Pesquisando/II/Descartes
René Descartes (1596-1650), matemático e filósofo, é considerado o pai do racionalismo gnosiológico e um dos inventores do método moderno de investigação científica. O estudioso francês pretendeu encontrar o caminho para superar as incertezas de sua época, minada por uma corrente céptica e pessimista, encabeçada por Montaigne. Formulando a dúvida metódica, é levado a duvidar de tudo aquilo que não tem a mesma característica das noções da Matemática: a evidência, a clareza e a distinção. Rejeita, assim, as ideias “factícias” (as que se referem ao mundo exterior em contínua mudança) e as “fictícias” (as forjadas pela imaginação ou fantasia que variam conforme a vontade particular de cada sujeito), para considerar apenas as ideias “inatas”, que, como os conceitos da matemática, são axiomáticas, indiscutíveis, evidentes e estáveis, porque comuns a todos os homens: ninguém duvida que 2 + 2 é igual a 4 ou que um triângulo tenha três lados.
A primeira dessas certezas inabaláveis é a própria existência humana: “Se duvido, penso; se penso, existo.” O cogito ergo sum torna-se o parâmetro de qualquer conhecimento, distinguindo-se o ser pensante da coisa pensada, o sujeito do objeto, a alma do corpo, Deus criador (ser perfetíssimo) do mundo criado (seres contingentes). Assim, Descartes, reafirmando o poder convincente do princípio da causalidade, já explorado por Aristóteles, lança as bases da corrente racionalista que encontrará em Malebranche, Spinoza e Leibniz seus melhores cultores.
É importante notar que a clareza e a coerência perseguidas por Descartes no campo do conhecimento filosófico e científico não atingiram também a esfera ética. Convencido de que a moral é algo variável no tempo e no espaço, ele propõe uma ética “provisória”, do hic et nunc (do aqui e agora), que atenda às injunções de ordem política, social e religiosa. E ele próprio dá o maior exemplo do conformismo apregoado: ao saber da condenação de Galileu, deixa de publicar um trabalho científico no qual ele também sustentava a tese de movimento do planeta Terra. A verdade, sim, mas desde que ela não nos prejudique! Essa será a essência da moral burguesa, profundamente hipócrita, pela qual os valores humanos da verdade, da justiça, da lealdade, da liberdade, etc. são ideológicos e não reais, visto que são apenas impostos ou desejados, mas não realmente vividos.
O que é mais importante, porém, para os fins do presente texto, é verificar a conceituação e o procedimento do método cartesiano de pesquisa, exposto em sua obra mais famosa: Discurso sobre o Método para Bem Conduzir a Razão e Buscar a Verdade nas Ciências, mundialmente conhecido com o nome abreviado de Discurso do Método. Sintetizamos o que achamos mais importante nas seis partes em que a obra está dividida. Na 1.ª parte: as ciências e as artes até então praticadas não se preocupavam com a função essencial da inteligência que é distinguir o verdadeiro do falso; apenas a Matemática, pelo rigor de seu método, apresentava certezas absolutas, mas que não eram aplicadas à investigação da realidade. Na 2.ª parte, são apresentadas quatro normas fundamentais do método cartesiano: (a) estabelecer a dúvida metódica, não aceitando nada sem ter certeza absoluta; (b) usar o processo analítico para dividir qualquer problema em seus elementos mínimos; (c) agrupar os conhecimentos elementares obtidos em organismos complexos, efetuando assim a síntese; (d) estabelecer as relações entre as várias verdades particulares descobertas, chegando assim a uma comprovação da tese ou da teoria em questão.
A 3.ª parte é dedicada à formulação de uma “moral provisória”: enquanto não se alcançar a verdade absoluta, é preciso obedecer às normas sociais existentes e conviver com as opiniões mais moderadas. A 4.ª parte é a mais importante, pois é aí que está exposta a essência do método, de que já falamos: podemos duvidar de tudo, mas não do fato de duvidar, sendo a existência do pensamento a primeira certeza inata, pois imanente ao próprio ser humano. Na 5.ª parte, Descartes tenta aplicar seu método a pesquisas de física, especialmente à explicação da circulação do sangue, considerando o corpo humano, em seu funcionamento, semelhante a qualquer outro organismo. Na 6.ª parte, enfim, o filósofo francês explica por que não publicou antes alguns de seus trabalhos: o medo de provocar escândalos e sofrer penalidades, como aconteceu com o cientista italiano Galileu Galilei.
Como podemos verificar pelo resumo apresentado, Descartes retoma alguns pontos da investigação filosófico-científica já tratados pelos gregos: a tentativa pitagórica de matematizar o conhecimento e a realidade; a dúvida metódica implícita na ironia socrática; a existência de ideias inatas do idealismo platônico. Mas sua metodologia do trabalho intelectual é profundamente revolucionária com relação a seu passado próximo, à herança cultural de mais de um milênio de Idade Média, marcada pela crendice e pelo autoritarismo intelectual. O filósofo francês contesta bravamente qualquer forma de dogmatismo: acima do princípio da autoridade, quer religiosa quer laica, ele eleva o altar da razão: nada pode ser aceito cega e automaticamente; para tudo, até mesmo para admitir a existência de Deus, se exige uma explicação lógica. O caminho proposto foi o de recusar toda a crença sustentada apenas em escritos ou palavras, aceitando-se como verdadeiro somente aquilo sobre o qual não existisse dúvida. O adjetivo cartesiano passou a ser sinônimo de clareza, distinção, raciocínio incontestável. O racionalismo de Descartes tornou-se o fundamento intelectual da cultura europeia do Seiscentos e Setecentos, desaguando nos movimentos do Iluminismo e da Enciclopédia e fornecendo a base teórica do Idealismo alemão.