passado e as miragens do futuro. É preciso viver o momento presente, deixando de lado quer a carga pesada das tradições inibidoras, quer as ilusões de uma vida feliz num além misterioso.

Mas a doutrina estóica, também ela, não consegue superar a angústia existencial, causada pela finitude do ser humano. A idéia da transmigração da alma de um corpo para outro, que já se encontrava no Budismo e será retomada pela Doutrina Espírita, além de não ter nenhum fundamento lógico, não é satisfatória. O homem não gostaria de ser transformado num fragmento cósmico indiferenciado, nem, após sua morte, reencontrar os entes queridos sob forma de legumes. Por isso, o estoicismo, como as outras doutrinas morais da antiguidade, foi superado pelo nascente Cristianismo, que prometia ao homem um final bem mais feliz.


Cinismo: vida de cão!

A doutrina cínica tem muito em comum com o pensamento estoico, tanto que Crates de Tebas (365-285), discípulo de Diógenes de Sínope, o maior expoente do cinismo, foi mestre de Zenão de Cítio, o pai do estoicismo. A diferença pode residir no fato de que os estoicos construíram um sistema teórico-cosmológico acima do que os cínicos consideravam apenas uma prática de vida, uma moral sem nenhum fundamento filosófico. A origem etimológica do termo “cínico” é kunós, que em grego significa “cão”, o animal mais impudico. Na verdade, o cinismo defende um retorno à vida da natureza, com base apenas no instinto, rejeitando qualquer forma de cultura ou civilização, ensinando a viver naturalmente. Narra-se que Crates chegava a fazer sexo em público com sua esposa Hiparquia, imitando os animais.

Em verdade, o que houve foi uma crise de valores, pois os cínicos passaram a desacreditar nas instituições jurídicas, religiosas e sociais, incapazes de proporcionar felicidade ao homem. Apelaram, então, para formas de autarquia, às vezes chegando à anarquia. Ensinavam e praticavam a auto-suficiência, dispensando tudo o que fosse desnecessário para viver. A libertação não era apenas dos objetos materiais, mas também com relação aos sentimentos, não se preocupando com o sofrimento, a saúde ou a morte nem de si próprios, nem dos outros, familiares ou amigos Por isso, a palavra cinismo adquiriu a conotação, que ainda persiste hoje em dia, de indiferença e insensibilidade ao sentir e sofrer dos outros.