Pensar é preciso/II/Doutrina Espírita

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O moderno Espiritismo ou “Kardecismo” pode ser considerado uma acoplagem do antigo Budismo e Platonismo com o Cristianismo e a Parapsicologia, também chamada de Metapsíquica, uma disciplina que, a partir do final do séc. XIX, começou a estudar fenômenos que ultrapassam as leis conhecidas da natureza ou fogem da experiência comum. Seu fundador foi Allan Kardec (1804-1869). O fato extraordinário que motivou o professor francês foi o seguinte: em março de 1848, na cidade de Nova York, duas irmãs, Margareth e Katherine Fox, filhas de um pastor metodista, morando numa casa de madeira considerada mal-assombrada, passaram a ouvir estranhos ruídos. Incomodada, Katherine pediu que o “demônio” causador dos inexplicáveis ruídos repetisse as batidas que ela mesma produzira. O espírito teria atendido ao pedido da moça, inaugurando, assim, uma espécie de “telégrafo espiritual”, concomitantemente à invenção do telégrafo elétrico pelo cientista e pintor norte-americano Samuel F.B. Morse (1791-1872). Mediante a atividade de “médiuns” (meios, intermediários entre os Espíritos e os homens), perguntas verbais e mesmo mentais dos vivos podiam ser respondidas por uma série de batidas em código por parte das almas dos mortos. A faculdade mediúnica podia ser exercida também por outros sentidos humanos (vista, tato, olfato), chegando também à escrita diretamente ditada pelos Espíritos (psicografia).

Os fenômenos de comunicação com espíritos atraíram multidões e as irmãs médiuns ganharam muito dinheiro com isso, profissionalizando seus dotes. Houve investigações, desmentidos, confissões de fraude, seguidas de retratações, enfim, criou-se uma lenda sobre as irmãs Fox. Allan Kardec estudou as manifestações espíritas das irmãs norte-americanas e de outros médiuns, fenômenos paranormais (mesas girantes, levitação, telepatia) e, após uma série de experiências, passou a acreditar na existência das almas independentemente do corpo e da sua comunicação com as pessoas vivas. Então mudou seu nome de Hippolyte Léon Denizard Rivail por Allan Kardec, nome de uma encarnação anterior, e expôs sua doutrina, em forma de perguntas e respostas, na obra O Livros dos Espíritos (1857), cujos prolegômenos, capítulos e conclusão são assinados, entre outros Espíritos Superiores, por São João Evangelista, Sócrates, Santo Agostinho e Swedenborg (1688-1772), um visionário sueco que pregara a doutrina da Nova Jerusalém, segundo a qual o mundo invisível dos anjos e dos demônios influenciaria a nossa realidade cotidiana.

O Espiritismo tem em comum com o Budismo os conceitos de karma, sansara e metempsicose: a vida humana é um elo de uma cadeia de vidas, o passado determinando o presente, que irá influir no futuro, conforme um processo de melhoramento (pelas boas ações) ou degradação (por ações ruins). Citando Allan Kardec, ao pé da letra:


“Deixando o corpo, a alma reentra no mundo dos Espíritos, de onde havia saído, para retomar uma nova existência material, depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece no estado de Espírito errante”.


É evidente a aproximação com a teoria das “idéias”, entidades espirituais, puras e absolutas, preexistentes à conjunção com os corpos, substâncias materiais, temporárias e enganosas, conforme imaginadas pelo filósofo grego Platão. Budismo, platonismo e espiritismo comungam a idéia de que a vida neste planeta é uma prisão, um castigo por pecados cometidos numa vida anterior, o homem sendo expulso de outro mundo e exilado neste de cá. O moderno budismo tibetano, com centro no mosteiro de Dharamsala, no norte da Índia, domínio do líder espiritual Dalai Lama, e com filiais em vários outros países, prepara crianças para serem tulkus, “pequenos budas”. A regra para reconhecer um ser re-encarnado é submetê-lo a um teste para ver se lembra da vida anterior. Há muitas rixas entre os monges para promover um protegido à condição de pequeno Buda.

Mohandas Gandhi é considerado o Jesus Cristo indiano. Alcunhado de Mahatma (a Grande Alma), Gandhi (1869-1948) é o mais moderno representante da espiritualidade hinduísta, relacionada com o antigo Budismo. De uma família indiana de classe média, estudou Direito em Londres, viveu por muitos anos na África do Sul, onde lutou contra o racismo da dominação britânica. Na sua obra Autonomia da Índia contesta o materialismo da civilização ocidental, propondo um ascetismo sem violência. Seu meio de ação inspirava-se no princípio do Satyagraha (reivindicação cívica da verdade). Para Gandhi, não pode existir paz verdadeira sem justiça social. Lutando contra qualquer tipo de violência e acreditando na possibilidade do desarmamento mundial e numa paz universal, passou à história como “o santo do século”, também chamado de novo Jesus Cristo por ter morrido pregando o amor entre os homens: foi assassinado por um extremista hindu, que tinha o ódio no coração.

A Doutrina Espírita comunga com o Cristianismo, além da crença num Deus transcendental, o conceito de moral fundamentado no amor ao próximo. Reafirma a regra universal de conduta que já se encontra, como veremos, no Código de Hamurábi, nos mandamentos de Moisés e na legislação de todas as grandes religiões. Esta moral é ensinada pelos Espíritos “superiores”, cuja função é recordar e complementar o que Jesus Cristo ensinou. Mas o kardecismo se distingue fundamentalmente do cristianismo pela negação da divindade de Jesus (Ele seria apenas o maior Espírito Superior reencarnado) e do apocalipse: a lei cósmica do plantio e da colheita, do prêmio às almas boas e do castigo aos maus, não se realiza no Juízo Final, mas através das várias encarnações neste mundo.

Do ponto de vista filosófico ou científico, a doutrina espírita não tem nenhuma sustentação, pois nem a razão, nem a ciência conseguem atestar a existência das almas separadas dos corpos, neste mundo ou num outro. Quanto a fenômenos para-normais, atribuídos a forças mediúnicas, não porque a ciência ainda não consegue explicá-los completamente somos autorizados a admitir uma intervenção sobrenatural. É preciso lembrar que os gregos primitivos, não conhecendo a origem dos raios, pensavam que fossem setas de fogo de Júpiter, lançadas para punir os humanos faltosos! Acontece que o inconsciente pode levar algumas pessoas, dotadas de um alto grau de percepção (mediunidade), a fazer coisas extraordinárias, aparentemente até milagrosas, sem que a autoria tenha que ser atribuída a entidades sobrenaturais. Há indivíduos que, num estado alterado de consciência, dizem e fazem coisas inacreditáveis, chegando a manifestações de xenoglossia: falam linguagens estrangeiras, desconhecidas, arcaicas, nunca ouvidas antes por nenhuma pessoa presente. Fenômenos de animismo, assim como os milagres religiosos, são mistérios que a ciência ainda não conseguiu plenamente desvendar. Shakespeare já disse que


“há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”,


mas isso não nos autoriza a acreditar na existência de um mundo transcendental. Allan Kardec pode ser considerado mais um profeta, um homem que, num certo momento de sua vida, começou a se achar um “iluminado”, que veio ao mundo para salvar a humanidade. No capítulo VII da Introdução do seu Livro dos Espíritos, ele afirma:


“Quando as crenças espirituais forem vulgarizadas, quando forem aceitas pelas massas e, a julgar pela rapidez com que elas se propagam, esse tempo não estaria longe, ocorrerá com ela o que ocorre com todas as idéias novas que encontraram oposição: os sábios se renderão à evidência”.


Ora, depois de mais um século e meio, o Espiritismo ainda não se afirmou como ciência, não passando de uma crença semelhante ao antigo Budismo. O grande mérito de Allan Kardec foi o de que, diferentemente de outros profetas, como Moisés ou Maomé, não apelou pela violência para expandir seu credo, pregando o amor e o surgimento de uma fraternidade universal, respeitando o sentimento religioso de todas as etnias. No seu túmulo, lemos:


“Nascer, viver, morrer, tornar a nascer e evoluir sempre. Esta é a lei”


Lutar pela evolução do ser humano, estando sempre disposto a adequar a fé às novas conquistas da ciência, é um dos aspectos positivos (junto ao repúdio de qualquer forma de violência) que diferencia o Espiritismo das três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, todas atreladas a dogmas fixos, imutáveis, impostos pelas autoridades eclesiásticas.

No Brasil, onde 40 milhões de cidadãos declararam cultivar o Espiritismo, o mais célebre divulgador da Doutrina Espírita foi Francisco Cândido Xavier (1910-2002), médium de Uberaba-MG, vulgarmente conhecido por Chico Xavier. Ele publicou mais de 400 livros psicografados, entre os quais relevamos Queda e ascensão da Casa dos Benefícios. Esta obra, conforme a crença, foi-lhe ditada pelo espírito Bezerra de Menezes, que deu nome a vários hospitais psiquiátricos em muitas cidades do Brasil. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831-1900), nascido no Ceará e formado médico no Rio de Janeiro, proclamou sua adesão ao Espiritismo em 1875 e dedicou sua vida à assistência dos pobres, passando à história como o apóstolo da caridade. Além da sua função social, o Kardecismo no Brasil visa melhorar a vida interior de cada um. Independentemente da crença na existência de almas fora de um corpo, de sua transmigração e de sua comunicação com os seres vivos, o Livro dos Espíritos pode ser aceito como uma boa leitura de auto-ajuda.