Pensar é preciso/VII/Realismo: Flaubert, Balzac, Zola, Dostoievski, Machado

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Realismo: Flaubert, Balzac, Zola, Dostoievski, Machado de Assis.

É neste contexto histórico que surge o movimento chamado de Realismo. O fracasso da Revolução Francesa fez ruir os propugnados ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade, enquanto a burguesia triunfante ia assentando suas bases sobre o egoísmo individual ou de grupos que possuíam o poder econômico. De outro lado, o avanço da Ciência criou a ilusão de que o homem pudesse resolver todos seus problemas sociais e existenciais pelo descobrimento das causas genéticas (raça), do condicionamento ambiental (meio) e das determinações temporais (característica da época). Nasce, assim, um novo culto, o da “sociolatria”, pelo qual os anseios dos indivíduos são sacrificados em prol do progresso da coletividade. Em oposição ao subjetivismo, ao idealismo e ao sentimentalismo dos românticos, a segunda metade do séc.XIX apresenta o complexo cultural do Materialismo, em suas várias formas de manifestação: objetivismo, evolucionismo, positivismo, determinismo, ateísmo. No mundo das artes, o novo movimento é denominado Realismo (de res = coisa, realis = realidade), adquirindo os termos específicos de Parnasianismo, na poesia, e de Impressionismo, na pintura. Parte-se do princípio clássico de que a arte é imitação da natureza, uma reprodução da realidade exterior ou interior ao ser humano. Mesmo sendo fruto da imaginação, um personagem ou um quadro tem que possuir a característica da “verossimilhança”: não é verdadeiro, mas como se fosse, pois é semelhante à realidade e contém uma coerência interna que torna crível o objeto de arte. Este compromisso com a verdade é a grande contribuição do Realismo com a cultura ocidental fazendo com que o movimento transcenda o tempo e o espaço. Se a arte, pela sua prória natureza é mentirosa (“o poeta é um fingidor”, como afirma Fernando Pessoa), pois se serve da ficção, da fantasia, sua missão é usar a imaginação para desmascarar as falsidades e as iniqüidades contidas em todas as formas de totalitarismos, de ordem religiosa, política, social ou moral. Vou tentar explicar alguns princípios estéticos e conteúdos ideológicos do Realismo, falando de autores e obras exponenciais deste período. A França pode ser considerada a pátria do Realismo. Dela herdamos, além de três grandes ficcionistas desta época (Flaubert, Balzac, Zola), também o pai do Positivismo, o filósofo Augusto Comte (1798-1857), que forneceu o substrato teórico para o embasamento artístico. O conhecimento positivo, centrado na observação e na reflexão, além de buscar as causas naturais de fenômenos ou comportamentos, enseja apresentar os meios adequados para solucionar problemas de uma coletividade ou anseios individuais. O marco inicial do Realismo na literatura foi a publicação do romance Madame Bovary (1857), por Gustave Flaubert, onde se conta a trágica história de Ema, casada com um médico que não lhe dá o conforto material e a satisfação sexual almejada. O matrimônio se torna extremamente tedioso e a jovem e bela senhora se entrega a sonhos românticos. A insatisfação conjugal acaba levando Ema Bovary a devaneios ambiciosos, ao adultério e à morte. A história de Madame Bovary, publicada pela primeira vez em capítulos numa revista parisiense, teve enorme sucesso popular (naquela época o povo lia, pois ainda não existia novela de televisão!), provocando um enorme escândalo. Flaubert sofreu um processo judicial por ofensa à moral pública. O autor conseguiu evitar a prisão, justificando que a protagonista era uma personagem de ficção e não da realidade, apelando, então, pelo direito à liberdade da expressão artística. O Tribunal Civil absolveu Flaubert, mas a decisão judicial não foi aceita pelos críticos puritanos da época, que não perdoaram o autor pelo tratamento realista que dera ao tema do adultério, pela crítica ao clero e ao ideal burguês de vida. Até poucas décadas atrás, o romance de Flaubert ainda jazia no Índice dos Livros Proibidos pela igreja católica, o cemitério das mais belas obras do gênio humano, onde se encontrava também O Primo Basílio, o romance do português Eça de Queirós, que explora o mesmo tema do adultério.

Honoré de Balzac (1799-1850) é famoso pela sua obra-prima A Comédia Humana, uma série de 95 narrativas sobre Paris de sua época. O título é uma paródia da Divina Comédia, de Dante Alighieri, querendo dizer que a vida humana é como um palco onde representamos os muitos vícios e as poucas virtudes. A imensa obra está divididas em três partes (como os três cânticos da comédia dantesca), onde estão descritos os tipos mais variados da colmeia humana, lutando dia a dia pela sobrevivência. A análise de processos judiciais realizada durante um estágio juvenil num escritório de advocacia serviu a Balzac como aprendizagem para o conhecimento da fauna humana: velhos libidinosos arruinando famílias para sustentar jovens amantes, maridos arrumando meios para livrar-se das esposas, herdeiros brigando de foice para apossar-se de heranças, um velho coronel tentando desesperadamente demonstrar que estava vivo, enquanto o interesse econômico de sua ex-mulher o mantinha oculto, como se fosse um fantasma. Chegando à maturidade e já com fama de escritor estimado, Honoré começa a frequentar a alta roda social, penetrando na vida mundana. O objetivo principal era retratar a florescente burguesia, com muito dinheiro e pouca cultura. Mas sua pena não exclui nenhum nível social da França de sua época: negociante, banqueiro, médico, cortesã, nobres, gente comum, todos são ironizados. O método descritivo com que elabora seus romances segue o padrão do realismo: apresenta primeiro o cenário onde as ações vão se desenvolver, depois o aspecto físico dos personagens, sua profissão, os tiques peculiares de tipos, traços psicológicos. A multiplicidade de figuras a quem ele consegue dar vida é simplesmente estupenda. Entre seus romances mais famosos, assinalo: A mulher de trinta anos (de que derivou o adjetivo “balzaquiana”), Eugène Grandet, O Pai goriot, O lírio do vale, As ilusões perdidas, Fisiologia do casamento, que provocou a costumeira revolta nas raias de crentes e conservadores.

Émile Zola (1840-1902) leva às últimas consequências os princípios estéticos e ideológicos do Realismo que, nesta altura, já era chamado de Naturalismo. Ele é o pai do romance “experimental”. Para Zola, a arte em geral e a literatura em particular têm que seguir o método da investigação científica, pois o comportamento humano é a resultante de duas forças: os caracteres hereditários e o ambiente familiar e social. Portanto, o escritor, como o cientista, tem que observar e experimentar a realidade que ele quer descrever, pois um personagem de ficção é homólogo ao ser humano. E Zola dá o exemplo: para escrever o romance Naná, ele passa um bom tempo visitando casas de prostituição. O mesmo acontece com Germinal, onde apresenta a vivência que teve entre mineiros e A besta humana, em que está descrita a miséria dos ferroviários. Ele confessa claramente sua dependência estética dos dois patrícios que o precederam:

“Quando Madame Bovary apareceu, foi uma completa revolução literária. Teve-se a impressão de que a fórmula do romance moderno, esparsa pela obra colossal de Balzac, fora reduzida e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um único livro. Estava escrito o código da nova arte”.

O código não só da arte, mas também da realidade e da vida, gostaria de acrescentar. Anatole France, escritor seu conterrâneo e contemporâneo, define Zola como “um momento da consciência humana”, referindo-se a sua obra literária e à postura de defesa do oficial de origem judía Alfred Dreyfus, injustamente acusado de traição pela direita conservadora. A tomada de posição de Zola no famoso “caso Dreyfus”, escândalo jurídico e político que convulsionou a opinião publica francesa, na passagem do séc.XIX para o XX, valeu-lhe um ano de prisão pela publicação de sua carta aberta J’ accuse contra o Estado-Maior do Exército. Mas a escola criada pela nova arte do Realismo não se restringiu ao território francês, evidentemente. Por limite de espaço e de tempo estabelecido para este último trabalho meu, que não trata especificamente de literatura, limito-me apenas a relevar mais dois ficcionistas mundialmente conhecidos: o russo Fiodor Dostoievski e o brasileiro Machado de Assis.

Fiodor Mikhailovitch Dostoievski (1821-1881) é considerado o pai do romance psicológico. Sua juventude ficou marcada pela morte prematura da mãe e pelo assassinato do pai pelos seus colonos, revoltados contra o autoritarismo do patrão. Precisou, então, interromper seus estudos na Escola Militar de São Petersburgo e experimentar a amargura da pobreza. Seus ataques de epilepsia foram atribuídos a "uma experiência com Deus", levando-o à crença num cristianismo evangélico. Quanto à religião, mais tarde irá reconhecer a ausência de lógica: "A fé e as demonstrações matemáticas são duas coisas inconciliáveis”. A fase juvenil de Dostoievski ainda está ligada à ideologia do Romantismo, que pode ser rastreada em seus primeiros escritos, Pobre gente, Noites brancas, Coração frágil, onde predomina a descrição da ternura, da bondade humana e do amor idealizado.

Desiludido com o escasso sucesso desta sua primeira produção literária, lançou-se à atividade política, participando num complô para assassinar o Czar Nicolau I. Preso, foi enviado para a Sibéria, condenado a trabalhos forçados. Os quatro anos que passou no cárcere (1850-1854) são considerados a fase de transição entre a juventude e a maturidade, constituindo um divisor de água em sua produção literária. Na prisão, Dostoievski, o jovem intelectual e de origem nobre, acaba conhecendo a camada mais degradada e miserável do povo russo, que ele descreve em romances como Humilhados e ofendidos e Memórias do subterrâneo. Seu amadurecimento espiritual completo se dará na terceira fase de sua vida pelas viagens ao exterior, pela frustração de três casamentos, pelo sofrimento moral causado pela inadimplência de dívidas de jogo, pelo agravamento de sua doença física. Como o nosso Machado, ele também questiona a moral burguesa, especialmente quando afirma: “decididamente, não compreendo por que é mais glorioso bombardear uma cidade do que assassinar alguém a machadadas”. Tamanha experiência humana é transformada em obra de arte, atingindo a plenitude de sua técnica formal nos sete romances mais famosos: Crime e castigo, O jogador, O idiota, O eterno marido. Os demônios, O adolescente, Os irmãos Karamazov, sendo este último considerado sua obra-prima. Mas técnicas narrativas e conteúdos de problemática existencial que podem ser encontrados no universo da obra do imortal escritor russo, antes de serem vistos como compartimentos estanques, relativos às três fases de sua vida e produção poética, devem ser analisados como frutos de um longo trabalho intertextual. O que os críticos chamam de “transposição” na obra de Dostoievski é a existência de duplos, de desdobramentos de personalidade, de imagens especulares que refrangem a plurifacetação do ser humano. Embriões de caracteres de personagens numa obra são retomados e desenvolvidos num outro romance. Por exemplo, o tema do sentimento de culpa que aflige o homem na sua tentativa de reparar as injustiças sociais, utilizando-se do crime, meio moralmente condenável, está presente em várias obras. Os personagens de Dostoievski “transpõem” seus caracteres de um romance para outro, complementando-se, ao mesmo tempo em que se diferenciam. Aí está sua genialidade!

Machado de Assis (1839-1908) pode ser considerado o maior expoente das Letras no Brasil, sendo o autor mais conhecido também no exterior. Nasceu e morreu no Rio de Janeiro, de família humilde, começando a vida como aprendiz de tipógrafo no serviço público, até se afirmar como jornalista. De forma semelhante a Dostoievski, ele também teve sua fase romântica, escrevendo poemas, romances leves, dramas. Só por volta dos 40 anos chegou à maturidade intelectual e estética, após absorver as obras dos humoristas ingleses Swift e Sterne, do francês Voltaire e do caricaturista brasileiro Manuel Antônio de Almeida, autor das Memórias de um sargento de milícia, romance no limite entre Romantismo e Realismo. A partir de 1881, foram surgindo suas melhores obras, onde aparece o desencanto da vida, o veio irônico, a descrença nos valores cultivados pela sociedade. Um leve olhar sobre seus três romances, considerados as obras-primas de Machado, pode nos oferecer uma idéia de sua importância no contexto da literatura brasileira e ocidental.

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881): romance original, que inova na forma e no conteúdo do gênero narrativo. A obra começa com uma dedicatória, escrita sob forma de epitáfio, pelo qual é apresentado o narrador, Brás Cubas, um defunto-autor que começa contando detalhe do seu funeral. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem cronológica dos acontecimentos, relatando a infância, a primeira paixão da adolescência, outras aventuras amorosas, o reencontro com o amigo Quincas Borba, a tentativa do invento de um emplasto, que o faz adoecer, o delírio que antecede a morte, o romance terminando com a famosa frase:

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

O episódio central é a descrição da relação amorosa que o protagonista mantém com uma senhora casada. É importante notar que o adultério de Virgínia não é devido nem a uma paixão avassaladora (como seria numa história romântica) nem a uma tara genética (conforme a doutrina determinista do realismo), mas a um motivo bastante fútil: o desejo de melhorar sua condição econômica.

Quincas Borba (1891): seguindo a mesma técnica da “transposição”, da qual falei estudando a obra de Dostoievski, Machado retoma o personagem do romance anterior, o filósofo Quincas Borba e o coloca como título do novo romance. O protagonista da história, porém, não é o filósofo, mas seu enfermeiro e discípulo Pedro Rubião, ex-professor primário, homem simples e crédulo. Quincas Borba, ao falecer na casa do velho amigo Brás Cubas, deixa como seu herdeiro Rubião com a incumbência de cuidar do seu cachorro que tem o nome do dono, Quincas Borba. Rubião parte para o Rio de Janeiro e, na viagem, conhece o casal Cristiano e Sofia. A troca de olhares e gentilezas entre Rubião e Sofia promete o nascer do triângulo amoroso, motivo recorrente nas narrativas machadianas, longas e curtas. Mas Sofia, depois de ter instigado a paixão no jovem, começa a recuar, deixando Rubião doido. Ela informa seu marido Cristiano sobre o caso, mas este está mais interessado em conseguir se apossar da herança de Rubião do que lavar sua honra. Aconselha o jovem ingênuo a entrar numa transação fraudulenta, que o leva à miséria. O casal fica rico, enquanto Rubião volta para sua terra natal, pobre e louco. Já muito afetado pela doença, pouco antes de morrer, ele relembra parte de uma explicação que lhe foi dada pelo mestre Quincas Borba, que inventara a tese do “Humanitismo”:

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas."

Evidentemente, a teoria do Humanitismo, assim como exposta pelo personagem Quincas Borba nos dois romances acima e sintetizada na famosa expressão “ao vencedor, as batatas” é uma sátira de Machado, ironizando todos os “ismos”, que estavam na moda, especialmente o Humanitarismo, a crença dos pensadores positivistas no progresso moral da sociedade. Mas ela não deixa de ser profundamente realista, correspondendo a uma verdade existencial, pois nos faz pensar na antiga concepção da necessidade da guerra, vista como higiene ou profilaxia. O filósofo grego Heráclito afirmara que “a guerra é a mãe e a rainha de todas as coisas”, no sentido de que nada se consegue sem luta, sem esforço. A teoria evolucionista de Darwin, que é o maior pressuposto científico da estética realista, está baseada na lei da seleção natural, pela qual só sobrevivem os mais aptos. Portanto... “ao vencedor as batatas”, quer dizer todos os benefícios conquistados, mesmo se ele for um tirano cruel, um político corrupto, um impostor egoísta e hipócrita, como o casal Cristiano e Sofia. Rubião, em fim de vida, adquire consciência de ter sido otário e, como vencido, merecer apenas compaixão!

Dom Casmurro (1899): é o romance da dúvida que toma conta do espírito do protagonista sobre a fidelidade de sua mulher. O enredo gira em torno de um triângulo amoroso: a esposa (Capitu) entre o marido (Bentinho) e o suposto amante (Escobar). O título do romance é uma qualificação do protagonista e narrador da história, Bentinho, chamado de “casmurro” pelo seu caráter ensimesmado e sorumbático. Os fatos são narrados em primeira pessoa, no estilo autobiográfico e pelo foco retrospectivo (flash-back): Bentinho, já velho, lembra seu passado, tentando “atar as duas pontas da vida”, a juventude e a velhice. O Bentinho narrador da história (já velho) procura entender o que se passou com o Bentinho (quando jovem) ator das ações. O Bentinho que pensa não é o mesmo que age, pois o tempo passado, como ensina Proust, não é recuperado na sua integridade. Daí a dúvida no espírito do narrador (e do leitor): será que não agi de uma forma injusta, ao acusar Capitu de adultério, deixando-me levar por impulsos juvenis de ciúme ou de inveja? E que prova eu tinha? Não confundi amizade calorosa, sentimento afetivo, com atração sexual? E a semelhança de meu filho Ezequiel com o amigo Escobar seria um fator determinante de adultério?

Enfim, pouco importa concluir sobre o final da história. Se o autor deixou a charada em aberto, quem pode emitir a sentença final? Já foram apresentadas as teses mais variadas sobre o assunto, inclusive considerando Bentinho um homossexual: ele gostava mesmo era do amigo Escobar (admirava seus braços sarados, voltando da praia!) e sentia ciúmes dele e não da mulher, vendo em Capitu apenas uma rival na disputa pelo amor de Escobar. Também, se Capitu fosse considerada adúltera, qual a novidade? A maioria das mulheres machadianas são assim retratadas. Machado de Assis subverte todos os valores ideológicos apregoados pela sociedade burguesa. E o casamento é um deles. Suas personagens (como a maioria das pessoas do mundo real) não contraem matrimônio por amor, mas por conveniência social ou para ter filhos, atendendo ao instinto da conservação da espécie e a costumes ancestrais, que preparam a mocinha para o altar. Esta contestação dos valores sociais e éticos não se dá apenas nos grandes romances, mas, de uma forma mais direta e sintética, nas narrativas curtas, nas várias coletâneas de contos do grande escritor carioca. Apenas como exemplo, apresento uma sinopse de três contos:

Em “A Cartomante”, o tema do adultério é explorado de uma forma clara, explicita, sem margem para dúvida alguma. O triângulo amoroso é formado pelo marido Vilela, a esposa Rita e o amigo do casal Camilo, que se torna amante da Rita. Quando Vilela descobre o adultério mata os dois. A história seria banal, se não fosse a crueldade do desfecho. Na verdade, a fábula é apenas um pretexto para a caracterização da personagem-título, a Cartomante, que enseja o tratamento do tema da adivinhação, da antecipação do conhecimento. Camilo, ao receber um recado de Vilela para ir com urgência a sua casa, entra em pânico, suspeitando que o amigo descobrira a traição. Consulta, então, uma cartomante que, após algumas perguntas e mexendo nas cartas, lhe restitui a paz de espírito, induzindo-o a ir ao encontro, pois estava certa de que Vilela não sabia de nada. O jovem amante, passando a acreditar piamente nos poderes de adivinhação da cartomante, vai à casa do amigo com espírito sereno. Mas a verdade é outra: Vilela o espera para matá-lo, como matara a esposa, momentos antes. Machado desvenda a impostura dos profissionais de adivinhação, ao mesmo tempo em que zomba dos trouxas que gastam dinheiro acreditando em suas falácias.

No conto “O Enfermeiro”, Machado inverte a máxima popular de que “o crime não compensa”. Ele demonstra que o crime compensa e como! Procópio, homem pobre do Rio de Janeiro, aceita o emprego de enfermeiro do rico coronel Felisberto, que vive sozinho numa cidadezinha do interior. O protagonista vai suportando pacientemente as ofensas físicas e morais do irascível e prepotente coronel. Mas, numa noite, sendo atingido por uma moringa, lançada-lhe no rosto pelo seu patrão, num ato impulsivo, coloca-lhe as mãos no pescoço, esganando-o, sem querer. Após o susto, arruma as roupas do defunto fazendo parecer uma morte natural. Mais tarde, quando o testamento se torna público, é informado de que foi designado como herdeiro único e universal do coronel Felisberto. Volta, então, para o Rio de Janeiro, gozando da inesperada herança.

Podemos considerar como tema principal deste conto a “ironia do destino”: as ações humanas, muitas vezes, têm um resultado oposto ao esperado. Procópio, que fora contratado para cuidar da vida do coronel, acaba provocando sua morte; ele, que era paciente e bondoso, se revela violento e assassino; seu patrão, pelo contrário, considerado prepotente e egoísta, se demonstra grato e generoso. Enfim, a vítima se torna agressor e o vilão vira mocinho. São coisas da vida, que é inexplicável, misteriosa, sendo difícil atribuir culpas. O pensamento subjacente à ficção machadiana é que o homem está a mercê das circunstâncias, pois sua liberdade de ação é muito limitada pelas ocasiões que se apresentam e que não dependem de sua vontade. Vamos condenar Procópio por ocultar a verdadeira causa da morte do coronel? Como Machado diz alhures,

“o pecado, depois do pecado, é a revelação do pecado”

A verdade, às vezes, é inútil ou danosa!

No conto O Alienista, Machado trata o tema da loucura com a ironia que lhe é peculiar: o protagonista Simão Bacamarte, médico de Itaguaí, resolve dedicar-se a pesquisas psiquiátricas e funda o hospício Casa Verde para cuidar dos dementes. Em breve tempo, esvazia-se a cidade e lota-se o hospício, pois quase todo o mundo sofre de algum desequilíbrio mental ou emocional. Coerentemente, então, o médico Bacamarte passa a considerar loucas as poucas pessoas equilibradas, visto que a quase totalidade dos cidadãos apresenta defeitos psíquicos. O conto machadiano mostra assim, pela arte literária, uma profunda verdade existencial: o homem verdadeiramente lúcido e sábio, no fim, é um louco porque, não pensando ou não agindo conforme “Maria vai com as outras”, e sim de acordo com um raciocínio lógico e coerente, acaba sofrendo o dano da exclusão social.