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Quem conta um conto/VI

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O sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do dr. Oliveira, em S. Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.

O major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:

— Vamos a S. Domingos.

— Vamos a S. Domingos, suspirou Luís da Costa.

A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.

Na casa do dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.

Enfim vieram.

— Está o sr. Pires?

— Está, sim, senhor, disse o moleque. Os dois respiraram.

O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l'introuvable[1].

Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente ao major Gouveia.

— Queiram sentar-se.

— Perdão, disse o major, não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.

O sr. Pires curvou a cabeça e esperou.

O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:

— Fale.

Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se nestes termos:

— Estando eu hoje na loja do Paulo Brito contei a história do rapto de uma sobrinha do sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta, contudo, chegar à fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu, então, procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim, encontramo-lo.

Durante este discurso, o rosto do sr. Pires apresentou todas as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três ou quatro minutos.

— Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não falava.

— Mas, que quer o senhor? balbuciou o sr. Pires.

— Quero que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?

— Não lhe disse tal, acudiu o sr. Pires; o que eu disse foi que me constava ser bonita.

— Vê? disse o major, voltando-se para Luís da Costa.

Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.

O major dirigiu-se, depois, ao sr. Pires:

— Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?

— Foi de um empregado do tesouro.

— Onde mora?

— Em Catumbi.

O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.

— Pode retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.

Luís da Costa não esperou mais: apertou a mão do sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.

Estava livre.

Notas

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  1. L'introuvable: Francês para "O impossível de achar"