Por Darwin/Peculiaridades sexuaes e dimorphismo
O nosso Tanais que, em quasi todos os
particulares de sua estructura, é um
animal extremamente notavel, forneceu-me
um segundo facto digno de menção,
relativamente á theoria da origem das especies
por selecção natural.
Quando estructuras em forma de mão ou de pinça occorrem nos Crustaceos, estas são em geral, mais fortemente desenvolvidas nos machos do que nas femeas, tornando-se muitas vezes maiores, nos primeiros, até dimensões verdadeiramente desproporcionadas, como já tivemos o ensejo de ver em Melita.
Um exemplo melhor conhecido de taes pinças gigantes, é apresentado pelos machos dos «Thesouras» (Gelasimus) que dizem trazer, na corrida, estas garras «elevadas, tal como se acenassem com ellas» — asserção que, no emtanto, não é verdadeira para todas as especies, tal como uma, pequena e especialmente megachela que eu vi, correndo aos milhares, nos campos de cassava, na foz do Cambriú, conservando sempre as pinças estreitamente comprimidas sobre o corpo.
Uma segunda peculiaridade dos Crustaceos machos, consiste, não raro, em um mais abundante desenvolvimento, sobre o flagello das antennas anteriores, de delicados filamentos que Spence Bate chama de «cilios auditivos»: e, eu considerei serem orgãos olfactivos, como o fez Leydig antes de mim, o que comtudo eu não sabia. Assim, elles formam longos e densos tufos nos machos de muitos Diastylideos, como Van Beneden tambem constata, com respeito á Bodotria, emquanto as femeas sómente os possuem mais escassamente. Nos Copepodes, Claus chamou a attenção sobre a differença dos sexos n'este sentido. Parece-me, como eu posso notar de passagem que, este maior desenvolvimento nos machos, é grandemente favoravel á opinião de Leydig e á minha, visto como em outros casos os machos, não raro, são guiados pelo olfacto, na procura das femeas ciosas.
Agora, no nosso Tanais, os jovens machos proximos á muda ultima de pelle que precede á maturidade sexual, assemelhão-se ás femeas, mas, então, elles soffrem uma importante metamorphose.
Entre outras cousas, perdem os appendices moveis da bocca, mesmo os que servem para manter a corrente respiratoria (fig. 4); o seu intestino é sempre encontrado vasio e, só parecem viver para amar. Porém, o mais notavel é que elles surgem, então, sob duas formas diversas.
Alguns (fig. 3) adquirem chelipedes poderosos, longidactilos e muito moveis e, em vez do unico filamento olfactivo da femea, mostram 12 á 17 d'esses orgãos, os quaes ficam juntos em numero de 2 ou 3, sobre cada articulação do flagello. Outros (fig.5) retêm a forma espessa e curta dos chelipedes das femeas; porém, em compensação, suas antennas (fig. 6) são providas de um numero muitissimo maior de filamentos olfactivos que, se mostram em grupos de cinco a sete.
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Fig. 3 — Cabeça da forma commum de Tanais dubius (!) Kr. X 90. As cerdas terminaes do segundo par de antenas se projectam do meio das patas cheliferas.
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Fig. 4 — Bocca de Tanais dubius (!) Kr.; 1-labrum.
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Fig. 5 — Cabeça da forma mais rara de macho do Tanais dubius (!) Kr. X 25.
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Fig. 6 — Flagellum da forma mais rara de macho de Tanais dubius (!) Kr. X 90.
Em primeiro logar e antes de inquerir da sua significação, eu quero dizer uma palavra mesmo sobre este facto. Seria natural, considerar se duas especies differentes, com as femeas muito semelhantes e os machos muito diversos, não poderiam viver juntos, ou se os machos de uma especie em vez de apparecerem em duas formas frisantemente definidas, não poderiam ser variaveis, senão dentro de limites muito amplos. Não posso admittir nenhuma destas supposições. O nosso Tanais vive dentro de confervas densamente entrelaçadas que, formam um revestimento de cerca de uma pollegada de es pessura, sobre as pedras visinhas das praias. Se um punhado deste verde feltro é collocado dentro de um vidro com agua do mar limpa, ver-se-ha as paredes do vaso immediatamente cobertas, por centenas senão milhares, d'este pequeno, roliço e esbranquiçado Isopode. D'esta maneira examinei milhares d'elles com uma simples lente, assim como muitas centenas com o microscopio, sem achar differença alguma entre as femeas ou, qualquer forma intermediaria entre as duas formas de machos.
Para a velha escola, esta occurrencia das duas formas de machos, pareceria ser, méramente, uma questão de curiosidade. Para os que encaram o «plano de creação» como a «concepção livre de um intellecto Todo-Poderoso, amadurecida nos pensamentos do ultimo, antes de ser manifestada em formas palpaveis, externas», seria um méro capricho do Creador, visto como ella é inexplicavel, tanto do ponto de vista de adaptação pratica, como do «plano typico de estructura».
Do lado da theoria de Darwin, ao contrario, este facto adquire sentido e significação; e manifesta-se, em troco, apropriado á derramar luz sobre uma questão em que, Bronn vio «a primeira e a mais material objecção, contra a nova theoria isto é, como é possivel, do accumulo, em varios sentidos, das mais ligeiras variações, procedentes umas das outras, a producção de variedades e especies que, partem da forma primaria tão clara e frisantemente, como a folha peciolada de uma dicotyledonea; e não se amalgamam á forma primaria e entre si, como os lobos irregulares e retorcidos de um Lichen foliaceo.
Supponhamos que os machos do nosso Tanais, até aqui identicos em estructura, começassem á variar em todas as direcções, como Bronn pensa, indefinidamente. Se a especie estava adaptada á sua condição de existencia, se o melhor á este respeito havia sido attingido e, garantido, por selecção natural, as variações novas, affectando a especie como uma especie, seriam retrogradações e, assim, não haveria perspectiva de predominancia. Deveriam, antes, desapparecer outra vez, assim como se haviam elevado; e os róes ficariam abertos aos machos variantes, sómento no sentido das suas relações sexuaes. N'estas, elles poderiam adquirir vantagens sobre os seus rivaes, quando fossem capazes, quer de procurar, quer de melhor subjugar as femeas. O melhor farejador venceria todos os que lhes fossem inferiores n'este respeito, ao menos que os ultimos tivessem outras vantagens, taes como chelipedes mais poderosos, para lhes oppor. Os providos de melhores chelipedes, sobrepujariam todos os campeões menos fortemente armados, á menos que estes lhes oppusessem alguma outra vantagem, tal como sentidos mais desenvolvidos. De tal modo comprehender-se-ha facilmente, como todos os estados intermediarios menos favorecidos no desenvolvimento de filamentosolfactivos ou de chelipedes, deveriam desapparecer das listas e duas formas frisantemente definidas, os mais aperfeiçoadamente farejadores e armados, deveriam permanecer como os unicos adversarios. Até o presente, o combate parece ter se decidido em favor dos ultimos, pois que elles occorrem em numero grandemente preponderante, talvez de uma centena para cada farejador.
Voltando á objecção de Bronn. Quando elle diz que «para base da theoria Darwinista e á fim de explicar porque muitas especies não coalescem por meio de formas intermediarias, quereria, com todo o prazer, descobrir algum principio externo ou interno que, podesse compellir as variações de cada especie, á progredir n'uma direcção, em vez de méramente permittil-as em todas as direcções», podemos, n'este como em muitos outros casos, encontrar tal principio, no facto de que actualmente só permanecem abertas poucas direcções, nas quaes as variações são ao mesmo tempo aperfeiçoamentos e nas quaes, por isso, ellas podem se accumular e se tornar fixas; emquanto que em todas as outras, indifferentes ou nocivas, ellas devem sumir-se tão promptamente como vieram.
A occurrencia de duas formas de machos na mesma especie, talvez possa não ser um phenomeno muito raro, nos animaes em que os machos diffiram grandemente das femeas, em estructura. Porém, só nos que se obtem em abundancia sufficiente, será possivel chegar á convicção de que não temos, ante nós, duas especies differentes, nem animaes de edades diversas. Por minha propria observação, ainda que não muito dilatada, posso dar um segundo exemplo. Elle se refere á um saltão da praia (Orchestia). O animal vive em logares pantanosos, nas proximidades do mar, sob folhas em decomposição, na terra solta que os carangueijos da lama (Gelasimus, Sesarma, Cyclograpsus, etc.) amontoam em volta da entrada das suas tócas e, tambem, debaixo do excremento secco, de cavallo ou de boi. Se esta especie se afasta para uma distancia maior da praia, do que a maioria dos seus congeneres (ainda que algumas d'ellas penetrem muito além pela terra firme e, mesmo, por montanhas de mil pés de altura, tal como Orchestia tahitiensis, O. telluris e O. sylvicola), o seu macho differe ainda mais do de todas as especies conhecidas, pelas poderosas pinças do segundo par de patas. Só a Orchestia gryphus, das costas arenosas de Monchgut, apresenta uma organisação semelhante, porém, em um gráo muitissimo menor; em qualquer outra parte, occorre a forma de mão commum nos Amphipodes.
Mas, ha uma differença consideravel entre os machos d'estas especies, sobretudo na estructura das pinças, uma differença tão grande que mal podemos achar um parallelo, em qualquer outra parte, entre duas especies do genero—e ainda, como em Tanais, não encontramos uma longa serie de estructuras passando de uma para outra mas, sómente as duas formas sem meio termo (figs. 8 e 9). Os machos, seriam indubitavelmente considerados como pertencendo á duas especies bem definidas, se elles não vivessem no mesmo logar, com femeas indistinctas.
O facto das duas formas de pinças dos machos occorrerem n'esta especie, é egualmente digno de nota, porque a formação das pinças que differem amplamente da estructura ordinaria nas outras especies, indica que ella soffreu inteiramente ha pouco, mudanças consideraveis e por isso, tal phenomeno devia ser esperado antes n'ella do que em outra especie.
Não resisto ao desejo de aproveitar a opportunidade e notar que (tanto quanto resalta do catalogo de Spence Bate), para duas formas diversas de machos Orchestia telluris e O. sylvicola) que vivem juntos nas florestas da Nova-Zelandia, só é conhecida uma unica forma de femea e, aventurar a supposição de que temos aqui um caso semelhante. Não me parece verossimil que duas especies, quasi alliadas, d'estes Amphipodes sociaes, possam occorrer promiscuamente sob as mesmas condições de vida.
Como os machos de muitas especies de Melita, se distinguem pela poderosa pinça impar, as femeas de algumas outras do mesmo genero, são egualmente distinctas de todas dos outros Amphipodes, pela circumstancia de que, n'ellas se desenvolve um apparelho particular que facilita a sua prisão pelo macho.
As lamellas coxaes do penultimo par de patas, são prolongados em processos falciformes, pelos quaes os machos ficam seguros, com as mãos do primeiro par de patas. As duas especies que eu conheço com esta estructura, pertencem ao numero dos animaes os mais lubricos da sua ordem; mesmo as femeas carregadas de ovos em todos os estados de desenvolvimento, não raro trazem machos enlaçados. As duas especies são quasi alliadas á Melita palmata Leach (Gammarus dugesii Edwards) que, é amplamente distribuida sobre as costas europeas e tem sido frequentemente estudada; infelizmente, porém, eu não consegui saber se as femeas desta ou de outra especie européa, possuem semelhante artificio. Em M. ixilii todas as lamellas coxaes são da forma commum. Comtudo, seja como for, quer ellas existam em duas ou vinte especies, a occurrencia deste peculiar processo falciforme, é, certamente, muito limitada.
Agora, as nossas duas especies, vivem abrigadas debaixo de pedras ligeiramente enclinadas á visinhança da praia; uma d'ellas M. messalina, tão alto que só raramente são cobertas pela agua; a outra Melita insatiabilis, um pouco mais abaixo; ambas as especies vivem reunidas em numerosos enxames. Não podemos, por isso, suppor que os pares amorosos sejam ameaçados de perturbação, mais frequentemente do que os das outras especies, no caso da perda da sua Eva, não venham á encontrar uma outra. Nem ha nada mais facil do que ver em que o artificio, no corpo feminino, para garantir o actoamoroso, poderia ser nocivo á outra especie. Porém, emquanto não está demostrado que as nossas especies carecem, particularmente, deste artificio ou que, o ultimo seria mais depressa nocivo do que util ás outras especies, a sua presença, sómente nestes poucos Amphipodes, terá de ser encarada, não como a obra de premeditado desejo mas, como a de um accidente, tornado uso pela selecção natural. Sob a ultima hypothese sua occurrencia isolada é intelligivel, ao contrario, não podemos perceber porque o Creador munio, só estas poucas especies, de um apparelho que elle julgou inteiramente compativel com o <<plano geral de estructura» dos Amphipodes e, entretanto, recusou-o aos outros que vivem sob as mesmas condições externas e os egualam, ainda, na extraordinaria lascivia. Associados, ou na immediata visinhança das duas especies de Melita, vivem duas especies Allorchestes, cujos pares são encontrados mais frequentemente do que os animaes isolados; e entretanto, suas femeas não mostram o menor traço dos processos supra-mencionados, das lamellas coxaes.
Este caso, penso eu, deve ser trazido em contrario a concepção defendida, com tanto talento quanto saber, por Agassiz, de que as especies são pensamentos do Creador, corporificados; e, com este, todos os exemplos similares, em que os arranjos que seriam egualmente beneficos, para todas as especies de um grupo, faltem á maioria e só sejão conferidos á poucos e determinados favoritos que, não parecem precisar d'elles algo mais do que os restantes.
FRITZ MULLER.