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Pensar é preciso/VI/La Divina Commedia

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La Divina Commedia, de Dante Alighieri.


A Divina Comédia constitui, sem dúvida alguma, o maior monumento literário que nos deixou a segunda fase do Medievo, sendo seu autor o florentino Dante Alighieri (1265-1321), o maior poeta da língua italiana. Ele se tornou o símbolo da cultura da Itália e da Idade Média, assim como Shakespeare o é com relação a Inglaterra e ao Renascimento, Goethe com a Alemanha e o Romantismo, Dostoievski com a Rússia e a Idade Moderna. Dante intitulou sua obra “Comédia”, por um sentimento de humildade, visto que os antigos gregos distinguiam este gênero da “Tragédia”, que tratava de fatos gloriosos e de personagens heróicos.

Conforme alguns estudiosos, Aristóteles, além do primoroso estudo sobre a tragédia grega, que se encontra na sua Poética, teria composto também um tratado sobre a “Comédia”. Mas este texto, infelizmente, teria se perdido. O crítico e ficcionista italiano Umberto Eco concentra a trama de seu famoso romance O Nome da Rosa na busca desta obra de Aristóteles, não perdida, mas escondida na biblioteca de uma abadia medieval, tendo como título o Livro do riso. Crimes horríveis são cometidos para manter oculto este antigo tratado sobre o humor. Talvez o propósito principal do romance e do filme homônimo é demonstrar como o dogmatismo religioso impede a liberdade do ensino, da pesquisa, de qualquer conhecimento estranho às escrituras consideradas sagradas.

O poema de Dante é, pois, chamado de Comédia por tratar da vida e das crenças, dos pecados e das virtudes dos homens comuns da Florença de sua época e também porque, ao contrário da tragédia, começa com a tristeza (a vida no inferno) e termina com a alegria do paraíso. Mas é considerado, igualmente, um poema épico pela grandiosidade temática que transcende os limites da epopéia de uma nacionalidade para se tornar o canto da humanidade toda em busca da ascese espiritual. Quem lhe acrescentou o qualificativo de “divina” foi o escritor contemporâneo e conterrâneo de Dante, Giovanni Boccaccio, encantado pelo valor estético dos versos e pelo assunto transcendental da obra.

O poeta imagina que teve um sonho, durante a Semana Santa de 1300, o primeiro “Ano Santo” ou jubilar, inventado pelo papa Bonifácio VIII, para conceder indulgências dos pecados a todos os peregrinos que fossem rezar em Roma (qualquer semelhança com a viagem dos muçulmanos a Meca é pura coincidência!). Durante o longo sonho visitou as três partes do mundo ultraterreno, conforme a crença da religião católica: Inferno, Purgatório e Paraíso. A descrição desta viagem é o conteúdo da Divina Comédia, poema dividido em três cânticos, cada cântico composto de 33 cantos, em estrofes de três versos. O número três, calcado na Trindade divina, era considerado mágico na Idade Média e está presente na obra toda: três feras e nove (3+3+3) círculos no Inferno, nove patamares no Purgatório, nove céus no Paraíso. As três partes da obra terminam todas com a mesma palavra: “estrelas”. A soma das três partes, 3 vezes 33, dá 99 cantos, mais um introdutório no começo do Inferno, completa o número 100. Tudo isso faz da Divina Comédia o poema melhor estruturado de toda a literatura ocidental.

Dante imagina o Inferno formado por uma profunda voragem, em forma de funil, aberta pela queda de Lúcifer, quando o anjo rebelde foi derrotado por Deus e lançado no centro da terra, nas proximidades da cidade de Jerusalém. Nesta cratera, composta de nove círculos, sempre mais estreitos na medida em que se desce, estão distribuídas as almas dos que morreram em estado de pecado e, por isso, condenadas às penas eternas. Dante, acompanhado pelo poeta latino Virgílio de quem se sente discípulo, pois da leitura do poema Eneida ele teve a inspiração para a viagem no mundo do além-túmulo, começa a descida, visitando e conversando com as almas famosas da antiguidade greco-romana e de seus contemporâneos. A intensidade do sofrimento é correlata à gravidade dos pecados cometidos, sempre aumentando na medida em que se aproxima do último círculo, o dos traidores, onde está afixada para sempre a figura imensa de Lúcifer.

Um dos episódios mais comovente, descrito no canto V do Inferno, é a narração do amor, da morte e do castigo de dois jovens, Paula e o cunhado Francisco. Percebe-se, no espírito do poeta, a coexistência de dois sentimentos conflitantes: a ética cristã que condena o adultério e o impulso irresistível da atração sexual que, por ser natural, não deixa de ser divino também, posto que Deus é o autor da natureza. Sua consciência de cristão reprova especialmente o “modo” como a vingança foi feita: colhidos no ato do adultério, os amantes foram assassinados sem chance de arrepender-se do seu pecado. Uns dois séculos mais tarde, o imortal dramaturgo Shakespeare vai descrever algo semelhante: Hamlet, o príncipe da Dinamarca, tendo a missão de vingar a morte do pai, ao perceber que o assassino estava sozinho na capela, rezando, reflete: se o matar agora, estando ele em estado de graça por ter pedido perdão de seus pecados, ele irá para o céu. Vou aguardar, então, outra oportunidade para causar sua morte, quando ele estiver numa orgia. É o requinte da vingança: matar o corpo e mandar a alma para o inferno!

O segundo cântico fala do Purgatório, uma montanha que se formou pelo deslocamento da terra para o lado oposto de Jerusalém, no hemisfério austral, depois da queda de Lúcifer. O sentido do movimento é o inverso: enquanto se desce para o Inferno (em forma de funil), sobe-se para o Purgatório (em forma de cone), até chegar à parte mais alta, próxima do céu. Dante e Virgílio visitam as almas que vão subindo, carregando os sete P (os pecados capitais): na medida em que alcançam um terraço vão se purificando e um P cai de suas costas. Os orgulhosos carregam recifes; os invejosos andam com as pálpebras costuradas; os raivosos são envolvidos por uma nuvem de fumaça; os preguiçosos têm que correr; os avarentos estão com pés e mãos atados; os gulosos sofrem do suplício de Tântalo: não conseguem alcançar as frutas na sua frente; os luxuriosos ardem em chamas.

Enquanto o Inferno é o reino da rigidez, onde tudo é fixado no tempo e no espaço, no Purgatório predomina o movimento, a passagem de um lugar para outro, do hoje para o amanhã. Estamos no reino da esperança da salvação, sendo a escalada da montanha o símbolo da ascese espiritual. O termo purgatório significa purificação, que se dá pela passagem das trevas da ignorância para a luz do conhecimento. Fazendo psicanálise antes do tempo, Dante nos ensina que a superação do mal só é possível por uma tomada de consciência do passado. Era preciso passar pelo Inferno para poder descobrir a origem do mal e encontrar sua cura. A causa primordial da desgraça humana é vista no egoísmo que caracteriza as almas que estão no Inferno; enquanto no Purgatório se evidencia um sentimento de compreensão mútua, pois as almas se comunicam entre si, com os vivos na terra e com os santos no céu, solicitando ajuda recíproca.

O Paraíso está bem no alto, acima da montanha do Purgatório, composto de nove céus, cada qual regendo um planeta. No topo de tudo está o empíreo, o céu imóvel, composto de pura luz, onde vivem Deus, a Virgem Maria, os coros angélicos, todos os santos e as almas dos justos, purificadas de seus pecados. Aqui o movimento não é nem ascendente, nem descendente, mas circular, a indicar a comunhão de todos na visão beatífica de Deus. Mas para Dante poder visitar este lugar, seu guia não pode ser mais o poeta Virgílio, porque, por ele ser pagão, não tem as credenciais para ascender ao céu. Seu novo guia vai ser a amada Beatriz, jovem angelical, inspiradora de sua poesia, que morrera havia alguns anos e já estava no gozo das belezas celestiais. Ela vai funcionar como intermediária entre Deus e o poeta. Por sua intercessão ele consegue a salvação. No Paraíso os olhos de Beatriz são constantemente apresentados como fonte de luz e de amor. É a concepção do amor idealizado da poesia trovadoresca que em Dante adquire sua expressão mais sublime.

É muito difícil colocar num pequeno espaço possível neste presente trabalho toda a magnitude da Divina Comédia. Queria apenas estimular a leitura do fabuloso poema dantesco. Ele encerra o que de melhor o gênio humano tinha produzido até então. É a súmula da cultura ocidental até o século XIV, antes da explosão da verdadeira Renascença européia. Dante Alighieri é o primeiro poeta numa língua neolatina a retomar a literatura e a filosofia da Grécia e da Roma antiga, obliteradas durante a longa noite da Idade Média. Ele nos fala da mitologia greco-romana, da filosofia de Aristóteles, da poesia épica de Virgílio.

Mas todo o cabedal cultural da antiguidade passa pelo prisma da religião cristã, em que foi educado desde a primeira infância. Sua concepção de fé está fundamentada na Summa Theologica de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), chamado de “Doctor Angelicus” pela profundidade de seu pensamento e pela santidade de sua vida. O frade dominicano tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a doutrina cristã, achando que fosse possível a razão andar junto com a fé.

O sonho de juntar a crença com o raciocínio, o humano com o divino, foi possível a Tomás de Aquino porque era um santo e foi também possível a Dante porque era um poeta. Para a Arte, como para a Religião, tudo é possível, pois as duas atividades humanas utilizam o mesmo meio de expressão: a fantasia, que é a grande criadora de mitos, de histórias fantásticas, que nos convidam à crença, independentemente da lógica. Nunca poderíamos saber se Dante, como homem e não como poeta, acreditava realmente na existência de um mundo ultraterreno, num inferno ou purgatório, em penas eternas, na sobrevivência das almas, enfim, nos dogmas e nos princípios éticos da religião cristã.

O problema é que o ser humano, por mais genial que seja, não deixa de ser filho da sua época, educado desde a terna infância num conjunto de valores que o inclinam para uma determinada visão do mundo. Os gregos chamavam de “paidéia” e os latinos de “forma mentis” o conjunto de fatores genéticos e ambientais, decisivos para a formação da personalidade humana. O florentino medieval Dante Alighieri acreditava nos dogmas da fé católica da mesma forma como o grego Aristóteles, talvez o homem mais sábio da antiguidade, considerava ético o estado de escravidão humana ou se perguntava se a mulher teria uma alma. É apenas uma questão de tempos!