Pensar é preciso/XI/Abaixo ídolos e líderes

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Abaixo ídolos e líderes

O 11 de setembro deixou claro que nenhum Imperialismo é eterno. A história nos ensina que um império, assim como qualquer outro organismo, nasce, cresce, chega ao apogeu e acaba, sucumbindo à sua própria grandiosidade, desaparecendo ou se transformando. Foi o que aconteceu com os impérios macedônico, romano, napoleônico, entre outros. Os Estados Unidos da América do Norte demonstraram sua vulnerabilidade e sua hegemonia não pode mais ser considerada absoluta. Eles têm que dividir seu poder com a União Européia, a Rússia, a China, o Brasil, a Índia e com outras potências emergentes, além de respeitar entidades e acordos internacionais, em paridade de direitos e deveres.

O próprio sistema capitalista mundial deve ser revisto. O colapso financeiro de setembro de 2008, provocado pela queda das bolsas de valores no mundo inteiro, como conseqüência da falência hipotecária na Inglaterra e nos EUA, é um sinal da necessidade de regulamentar o comércio livre. De um lado, ninguém (indivíduo, empresa ou governo) pode fazer o passo maior do que a perna, gastando o que não tem ou contraindo dívidas de uma forma irresponsável. De outro lado, não se pode continuar a permitir que banqueiros e seguradoras acumulem os lucros sozinhos, enquanto, na hora do prejuízo, recorram ao socorro do dinheiro público, provocando crises econômicas cuja maior vítima é sempre a massa popular indefesa. A meu ver, a única forma honesta de ganhar diheiro é trabalhando e não especulando, praticando agiotagem. O capitalismo selvagem é tão ilusório e pernicioso como o comunismo estatal.

Mas, infelizmente, o homem não aprende com a história e repete sempre os mesmo erros, deixando-se levar pela ambição, pelo egoísmo, pelo desejo sádico de escravizar os outros. O princípio do totalitarismo pode ser encontrado no começo da civilização, quando o homem cria o arquétipo do poder pelo mito de Júpiter, o deus que manda arbitrariamente no céu e na terra. O despotismo está nos patriarcas da Bíblia e do Corão, nas monarquias orientais da Índia e da China, nos Imperadores romanos, nos caciques incas e astecas, nas cortes católicas da Idade Média. Está também na Genebra protestante de Calvino, no nazismo de Hitler, no fascismo de Mussolini, no comunismo de Stalin, na ditadura do Generalíssimo Franco na Espanha, no regime de Sadam Hussein, na Cuba de Fidel Castro. Como disse Marcel Proust:

“a persistência de um costume está, geralmente,
em relação direta com seu absurdo.”

É isso aí: quanto mais absurdo é um governo absolutista, mais permanece no poder. Parece que o homem não consegue superar o instinto gregário, a fase animalesca do automatismo e da irracionalidade, precisando sempre de um pastor que o conduza. Daí o culto à personalidade que pode ser constatado no stalinismo soviético e chinês, nos santos protetores do catolicismo, nos pastores carismáticos do protestantismo, na palavra inquestionável de Maomé. Na verdade, a cegueira mental é muito pior do que a cegueira física, porque ela é voluntaria e impede a percepção da verdade. O pior cego é quem não quer enxergar. O que é barbárie passa a ser considerado como civilização.

O que mais espanta não é a maldade ocasional, mas a banalização do mal. Recentemente, o Museu do Holocausto da capital dos EUA tornou publica uma série de fotos, tiradas em 1944, pouco antes do fim II Guerra Mundial, que mostram enfermeiras festejando o extermínio de judeus, homossexuais e deficientes físicos, no campo de concentração de Auschwitz. Anos depois, um psiquiatra americano interrogou nazistas levados a julgamento em Nuremberg sobre os horrores cometidos e a resposta foi que apenas cumpriram ordens e, portanto, suas consciências estavam tranqüilas. É essa “normalidade” que espanta, a obediência cega a determinações de um líder carismático, a institucionalização do crime. Historiadores da ocupação da Polônia pelos alemães também afirmam que os policiais de Hitler fuzilavam mulheres e crianças com a maior naturalidade.

Mas isso não aconteceu apenas no domínio nazista. Os horrores se encontram em qualquer conflito bélico. Na atual guerra dos EUA contra o Iraque, por exemplo, aconteceu algo semelhante: foram publicadas fotos de soldados norte-americanos que se divertiam com jovens prisioneiras iraquianas, seviciando seus corpos com cigarros acesos. A gente pode compreender e desculpar o erro ou o pecado do homem como indivíduo, mas quando é toda uma instituição pública a cometer, tolerar ou aplaudir atos criminosos, nos colocamos nos limites da civilização, renegando qualquer sentimento de humanidade.

É preciso urgentemente rediscutir o problema da obediência militar ou civil: até que ponto o homem é obrigado a obedecer a uma ordem, se ela for irracional ou desumana? Por que ser obrigado a participar de guerras, a matar gente que nem se conhece? Anos atrás lí uma notícia de jornal que me deixou pasmado: um supermercado pegou fogo e os guardas, a mando do gerente, fecharam as portas porque, na confusão, algumas pessoas estavam levando mercadorias sem passar pelo caixa. É obrigação moral obedecer a uma ordem dessas? Será que uma vida humana tem valor menor do que um pacote de bolachas? E o que dizer, então, dos conflitos étnicos, que acontecem não apenas em Ruanda ou no Sudão, mas também na civilizada e próspera Europa? Diferenças de línguas, costumes ou religiões levam a divergências nos planos político e social, causando confrontos sangrentos. Na base de tudo está a infinita estupidez humana: a pessoa preconceituosa não se dá conta de que ela é um mero acaso de loteria biológica. Ninguém escolhe quando, onde, como ou de quem vai nascer. Por que, então, curtir sentimentos de superioridade? Quem sabe, um dia, a humanidade terá condições de realizar o “sonho” de Martin Luther King. Ele imaginava um futuro em que

“brancos e negros, judeus e gentios, protestantes e católicos,
descendentes de escravos e de donos de escravos,
todos viverem em harmonia, sentado à mesa da irmandade”.

Para que este futuro possa acontecer é preciso a vitória do indivíduo que pense com sua cabeça, não sendo mais vítima de tradições milenares. É preciso acabar com os dogmatismos religiosos e os governos absolutistas, o egoísmo individual e de grupos, a obediência cega a líderes políticos, a exploração do trabalhador, a corrupção e a impunidade. Nesse futuro desejado cada um ganharia conforme os méritos e seria julgado pelos seus atos e não pela cor de sua pele, pela herança de sua etnia ou pela sua fé. Enfim, o homem se convenceria de que ninguém pode ser feliz no meio da ignorância e da miséria.

Em nossos dias, apesar do enorme avanço tecnológico e dos benefícios provenientes da globalização, especialmente a vulgarização do acesso à Internet e do uso da telefonia celular, se agravam os temores que provocaram a revolução de Maio de 68. O progresso da ciência traz consigo o perigo da disseminação de armas nucleares, com a conseqüente possibilidade da destruição em massa. Não está superado o perigo do choque de civilizações, especialmente entre Ocidente e Oriente, subliminarmente alimentado pelo fundamentalismo religioso. É inegável o fato de que os países árabes, de religião maometana, estão tomados pelo desespero porque regimes ditatoriais e remotas tradições teocráticas impedem o funcionamento de uma social-democracia. O contato com o capitalismo, conseqüência da recente globalização, aumenta a corrupção interna e o ódio atávico entre a cultura judaico-cristã e a islâmica, provocando o intervencionismo militar de um lado e o terrorismo do outro.

Acrescente-se o fato de que os conflitos étnicos não são mais localizados, mas se espalham pelo mundo todo. Levas de gente pobre de países africanos, asiáticos, balcânicos e da América Latina emigram clandestinamente para regiões mais desenvolvidas da Europa e da América do Norte em busca de trabalho e de asilo, criando também lá bolsões de miséria e choques de cultura. Problemas de nacionalidade acabam adquirindo feições de religiosidade, centrados em dois pólos: evangélicos norte-americanos, de um lado, e muçulmanos das Arábias, do outro, cada qual exercendo influências em regiões carentes. Assim, o gênero humano, em lugar de progredir, está acusando um retrocesso, uma volta à barbárie. Os economistas explicam que os altos índices de desigualdade entre os povos acusam “uma dependência do ponto de partida”. Se é assim, por que os organismos internacionais não tentam cortar o mal pela raiz, procurando eliminar a pobreza na sua origem? Melhor do que assistir refugiados é ajudar a criar postos de trabalho nos países deles, exigir governos democráticos que não deixem faltar escolas para as crianças e promovam o planejamento familiar de forma que ninguém tenha mais filhos do que possa sustentar e educar decentemente.

A estrutura intelectual do Ocidente se assenta na idéia de que o mal nasce da ignorância, causa principal da pobreza material e espiritual. Este era o pensamento de Sócrates, retomado pelo Iluminismo, segundo o qual a redistribuição eqüitativa dos recursos, junto com a educação do povo, poderia vencer o mal social e a humanidade poderia alcançar o supremo bem, que é a justiça e o amor entre os povos. Mas o monstro do absolutismo religioso e político, que sempre manteve a grande massa de analfabetas na ignorância, fez prevalecer a idéia terrível de que o sofrimento é conatural ao homem e o mal é uma forma de estar no mundo e, portanto, não pode ser eliminado, mas apenas “medicado” pela caridade nesta vida e pela esperança de uma vida melhor no além.

O filósofo americano Sam Harris ensina que a religião, como o tribalismo, o racismo ou a corrupção da classe política, exacerba os conflitos humanos por ser um fator de divisão. A fé impede o diálogo, pois toda pessoa crente se torna impermeável a novas evidências ou a novos argumentos, achando que encontrou a verdade única e definitiva. A crença num Deus pode ser benéfica ao nível pessoal, como uma espécie de consolo, uma terapia psicológica, mas ela é extremamente nociva no plano coletivo por obstar políticas de desenvolvimento cívico. A verdade é que qualquer religião nasce da mentira e se alimenta da hipocrisia, ensinando às crianças que o irmãozinho foi trazido pela cegonha, o vovô foi para o céu, a masturbação causa cegueira. Não seria melhor acostumar a criança com a realidade existencial, ensinar a lidar com o sofrimento e a morte, a contentar-se com a felicidade possível, sem criar um mundo de ilusões na sua cabecinha?

Infelizmente, a maioria das pessoas continua seguindo o instinto de rebanho, achando mais cômodo ser crédula e enganada do que raciocinar. A expressão Vox Populi, Vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus) é uma grande mentira. A massa popular se deixa dominar por lideranças carismáticas, religiosas ou políticas, tornando-se cúmplice das piores atrocidades, embora involuntariamente, por abdicar do uso da razão. Por acaso, não foi o povo que condenou à morte criaturas maravilhosas como Sócrates e Jesus Cristo? Não foi o povo que apoiou os regimes sanguinários de Hitler, Stalin, Sadam Hussein, Bush? Benito Mussolini, o fundador do Fascismo, certa vez, antes de aderir à 2ª Guerra Mundial, propôs aos italianos: “pão ou canhão?”. O povo preferiu o canhão. E deu no que deu!

Afinal, se o homem é tradicionalmente definido como um animal racional, quando se recusa a pensar com sua própria cabeça, reduzindo-se a um cego cumpridor de ordens ou observador de normas, pode ser considerado um ser “humano”? Efetivamente, a diferença específica entre o homem e o animal é apenas o uso da inteligência, pois obedecer aos instintos primordiais da conservação própria (pela busca do alimento) e da espécie (pela relação sexual) é comum aos dois gêneros. Os ordenamentos jurídicos e políticos que devem governar a sociedade, bem como crenças e preceitos pregados pelas várias religiões, não podem se afirmar contra a estrutura lógica da mente humana, nem as descobertas científicas ou a realidade histórica. Função da fantasia humana é enriquecer, mas nunca contrariar a verdade existencial.

No próximo capítulo, vou apresentar algumas idéias sobre uma política voltada para a construção de uma verdadeira cidadania. Agora, convido o leitor para uma reflexão sobre o que tentei expor até agora, sintetizando os principais tópicos que contestam o fanatismo religioso:

a) Estrutura do Universo e Origem do Homem

É suma burrice e imensa falácia, no dia de hoje, ainda acreditar ao pé da letra no que está escrito no Gênesis sobre o nascimento do mundo e do homem. Na época de Moisés, como também de Buda, Cristo ou Maomé, não se conheciam as civilizações da bacia amazônica, da Oceania, dos Andes, da Patagônia. Não se imaginava que, além da Terra, considerada chata e imóvel, existissem outros planetas, que pudessem ser habitados por outros seres. Não se imaginava que o Universo existisse há mais de 13 bilhões de anos, que os primeiros hominidas (os mamíferos arquétipos do homem) nasceram na África há cinco milhões de anos. E também Moisés não sabia nada sobre dinossauros, vírus, bactérias, acelerador de prótons, DNA. E isso porque ele era apenas um homem do seu tempo. Se fosse realmente um “profeta”, aquele que prevê o futuro por inspiração divina, ele saberia dessas coisas.

A maioria dos crentes (católicos, protestantes, judeus ou muçulmanos) responde a esta pergunta com o argumento de que Deus foi revelando gradativamente, aos poucos e através de vários Profetas, as verdades existenciais, conforme ia se desenvolvendo a capacidade do cérebro humano, ao longo do tempo e do espaço conhecido. Esta resposta enseja algumas perguntas:

1) Admitir que a inteligência está em continuo processo de melhoramento não implica na aceitação da teoria darwinista da evolução? Por que, então, não abandonar de vez a crença na criação do homem por um ato divino, único e distinto?
2) Por que, depois das descobertas revolucionárias de Galileu, Darwin e Einstein, não apareceu mais nenhum Profeta para continuar nos esclarecendo sobre os mistérios do Universo?
3) A existência de tanta ignorância e contradições nas Escrituras não deveria acabar com o mito da revelação divina, considerando-as apenas como produtos da mente humana limitada no tempo e no espaço?
4) Por que não considerar os mitos bíblicos apenas da mesma natureza educativa que atribuímos ao maravilhoso da mitologia greco-romana ou de outras culturas?

A meu ver, quanto à sacralidade, não há diferença entre Abraão disposto a sacrificar seu filho Isaac à vontade de Jeová e Agamenão que oferece sua filha Ifigênia no altar da deusa grega Diana. E, quanto à moralidade, os ensinamentos que se encontram na filosofia do grego Sócrates ou na poesia do latino Horácio são muito mais edificantes, além de esteticamente melhor elaborados, do que os registrados nos toscos versículos de Moisés ou Maomé.

b) Deus, Espíritos, Milagres

A religião surgiu na infância da humanidade quando não havia nenhuma informação científica sobre os fenômenos da natureza. Não haveria igrejas se a humanidade não tivesse temido os raios, a peste, o eclipse, a epilepsia, a morte. E, na atualidade, ela persiste de uma forma intensa nas povoações indígenas que vivem conforme a natureza, em redutos isolados que impedem o progresso civilizacional. Mas ela está presente também no coração das pessoas cultas que não se conformam com a morte, as doenças, as injustiças neste mundo, projetando os desejos de uma vida melhor num imaginário além-túmulo.

Postula-se, assim, a existência de um mundo sobrenatural, etéreo, fora do tempo e do espaço, povoado por divindades e espíritos desencarnados. As três religiões monoteístas chamam de Deus a uma entidade “puro-espírito”, absoluta, eterna, que, em certo momento (saindo da eternidade?), teria resolvido criar o mundo da matéria. Ele teria privilegiado uma única espécie deste novo mundo, o homem, criado à sua imagem e semelhança, concedendo-lhe uma alma imortal. O homem seria, então, um ser híbrido: material e mortal pelo corpo (semelhante aos animais), mas espiritual pela alma eterna, qualidade que teria em comum com os anjos e os demônios, outras entidades espirituais (sem sexo e sem idade) que Deus teria criado dentro da eternidade.

Os seres humanos, portanto, como os deuses do paganismo, teriam nascimento, mas não morte: após a breve passagem neste mundo temporal, sua alma, desencarnada do corpo (mas a ser reencarnada outra vez no Julgamento Final, quando haveria a “ressurreição da carne”), gozaria da vida eterna no paraíso ou no inferno, conforme méritos ou culpas. Segundo a Doutrina Espírita, a reincorporação se daria imediatamente após a morte, o espírito vagando de corpo em corpo até conseguir a total purificação. Já pela doutrina cristã, a alma não preexiste ao corpo, mas seria insuflada por Deus no feto durante a gestação. Os teólogos não explicam em que exato momento se daria a animação do embrião, nem onde ficariam as almas dos mortos antes do fim deste mundo, nem como a materialidade dos corpos recuperados após o Juízo Universal poderia gozar ou sofrer no outro mundo, feito de pura espiritualidade.

Há imaginação mais fértil do que essa? É de fazer inveja a qualquer conto fantástico de Franz Kafka! O pior é que se considera alienado ou louco quem não acredita nisso! Já no bíblico Livro dos Salmos está escrito que é “insensato” o homem que não tem fé no Deus de Moisés. Também naquela época remota os incrédulos eram considerados pessoas de miolo mole. Na antiga URSS, os dissidentes eram colocados em asilos de loucos, acusados de sofrer de delírios reformistas e, por isso, de ter perdido a noção de autoconservação, enfrentando o perigo de uma repressão impiedosa. A história da humanidade está repleta de gente acusada e condenada por apostasia, heresia ou bruxaria por se atrever a contestar uma ideologia aceita pela maioria. O brasileiro, ainda hoje, considera o ateu como um ser sem caráter e sem moral, como décadas atrás se pensava dos comunistas que comiam criancinha, de homossexuais ou de negros, acusados de fazerem trabalhos sujos. Uma pesquisa recente revela que apenas uma ínfima porcentagem de brasileiros votaria num homem que afirme não acreditar em Deus. Ele não se elegeria nem como síndico de um prédio!

Para gente simples, sem cultura, a prova mais evidente da existência de Deus são os milagres, entendidos como sinais da presença ou da participação divina no mundo que Ele criou. Conforme já disse Voltaire, não há um povo em meio ao qual incríveis prodígios não aconteceram, especialmente quando poucos sabiam ler e escrever. Todas as mitologias, clássicas e indígenas, fazem referência a numerosos atos que consideram milagrosos. De um modo geral, é considerado milagre a superação de qualquer ocorrência extraordinária, que não pode ser explicada pelas leis da natureza ou pelo raciocínio humano: tragédias naturais, anomalias, doenças incuráveis, perturbações psíquicas.

Conforme a crença num Deus Criador e Provedor, o Arquiteto do “projeto inteligente” de que falamos anteriormente, nada escapa à vontade divina: não cai uma folha de uma árvore, se Ele não quiser. Como se explica, então, a presença da dor e da iniqüidade no mundo? Por que, ao mesmo tempo em que regiões são devastadas por enchentes ou maremotos, outras sofrem pela seca? Se Deus é poderoso e bondoso por que não leva o excesso de água do Rio Grande de Sul para irrigar as terras do Nordeste brasileiro? E por que, em lugar de atender às preces de suplicantes, permite que um ônibus transportando peregrinos caia num ribanceira? A resposta “foi Deus que quis assim!” pode satisfazer uma mente inteligente?

A verdade histórica é que os milagres começam a definhar na medida em que a ciência avança e o povo adquire cultura. A geologia está evidenciando que terremotos, ciclones, estiagens ou epidemias têm causas naturais, pois vivemos num planeta que ainda está esfriando, com rachaduras originadas pelo deslizamento de placas tectônicas, pela ação incontrolável de ventos provocados pelo choque de correntes térmicas, pela proliferação de vírus e bactérias. É a ignorância disso que alimenta o mito da intervenção divina, além de que, na maioria das vezes, a presumida ação milagrosa é fruto de equívoco, de alucinação, de histeria coletiva, pois o fato é contado de uns para outros, chegando ao nosso ouvido de segunda ou terceira mão. Sintomático é que os milagres só acontecem em regiões campesinas, entre gente pobre e sofrida, com baixo nível de informação: Nossa Senhora de Lourdes na França, Fátima em Portugal, Montevergine na Itália, Guadalupe no México, Aparecida do Norte no Brasil.

Entendo e justifico a crença do povo nos milagres. Gente pobre ou doente, não encontrando ajuda na sociedade dos homens, procura o refúgio na fé em entidades sobrenaturais, orando para obter graças divinas. O que acho vergonhosa é a exploração da crença popular por líderes religiosos ou políticos. Benjamin Franklin, Presidente dos USA, num de seus discursos, atribuiu a uma intervenção divina a descoberta do pára-raios: “coube a Deus, em sua bondade para com a humanidade, finalmente, revelar a ela o meio de proteger...”. Interessante é o “finalmente”: por que Deus esperaria tanto tempo para ensinar aos homens como se defender dos raios numa tempestade? A pregação de pastores protestantes, especialmente evangélicos, nos canais televisivos, é simplesmente abominável: forjam as mais incríveis curas milagrosas para enganar crédulos e extorquir dízimos!

Mas a Igreja Católica não deixa por menos: para cada dia do ano inventou um santo padroeiro e milagreiro. Pelo culto de tantas divindades, islamitas e protestantes acusam os católicos da volta ao politeísmo. A resposta é que os santos não são considerados divindades, mas apenas intercessores ou intermediários entre a humanidade e a divindade. A diferença, porém, entre Mercúrio, o deus romano do comércio, e o São Jorge cristão é quase irrelevante. O correspondente Hermes dos gregos também era o mensageiro entre Júpiter, o pai dos deuses, e os homens. O Velho e o Novo Testamento estão repletos de episódios considerados milagrosos. Apenas para citar um exemplo, lemos no Evangelho de Mateus (27, 52-53):

“Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram.
E, saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus,
entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos”.

Onde está, então, a peculiaridade do milagre de Cristo ao ressuscitar Lázaro se, naquela época, era costume muita gente acreditar em ressurreições? E por que nos tempos modernos ninguém mais ressuscita? O que dizer, então, a respeito do culto das relíquias, os pedaços do corpo ou de objetos de santos? Calculam os pesquisadores que com as lascas e os pregos da Cruz de Jesus, que se encontram espalhados pelo mundo todo, poderia se formar uma cruz com mais um quilômetro de comprimento. Chegaram até a comercializar as penas do Espírito Santo, aparecido sob forma de pombo. Mas aí entramos no campo da superstição que, além de irracional, é estúpida e beira o ridículo.

c) O pecado original e a vinda de Cristo

Já examinamos, no capítulo sobre Moisés, o relato bíblico acerca do pecado de Adão e Eva. Agora, perguntamos: se era vontade de Deus que, após o castigo, houvesse o perdão, por que Ele demorou tanto para enviar um Redentor? E não podia Ele mesmo perdoar sem precisar de um Messias? E por que não se serviu de Abraão, de Moisés ou de outro patriarca do Velho Testamento? E se fosse realmente necessária a encarnação de seu Filho, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, por que se lembrou disso apenas uns dois mil anos atrás e não antes? Ele, como ser eterno, não é o senhor do tempo? E que culpa tem as almas dos justos que, por terem nascidas antes da vinda de Jesus na terra, não podem alcançar o céu? E os seres humanos que vieram ao mundo depois de Cristo, mas que não tiveram a sorte de serem batizados, por que deveriam ser privados da visão de Deus?

E os milhões de judeus, muçulmanos, budistas e espíritas que não acreditam na divindade de Jesus Cristo e na necessidade do batismo irão todos para o Inferno? E, se o sacrifício de Jesus era suficiente para salvar a humanidade, por que enviar outro profeta, Maomé? Afinal, o Deus dos cristãos não é o mesmo Deus adorado por judeus e islamitas? As religiões monoteístas, as três, não descendem igualmente do patriarca Abraão? E se, por acaso, Jeová, o Deus Pai e Alá, além de nomes, são também três entidades divinas diferentes, em quem acreditar? E qual seria o verdadeiro Profeta enviado por Deus: Moisés, Cristo ou Maomé? E a Lei que deve guiar os filhos de Deus é a Torá, o Evangelho ou o Corão? Sendo as três Escrituras conflitantes, com qual está a verdade? Na dúvida, para não contrariar nenhum deus, é aconselhável não professar religião alguma!

Parentes e amigos já me acusaram de eu ser excessivamente crítico, achando que estou errado em fazer tantas perguntas, pois Deus, sendo o Todo-Poderoso, faz o quer, quando quer e como quiser, sem precisar dar satisfação a ninguém. Eu penso diferentemente. Suposto que minha vida foi um dom divino, se Deus me deu inteligência para pensar, Ele vai querer que eu faça uso dela e não aceite nada que seja contra o raciocínio lógico. Muito pelo contrário, a maior ofensa que o homem possa fazer a Deus é não usar a inteligência, sob pena de renunciar à diferença específica que distingue o homem da besta. E nenhum homem é obrigado a pensar com a cabeça de outro, a acreditar no que alguém disse por se achar “iluminado” por Deus. As chamadas revelações divinas não passam de alucinações. As biografias dos grandes fundadores de religiões (Moisés, Paulo de Tarso, Maomé, entre outros) relatam que eles sofriam de distúrbios psíquicos que provocavam “visões”, imaginariamente atribuídas à intervenção de entidades sobrenaturais. Os considerados profetas, como outros seres humanos, estavam sujeito ao engano. Tanto é verdade que suas afirmações dogmáticas, posteriormente, foram desmentidas pelo progresso das ciências e pela indagação histórica e filosófica. A verdade deve ser colocada sempre acima da crença. Minha natureza racional se recusa a acreditar sem pensar, sem convicção pessoal. Estou convencido de que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, pois é por meio da razão que cada um deve justificar – e, se necessário, rejeitar – a fé que herdou de seus pais.

d) Moral religiosa ou cívica?

O sábio grego Aristóteles ensinara que a virtude é uma disposição para fazer o bem, adquirida e não inata. Quer dizer, o homem não nasce bonzinho. A criança, como o animal ou qualquer ser humano primitivo, é fundamentalmente egoísta, preocupada em satisfazer seus instintos e desejos, não respeitando o que é dos outros. Portanto, desde cedo, deve ser educada para a prática das virtudes que lhe permitam viver no convívio de outros de forma pacífica: a sinceridade, o respeito ao bem alheio, a polidez, a tolerância, a caridade, a obediência, o amor ao estudo e ao trabalho, a prática da afetividade e da amizade. O ensinamento de tais virtudes deve fazer parte de uma formação antropológica sem nenhuma ligação ou dependência de normas religiosas. Ter uma conduta decente independe de professar a fé cristã, budista ou islamita.

Estamos falando de valores éticos universais, que cumpre defender contra dogmas e práticas de moralidade, ensinados por esta ou aquela religião. Talvez possamos distinguir o que é “ético” (bom para todos) do que é “moral” (relativo a um determinado grupo social). O problema é que o conceito de moral (do latim mores = costumes, usos), quando relacionado com determinada religião, adquire o sentido de imutável, absoluto, pois sagrado, imposto por uma vontade divina inquestionável. Tomemos, apenas como exemplo, o preceito bíblico da circuncisão: o corte da pele do prepúcio do menino devia ser uma medida de higiene e profilaxia, talvez necessária três mil anos atrás para povoações que viviam no deserto e sofriam pela falta de água. Mas é praticada ainda hoje (e também por adultos que se convertem ao judaísmo), quando a ciência médica proporciona ao homem meios bem mais suaves para resolver um problema de saúde.

Costume semelhante à circuncisão dos hebreus é a infibulação: em regiões da África, de religião animista ou muçulmana, a menina é submetida à retirada do clitóris e à sutura dos lábios vaginais para evitar que sinta prazer sexual antes da noite de núpcias. A permanência de tamanha crueldade, antes de ser atribuída a uma vontade divina, deve ser vista como sinal da infinita estupidez humana. Um amigo evangélico me confessou que gostaria de ir a baile, mas sua religião proíbe a dança, pois o contato físico pode induzir em tentação. Que absurdo! A dança é uma arte universal, considerada a linguagem do corpo, praticada por culturas indígenas e pelos povos mais civilizados.

É evidente que a liberdade de culto permite a qualquer grupo social a prática de seus rituais. Mas, se houver conflito, deve prevalecer a moral cívica sobre a religiosa. A ética de princípios deve ceder a uma ética contextual, pois o bem público não pode ser prejudicado por mandamentos pressupostamente divinos. Alguns exemplos: a luta contra a AIDS não pode ser impedida pela proibição eclesiástica do uso da camisinha; as pesquisas com células-tronco devem ser consideradas eticamente válidas por contribuírem para a cura de muitas doenças; uma mulher que quiser abortar, para salvaguardar a saúde física e psíquica sua ou do feto, não pode ser tratada como uma criminosa; o divórcio deve ser permitido para homens e mulheres encontrarem um novo caminho para a felicidade; não deveria ser proibido ajudar alguém que queira libertar-se de um sofrimento insuportável e inútil pela eutanásia; não deixar que uma crença religiosa, que proíbe a transfusão de sangue, cause a morte de um ser humano.

Nenhuma religião pode ser utilizada para justificar qualquer forma de sofrimento, físico ou psíquico, individual ou coletivo. Nenhum dogma pode considerar moral a guerra, a tortura, o homem-bomba, o terrorismo, o racismo, a corrupção, a hipocrisia. Infelizmente, sentimentos negativos estão imersos no oceano de coletividades vítimas de longas tradições conservadoras. O corpo anônimo de massas populares, dirigido por líderes fanáticos ou interesseiros, é induzido a seguir normas cristalizadas no tempo e transmitidas de geração para geração.

O preceito religioso é racionalizado ou revisitado pela hipocrisia: a regra da Ordem franciscana proíbe andar a cavalo (na Idade Média, o cavalo era o meio de transporte do rico, enquanto o pobre andava a pé ou no burrico), mas o frade pode viajar de avião de primeira classe; a Torá veta o trabalho de sábado, mas o judeu pode pagar alguém para fazer isso; o Dalai Lama pode visitar uma prostituta desde que outra pessoa pague; é proibido ao muçulmano xiita fazer sexo fora do casamento, mas nada impede que ele contraia núpcias temporárias, por algumas horas, divorciando em seguida; o católico deve abster-se da carne na 6ª feira santa, mas pode comer uma bacalhoada regada a vinho do Porto. Não se reflete sobre o “espírito” da lei, mas apenas na aplicação da norma jurídica ou moral ao pé da letra.

Faz-se necessário, então, usar a razão e rejeitar o tradicionalismo, que impede o exercício da liberdade e a busca da felicidade. O pior inimigo do homem é seu “caldo cultural”, a educação religiosa que recebeu de seus ancestrais, quando aceita piamente, sem questionamento. Se a tradição contivesse a verdade, não haveria necessidade de tantos profetas. O fato de que a moral religiosa encontra-se despedaçada numa multiplicidade de Escrituras, entre si contrastantes, que apareceram ao longo da história da humanidade, põe em dúvida sua origem divina. Se, portanto, as leis morais procedem do homem e não de Deus, é melhor a gente se deixar guiar antes pelo bom-senso e pelo interesse cívico do que pela fé num sobrenatural hipotético.