Pensar é preciso/XI/Pensamento alargado

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Pensamento alargado: resenha de obras recentes sobre filosofia e religiosidade.

Na última década, trabalhos sobre filosofia estão tentando superar o lugar-comum de que ela seja uma matéria abstrata, apenas de interesse de poucas mentes privilegiadas. A filosofia está sendo vista agora como uma alternativa ou complementação de outras disciplinas preocupadas com o bem-estar do homem, como indivíduo e como cidadão, a par da sociologia, psicologia, antropologia, política. Sobretudo, como substituta da Religião, apresentando uma resposta diferente, se não contrária, ao que as várias crenças até agora vieram pregando, sem êxito algum. Luc Ferry chama de “pensamento alargado”, este novo modo de responder à questão do sentido da vida.

O problema central a ser resolvido é a resposta à questão da salvação, face à finitude do ser humano e a sua impotência perante a dor e a morte. Apavora-nos o never more (“nunca mais”), o famoso estribilho do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, pois a morte representa o fim, o irreversível, o que não volta mais. O ser humano não se conforma com isso, em dividir com as outras criaturas, animais e vegetais, o mesmo triste destino do fim da existência. Aí ele inventa outro mundo, espiritual, povoado por divindades que lhe prometem a sobrevivência da alma, a parte do seu ser considerada imortal. Tudo muito bonito e fácil, pois os deuses, inventados pelas religiões, exigem do homem apenas um ato de humildade: se acreditar em Deus, ele te salvará! Só que, até agora, pelo visto, Ele não salvou ninguém. Muito pelo contrário, as pessoas que mais rezam, são as que mais sofrem e o mundo sobrenatural existe apenas na cabeça de gente crédula, que tem preguiça de pensar, deixando-se levar pela conversa de líderes carismáticos.

A filosofia, diferentemente, responde ao problema buscando a salvação em nós mesmos e não em entidades transcendentais, num “Outro”, num Deus apenas pressuposto, cuja natureza a razão humana não consegue entender. Por que, então, não aceitar o inevitável? Se a dor e a morte fazem parte da vida, temos que conviver com elas, tentando sofrer o menos possível. A filosofia antiga já pregava o “desapego”, a indiferença perante as vicissitudes da vida que a gente não poderia alterar. Estóicos e epicuristas consideravam a filosofia como “a medicina da alma” por nos ajudar a superar o medo da morte. Por que temer a morte, se não há encontro com ela? Quando somos vivos, ela não está aqui; e, quando ela chega, já a gente não está mais neste mundo. De outro lado, já pensaram como seria triste a vida sem a morte? Ficar velho, doente, caduco e não poder dar um fim a seus dias? Por que o homem não deveria seguir a lei cósmica que reza “tudo o que nasce morre”? E, se a alma humana nasceu junto com o corpo, por que não deveria morrer junto também?

Na verdade, a dor de o homem se considerar um animal sem futuro é insuportável para mentes não acostumadas ao raciocínio. É muito mais confortável acreditar na promessa de sermos imortais e reencontrar nossos entes queridos após a morte física, um dia, num mundo feito de pura espiritualidade. Tal esperança é boa demais para ser descartada. Mas, por isso, pagamos um preço muito alto: a renúncia ao espírito crítico e a convivência com a mentira e a ilusão.

Apresento, a seguir, uma resenha de alguns livros, que me ajudaram na elaboração deste trabalho, como indicação bibliográfica e sugestão de leituras. Eles têm em comum os mesmos temas (filosofia, religião e política) e o mesmo tempo de publicação (todos recentes), além do fato de serem “traduções” (pelo que eu saiba, nenhum estudioso brasileiro tratou do palpitante assunto sobre o “pensamento alargado”: aqui vai o convite, estou passando a bola!).

Luc Ferry: Aprender a viver (filosofia para os novos tempos). Objetiva, 2007.

Nasceu em Paris, em 1951, docente de Filosofia, foi Ministro da Educação na França, no biênio de 2002-04. Sua obra, que obteve um grande sucesso internacional, é a proposta de um Humanismo “secular” ou laico, no sentido de que o homem não precisa de religião para ser feliz. Pelo contrário, as crenças irracionais mais atrapalham do que ajudam. Na verdade, não se trata de algo novo, mas um convite ao retorno à prática filosófica da Grécia antiga, como já assinalei falando de Sócrates (o questionador das ideologias), Platão (a proposta de uma sociedade comunitária), Aristóteles (política e cidadania), Epicteto, Sêneca e Marcus Aurélio (a “virtude” do Estoicismo), Epicuro (o “prazer ponderado”). Luc Ferry releva que esta corrente de pensamento foi interrompida pelo advento do Cristianismo que substituiu o uso da razão pela fé no sobrenatural, projetando a felicidade num outro mundo. Com os movimentos filosóficos do Racionalismo, Idealismo e Existencialismo, aos poucos, o homem volta a buscar a salvação em si mesmo e neste mundo, sem deuses e sem ídolos.

Lou Marinoff: Mais Platão, menos Prozac (a filosofia aplicada ao cotidiano). Record, 2006. Ele é o criador de um movimento internacional de aconselhamento filosófico, apresentado como alternativo ou substitutivo dos tradicionais métodos da psicanálise e da psiquiatria. Lou Marinoff se tornou filósofo por acaso. Nasceu no Canadá, em 1952, e tocou numa banda de rock até os 30 anos, quando ganhou uma bolsa na Universidade de Londres para cursar Filosofia da Ciência. Formado, arrumou emprego na Universidade de Vancouver, ligado ao departamento de ética aplicada. Começou a dar entrevistas na mídia e a dar conselhos, quando procurado, aplicando a dialética socrática. Tendo sucesso, abriu um escritório em Nova York, atendendo uma clientela de homens e mulheres angustiados com problemas profissionais e afetivos. Para resolver as depressões, Marinoff recorreu à sabedoria antiga dos pensadores gregos e orientais. Aplicando a doutrina de Confúcio, ele ensina que o homem deve viver em harmonia com as leis da natureza, que deveriam moldar qualquer processo social ou político. Numa entrevista, ele afirmou que boa parte dos problemas no mundo hoje é causada por pessoas que não têm dúvida nenhuma. Veja o caso dos fanáticos religiosos.

Hannah Arendt (1906 - 1975): As origens do totalitarismo. Companhia das Letras,1989.

Judía, socióloga e teórica política alemã, emigrou para os EUA após a ascensão do nazismo. Foi discípula e amante do mestre existencialista Heidegger, formando-se em filosofia na Universidade de Heidelberg. Mas sua importância está diretamente relacionada com o pensamento político da segunda metade do século passado, com reflexos no momento presente, visto que suas idéias são de uma atualidade impressionante. Ela se tornou mundialmente famosa pela cobertura jornalística do julgamento de Eichmann, passado à história como o exterminador dos judeus. Foi desta experiência, pelos interrogatórios de testemunhas, que ela chegou ao conceito da “banalidade do mal”: a condescendência com a tortura e a prática da maldade pelos burocratas, que aplicam as leis sem nenhum questionamento, contrição ou remorso, tornam o sofrimento das vítimas como algo normal, conatural a seres humanos considerados inferiores. Daí sua luta para diferenciar o bem do mal e a defesa da liberdade em qualquer circunstância. Outro conceito fundamental da pensadora alemã é a associação do Nazismo com o Comunismo. Para ela, Hitler e Stalin são duas faces, embora opostas, do mesmo Totalitarismo, que comete crimes hediondos contra o indivíduo e a família, em nome da construção de uma sociedade de massas ideologicamente manipuladas. Sua obra nos ajuda a refletir sobre os tempos atuais e a entender as lutas de etnias dilaceradas por guerras nacionalistas. Enfim, quer a ideologia nazista quer a comunista se afirmaram pela exploração da boa fé do povo e de sua tendência à agregação e à dependência de uma liderança política ou religiosa.

Norberto Bobbio (1909-2004): O filósofo e a política (Antologia). Contraponto, 2007.

Senador vitalício da República italiana, professor de filosofia, direito e política por longos anos, com 2025 títulos publicados, entre livros, artigos, ensaios e comentários, Noberto Bobbio é considerado um dos maiores intelectuais do fim do século passado. Ele discutiu as três principais ideologias contemporâneas: o nazi-fascismo, o comunismo e a democracia liberal, sempre defendendo a concepção relativista da verdade, recusando qualquer forma de fanatismo. Mas seu liberalismo nunca o levou ao ponto de concordar com a desigualdade e a injustiça social, procurando sempre uma terceira via entre o bloco comunista e o mundo capitalista. Um estudioso de Bobbio afirma que ele pertence a uma “minoria de nobres espíritos que defenderam até ao fim, uns com o sacrifício da própria vida, nos anos duríssimos, a liberdade contra a tirania, a tolerância contra o atropelo, a unidade dos homens acima das raças, das classes e das pátrias, contra a divisão entre eleitos e réprobos".

Karen Armstrong: A Bíblia (Uma Biografia). Zahar, 2007.

Karen Armstrong nasceu na Inglaterra, em 1944, de uma família católica irlandesa. Com 21 anos professou os votos de freira, assumindo o nome de Irmã Martha. Mas, decepcionada com a vida religiosa, abandonou o convento e foi estudar Literatura Inglesa na Universidade de Oxford. Sofrendo de epilepsia, encontrou dificuldades para obter um trabalho. Em 1981, com a publicação de uma narrativa sobre sua experiência no convento, conseguiu notoriedade e foi convidada como comentadora em programas televisivos de assunto religioso. Para filmagens sobre a vida de Paulo de Tarso, acabou passando um tempo em Jerusalem, tornando-se uma especialista das religiões relacionadas com o patriarca Abraão. Recentemente, em 2005, Karen foi convidada para participar do projeto "Aliança das Civilizações", promovido pelas Nações Unidas com o fim de estabelecer um diálogo entre o Ocidente e o mundo islâmico. Na sua obra-prima, A Bíblia, ela tenta distinguir a história do mito, apontando os autores, o tempo e o espaço em que foram escritos a Tora e os Evangelhos.

André Comte-Sponville: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma espiritualidade sem Deus). Martins Fontes, 2007.

Esta obra de Comte-Sponville, professor de filosofia, nascido em Paris em 1952, consta de três capítulos, pelos quais ele tenta responder a três perguntas fundamentais: 1º) Pode-se viver sem religião? Resposta: sim, se não se confundir a “fé” (crença cega numa entidade sobrenatural) com a “fidelidade”, a adesão a idéias e sentimentos de uma comunidade. Não acreditar na divindade de Jesus Cristo não quer dizer renunciar ao caldo cultural em que o católico ou o protestante foi criado. 2°) Deus existe? Resposta: o autor revisita as tradicionais “provas” da existência de Deus e refuta todos os argumentos, considerando qualquer dogma religioso como um entrave para a prática de um autêntico humanismo. 3º) Que espiritualidade para os ateus? Resposta: não confundir espiritualidade com fanatismo. Embora não se acredite num mundo sobrenatural, podem-se cultivar valores absolutos, como verdade, justiça, honestidade. Os estóicos pregavam isso antes da chegada de Cristo e há muitos ateus mais éticos do que devotos hipócritas. Enfim, com base numa sólida formação filosófica, André Comte-Sponville prega o retorno aos ideais do Humanismo e do Iluminismo convencido de que nenhuma sociedade pode se considerar civilizada sem cultivar o espírito da liberdade, da laicidade e da tolerância.

Richard Dawkins: Deus, um delírio. Companhia das Letras, 2007.

O biólogo inglês Richard Dawkins se tornou famoso, entre os estudiosos de genética, a partir da publicação de O Gene Egoísta, em 1976. Por esta obra e pela mais recente Deus é um delírio, se notificou como o maior divulgador do darwinismo no mundo. Ele é considerado o apóstolo do ateísmo e o embaixador da ciência, ao demonstrar que, racional e cientificamente, é mais fácil negar do que provar a existência de um Deus, entendido como um ser sobrenatural, onipotente e misericordioso, conforme a crença comum a todas as religiões. Dawkins afirma que a esta conclusão chegaram os maiores cientistas, filósofos e artistas de todos os tempos, não confundindo a postura teísta ou panteísta de alguns (Spinoza ou Einstein, por exemplo) com qualquer forma de religiosidade. Eles admiraram a maravilhosa estrutura do macrocosmo e do microcosmo, que a inteligência humana lhes fez descobrir, e ficaram atônitos perante o mistério do universo, não entendendo dar nenhum atestado de fé num ente sobrenatural, visto como criador e curador dos seres humanos. Sua postura é bem radical contra o fundamentalismo religioso, visto não apenas como inimigo da ciência, mas também como uma perversão moral, instigando a luta étnica e a hipocrisia social.

Christopher Hitchens: Deus não é grande (Como a religião envenena tudo). Ediouro, 2007.

Este outro autor britânico é mais um jornalista polêmico do que filósofo, cientista ou estudioso de política. Analisando textos das três grandes religiões monoteístas, o autor chega à conclusão de que o conceito de Deus é uma conseqüência do medo da morte e os dogmas judeus, cristãos e islâmicos são responsáveis pela repressão sexual e o atraso da evolução do homem. Sua originalidade está no conceito de que qualquer religião é puro fruto do acaso, de algumas circunstâncias completamente aleatórias. Vamos ler um pedaço da sua obra: “Dos milhares de possíveis religiões no deserto, assim como dos milhões de espécies em potencial, um ramo por acaso deitou raízes e cresceu. Passando por mutações de uma forma judaica a uma cristã, ela (a religião) acabou sendo adotada, por razões políticas, pelo imperador Constantino e foi transformada em crença oficial com - no final - uma forma codificada e obrigatória de seus muitos livros caóticos e contraditórios. Quanto ao islamismo, ele se tornou a ideologia de uma conquista altamente bem-sucedida, adotada por dinastias governantes de sucesso, e então codificada, estabelecida e promulgada como lei da terra. Uma ou duas vitórias do outro lado e nós no Ocidente não seríamos reféns de disputas provincianas que aconteceram na Judéia e na Arábia antes que houvesse registro. Poderíamos ser devotos de uma crença inteiramente diferente - talvez hindu, asteca ou confucionista”. Eu, como qualquer outra pessoa de mente livre, poderia assinar em baixo a esta síntese lúcida da história da religião, apresentada por Hitchens!

Michel Onfray. Tratado de Ateologia. Rocco, 2007.

O autor acima, filósofo hedonista francês, também nosso contemporâneo, afirma que o homem fez de Deus seu espelho dotado da capacidade de formar uma imagem invertida, atribuindo-lhe todas as qualidades que o ser humano não possui, mas gostaria de ter: imortalidade, amor infinito, onipotência, onividência etc., incompatíveis com a física e psique humana. Ele acha que os três monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) comungam o mesmo sentimento de repulsa à inteligência, ao raciocínio lógico, à liberdade, aos prazeres da vida. Em nome de um livro só, A Bíblia, os crentes desprezam todos os outros. O Tratado de Ateologia releva que os homens criam seus deuses com duas finalidades: um refúgio para as frustrações da vida e a manipulação da massa ignorante por líderes carismáticos que aproveitam da boa fé para levar todo tipo de vantagens. Pela indução coletiva de pensamento, um episódio considerado extraordinário é repetido tantas vezes que acaba sendo incorporado à normalidade, tido como crível e impassível de correções, pois acontecido por vontade divina. Citando textualmente Onfray: “O último deus desaparecerá com o último dos homens. E com o último dos homens desaparecerá o temor, o medo, a angústia, essa máquina de criar divindades”.