Peregrinaçam/LVII

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Partidos nos deſte rio de Anay muyto bem apercebidos de tudo o neceſſario para a viagem que eſtaua determinado fazerſe, pareceo bem a Antonio de Faria por conſelho do Quiay Panjão, de que ſempre fez muyto caſo, pelo conſeruar em ſua amizade, yr ſurgir no porto do Chincheo, para ahy ſe informar pelos Portugueſes que eraõ vindos da Çunda, de Malaca, de Timor, & de Patane, de algũas couſas neceſſarias a ſeu propoſito, & ſe tinhão nouas de Liampoo, porque ſe ſoaua então pela terra que era la ida hũa armada de quatrocentos juncos, em que hião cem mil homẽs por mandado del Rey da China a prender os noſſos que là reſidião dafsẽto, & queimar lhe as naos, & as pouoaçoẽs, porque os não queria em ſua terra, por ſer informado nouamente que não eraõ elles gente taõ fiel & pacifica como antes lhe tinhaõ dito. Chegados nòs ao porto do Chincheo achamos ahy cinco naos de Portugueſes que auia ja hũ mès q̃ eraõ chegadas deſtas partes que diſſe, dos quais fomos muyto bem recebidos & agaſalhados com muyta feſta & contentamento, & deſpois q̃ nos deraõ nouas da terra, & da mercancia, & da paz & quietaçaõ do porto, nos diſſeraõ que de Liampoo não ſabião nada mais que dizeremlhe os Chins, que auia là muytos Portugueſes de inuernada, & outros vindos nouamente de Malaca, da Çunda, de Sião, & de Patane, & que fazião na terra ſuas fazendas pacificamente, & que a armada groſſa de que nos temiamos, não era là, mas que ſe preſumia que era ida âs ilhas do Goto em ſocorro do Sucão de Pontir, a quẽ ſe dezia que hum ſeu cunhado tyrannicamente tinha tomado o reyno, & porque eſte Sucão ſe fizera nouamẽte ſubdito do Rey da China, com tributo de cem mil taeis cada anno lhe dera aquella armada dos quatrocẽtos juncos, em que ſe affirmaua que hião cem mil homẽs para o meterẽ de poſſe do reyno ou ſenhorio que lhe tinhão tomado; com a qual noua todos ficamos deſcançados, & demos por iſſo muytas graças a noſſo Senhor. Deſpois que neſte porto do Chincheo eſtiuemos noue dias nos ſaimos delle, leuando ja em nõſſa cõpanhia trinta & cinco ſoldados mais, deſtas cinco naos, a que Antonio de

Faria fez bom partido, & ſeguimos noſſo caminho na via do reyno de Liampoo. E auendo ja cinco dias q̃ nauegauamos com ventos põteyros, vellejando às voltas de hum bordo no outro, ſem podermos ſurdir auante, hũa noite ao quarto da prima encontramos hum paraoo pequeno de peſcadores em que vinhaõ oito Portugueſes muyto feridos, dos quais os dous ſe chamauão Mem Taborda, & Antonio Anriquez, ambos homẽs honrados, & ricos, & de muyto nome naquellas partes, & por iſſo os nomeey a elles particularmente; & aſsi eſtes como todos os outros vinhão tão deſtroçados que era couſa piadoſa velos. Chegado eſte paraoo ao jũco de Antonio de Faria, elle fez logo recolher dentro eſtes oito Portugueſes, os quais em ſubindo acima que o viraõ ſe lhe lançaraõ todos aos peis, & elle os recebeo com muyta afabilidade & gaſalhado acompanhado de aſſaz de lagrimas, pelos ver rotos, nùs & deſcalcos, & banhados no ſeu proprio ſangue. E vendoos daquella maneyra lhes perguntou pela cauſa de ſua deſauentura, & elles lha contaraõ com moſtras de muyto ſentimento, dizendo, que auia dezaſſete dias que tinhaõ partido de Liãpoo para Malaca, com propoſito de paſſarem á India, ſe lhe a monção não faltaſſe, & que ſendo tanto auante como o ilheo de Çumbor os cometera hum ladraõ Guzarate, por nome Coja Acẽ, com tres juncos & quatro lanteaas, nas quais ſete embarcaçoẽs trazia quinhentos homẽs, de que os cento & cinquenta eraõ Mouros Luſoẽs, & Borneos, & Iaos, & Champaas, tudo gente da outra coſta do Malayo, & pelejando com elles deſde a hũa hora atè as quatro deſpois do meyo dia, os tomara com morte de oitenta & duas peſſoas, em que entraraõ dezoito Portugueſes, a fora quaſi outras tãtas que leuara catiuas, & que no junco lhes tomara de emprego ſeu & de partes mais de cem mil taeis. E juntamente com iſto lhe contaraõ outras particularidades tão laſtimoſas, que a algũs dos circumſtantes que as ouuião ſe enxergou bem nos olhos a dòr & magoa que tinhão delles. Suſpenſo ficou Antonio de Faria & penſatiuo hum grande eſpaço, imaginãdo no q̃ aquelles homẽs lhe tinhão dito, & virandoſe para elles lhes diſſe, peçouos ſenhores que me digais, ja que eſſa briga foy tal como me contaſtes, como foy poſsiuel eſcapardes vós mais que os outros? a que elles reſponderaõ, deſpois de termos pelejado às bombardadas obra de hũa hora ou hora & meya, os tres juncos grandes nos abalroaraõ cinco vezes, & das grandes pancadas que nos deraõ, nos abrio o noſſo hũa grande agoa pela roda de proa, & tão groſſa, que com ella nos hiamos ao fundo, a qual foy a principal cauſa da noſſa perdiçaõ, porque querendoa tomar, nos era forçado baldear muyta fazẽda para yrmos dar com ella, & occupando niſto a gente, apertauão os inimigos com noſco de maneyra, que para nos defendermos nos era tambem forçado deixarmos o que faziamos
por acudirmos acima, & eſtando nòs neſte trabalho, & com a mor parte da gente ferida, & algũs tambem ja mortos, ſe ateou o fogo em hum dos ſeus juncos, & pegando no outro que eſtaua junto delle, lhes foy forçado largarẽ as abalroas para ſe deſempeçarem hum do outro, o q̃ não puderaõ fazer tanto a ſeu ſaluo por muyto que niſſo trabalharaõ, q̃ hum delles não ardeſſe até o lume da agoa, & toda a gente delle ſe lãçou ao mar, de que ſe afogou a mayor parte, neſte tempo acabou o noſſo junco de aſfentar ſobre a eſtacada das peſqueyras que eſtauão junto do arrecife antes que cheguem â boca do rio onde agora eſtá o pago de dos Siames. E tanto que o perro do Coja Acem, que era oque nos tinha aferrado, nos vio daquella maneyra, entrou de romania com noſco com hũa grande ſoma de Mouros todos armados de couras & ſayas de malha, & em chegando nos derrubaraõ logo dos noſſos paſſante de cinquenta, em que os dezoito foraõ Portugueſes, & nòs, deſta maneyra q̃ nos voſſa merce vè aſsi feridos & queimados, por não termos nenhum remedio, nos lançamos a hũa manchũa que tinhamos atracada por popa do noſſo junco, na qual prouue a Deos que nos ſaluamos ſós quinze peſſoas, de que ja ontem morreraõ as duas, & as treze que milagroſamente eſcapamos, vimos da maneyra que voſſa merce nos vé, oito Portugueſes, & cinco moços noſſos, & fugindo neſta manchua por entre a eſtacada & a terra, nos fomos ſempre coſendo cos penedos, para que não pudeſſem elles chegar a nós, & acabando as lanteaas de recolher os ſeus que andauão ainda na agoa, ſe foraõ com grande grita & muytos tangeres ao noſſo junco, no qual embaraçados com a cubiça da preſa, prouue a noſſo Senhor que iſſo foy cauſa de nos não ſeguirẽ. E ſendo neſte tempo ja quaſi .Sol poſto, ſe meteraõ pelo rio dentro com feſta de muytos tangeres & apupadas como quem triunfaua dos miſeraueis de nos. Antonio de Faria lhe diſſe então, ſegundo iſſo ahy deuem de eſtar agora dentro neſſe rio, pois vaõ taõ deſtroçados como dizeis, & pareceme que nem o voſſo junco, nẽ o outro que eſtaua abalroado co que ſe queimou lhe podem fetuir para nada, & no outro grande com que vos elle abalroou, algũa gente lhe auieis de matar & ferir, a que elles ambos reſponderaõ, que muyta lhe matarão, & muyta lhe feriraõ. Antonio de Faria então tirando o barrete, cos joelhos no chaõ, as mãos aleuantadas, & os olhos no Ceo, diſſe com aſſaz de lagrimas: Senhor Ieſu Chriſto, aſsi como tu meu Deos es verdadeyra eſperança dos que em ty confiaõ, co mais peccador que todos os homẽs te peço com muyta humildade em nome deſtes teus ſeruos, cujas almas tu remiſte co teu precioſo ſangue, q̃ nos dés esforço & victoria cõtra eſte inimigo cruel matador de tãtos Portugueſes, o qual eu, co teu fauor & ajuda, & por honra do teu ſanto nome determino de yr buſcar como ategora

tenho feito, paraque a maõs deſtes teus ſeruos & fieis ſoldados pague o que ha tanto tempo que nos deue, ao q̃ todos os que eſtauão preſentes em hũa voz reſponderaõ, a elles, a elles co nome de Chriſto, porque o perro pagarà a noueado o q̃ deue aſsi a nòs, como a eſtes pobres companheyros. E dando com eſte feruor hũa grande grita, marearaõ as vellas em popa para o porto de Lailoo q̃ ficaua atras oito legoas, ao qual por conſelho que ſobre iſſo ſe teue, Antonio de Faria ſe foy aparelhar para eſta briga que eſperaua de ter com eſte coſſayro, em buſca do qual, como atras fica dito, tinha gaſtado tanto tempo, ſem atè então poder ter nouas delle em nenhum porto de quantos correra.