Pensar é preciso/VII/O Fausto de Goethe

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Goethe: o mito do Dr. Fausto (a venda da alma ao demônio)

O maior expoente do Romantismo e de toda a literatura alemã é Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), considerado o poeta nacional da Alemanha, como Dante da Itália e Shakespeare da Inglaterra. Sua obra é muito vasta, produzindo textos maravilhosos nos três gêneros literários: narrativa, lírica e drama. Neste estudo, vou fazer apenas referência à peça Fausto, onde se encontra o mito do homem que vendeu sua alma ao diabo. A tradição cultural européia registra, com o nome de Doutor Fausto, um homem que viveu na Alemanha entre 1480 e 1540. Ele acabou sendo qualificado por historiadores como um falso médico, praticante de alquimia e de magia, audacioso aventureiro, milagreiro e charlatão, luxurioso e homossexual, bom humanista. Goethe deu vida literária a esta lenda, tornando a figura de Fausto mundialmente famosa.

O drama apresenta três personagens principais: Fausto (um jovem estudante), Margarida (uma moça ingênua) e Mefistófeles (a personificação do Diabo). Lá, no céu, há uma aposta entre Deus e o Diabo a respeito do comportamento, lá na terra, de Fausto, jovem irrequieto e amante dos prazeres da vida, mas atormentado pelo desejo de tudo conhecer e pela aspiração ao infinito. O Senhor diz a Mefistófeles que logo Fausto, pelas suas qualidades intelectuais e espirituais, conseguirá a Luz Divina, que lhe resolverá todas as dúvidas. O Diabo contesta e desafia Deus, pedindo-lhe permissão para descer na terra e seduzir o jovem, oferecendo-lhe bens materiais em troca de sua alma imortal. Aceito o desafio, o diabo se encarna em Mefisto, um estudante andarilho e aparece a Fausto, fazendo-lhe a proposta da troca da sua alma por todos os prazeres desejados.

O jovem aceita o pacto e, cumprindo o prometido, Mefisto leva Fausto numa adega para tomar vinho e na tenda de uma feiticeira que lhe dá um elixir para reforçar seu poder sexual. Logo se apaixona pela belíssima Margarida, mocinha de quinze anos, que não lhe dá bolas. Mefisto explica a Fausto que o diabo não tem poderes sobre uma jovem virgem e honesta, mas que nenhuma mulher resiste a presentes caros. Um cofre cheio de jóias preciosas acaba amolecendo o coração de Margarida, que ministra um soporífero a sua mãe e passa a noite com o namorado. Mas logo o pecado é castigado, dando origem a uma serie de desgraças. Seu irmão Valentim, jovem soldado, para vingar a honra da família, desafia Fausto num duelo, mas acaba sendo morto, pois o sedutor conseguira a ajuda do diabo. O sentimento de culpa pela morte do irmão e pela gravidez inesperada deixa Margarida num estado de prostração e de loucura. Margarida, na prisão, sente horror à presença do Diabo, que sempre acompanha o amado Fausto e prefere entregar-se à Justiça de Deus, suplicando pela salvação da sua alma. Vozes vindas do Alto anunciam que ela está salva. Fausto e Mefisto desaparecem sobre corcéis na fria madrugada. Cai o pano.

Expondo um dos sentidos possíveis da peça de Goethe, o protagonista Fausto representaria o ideal romântico do homem que, insatisfeito com a sua condição de mortal, recorre a qualquer meio para realizar seu sonho de atingir a felicidade. Só que o processo se desenvolve pelo modo irônico: chegar a Deus pela ajuda do Demônio; ser feliz renunciando à própria alma; conquistar um amor angelical mediante trapaças diabólicas. A renúncia à alma imortal em troca de bens materiais só poderia resultar numa degradação. Daí a conseqüência trágica da loucura de Margarida, vítima de sua paixão inocente. Talvez a beleza desta peça de Goethe esteja mesmo na representação do mundo de uma forma dialética: de um lado, a tese do amor puro, angelical, personificado em Margarida; de outro lado, a antítese do mundo sinistro, diabólico, de Mefistófeles, símbolo da sedução e do encanto dos desejos carnais; atraído pelas duas visões de vida contrárias, está no meio, como síntese, o personagem Fausto, amante de Margarida e amigo de Mefistófeles, símbolo da alma romântica constantemente balançando entre o ideal do sonho e o grotesco da vida real.

A insatisfação do homem com a sua condição de ser contingente, nascido para a morte e para a dor, tendo aspirações infinitas e realizações efêmeras, já criara mitos belíssimos na cultura hebraica e pagã. Vejam-se, por exemplo, os mitos bíblicos de Adão, que comeu o fruto proibido, e de Caim, que pecou contra Deus matando seu irmão; ou os mitos gregos de Prometeu que roubou o fogo divino e de Ícaro que queria alcançar o Céu voando com asas de cera. Trata-se de idealizações da revolta do homem contra as leis do universo, na tentativa de se igualar à divindade, como fizeram os mitológicos Titãs, que lutaram contra o todo-poderoso Júpiter.

Na cultura moderna, o personagem histórico-mítico de Fausto surge na época do Barroco, quando a alma européia acusa o conflito entre o gozo dos prazeres da vida, herança do Renascimento, e a ameaça de penas infernais sancionadas pelo Tribunal da Inquisição da Contra-Reforma católica. As sucessivas gerações românticas, especialmente nos países anglo-saxões, idealizam a figura de Fausto, fazendo dele o arquétipo do jovem colérico, revoltado contra a hipocrisia da vida burguesa, procurando refúgio na bebida, na arte, no amor, na morte. O lado positivo do “homem faustiano” é a figura ideal da humanidade moderna, que sonha com a liberdade e o progresso, libertando-se de qualquer tipo de preconceito. Do protótipo do homem faustiano ao modelo do homem nietzschiano o passo é breve. Outro alemão, o filósofo F. Nietzsche (1844-1900), negando qualquer forma de transcendência divina, irá exaltar o poder da vontade humana contra o determinismo religioso ou biopsíquico.

Mas o mito de Fausto, além de qualquer especulação de ordem filosófica ou religiosa, sobrevive na nossa realidade cotidiana, revelando uma postura ética recorrente. A lenda do homem que vende sua alma ao diabo é uma denúncia de todas as formas de desonestidade. Pelo “dando que se recebe”, praticado nos nossos dias, se realiza uma troca entre dois valores: o imediato e o individual que esmaga o futuro e o social. Vende sua alma ao diabo o político que se enriquece com o dinheiro público, que deveria ser destinado a escolas e postos de saúde; o banqueiro que, com sua pratica de agiotagem, se alimenta das lágrimas do endividado; o homem que não assume a paternidade; a mulher que não dá assistência a seus filhos; qualquer pessoa, enfim, que, cedendo a determinismos psicológicos, é levada a viver egoisticamente, praticando maldades contra seus semelhantes.