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Questão de vaidade/IV

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Deixando a casa de Maria Luiza, Eduardo tomou um tílburi e mandou tocar para a ponte das barcas de S. Domingos.

Dentro de dez minutos estava lá.

Apeou, pagou o tílburi e entrou na estação. Ali esperou a primeira barca que devia partir e que era a das duas e meia horas. Entre os passageiros que esperavam houve um que mereceu desde logo a atenção e os cumprimentos de Eduardo.

Era um homem de quarenta e cinco anos, baixo, meio gordo, fisionomia insinuante, destas que, mesmo sérias, trazem impresso inconstante sorriso.

Eduardo dirigiu-se para ele e cumprimentou-o afetuosamente, dizendo:

— O Sr. Almeida dá-me um grande prazer. Não contava desde já o prazer de cumprimentá-lo.

— Por quê? perguntou o indivíduo, dando a Eduardo lugar ao pé de si.

— Porque só daqui a três quartos de hora contava estar em sua casa.

— Ah! tanto melhor! tanto melhor!

— Toda a família está boa?

— Tudo vai indo, obrigado. Há quantos dias não vai lá?

— Creio que há dois.

— Ainda ontem Sara falou em seu nome. Ontem não, creio que foi hoje de manhã.

— Deveras? perguntou Eduardo sem dissimular a alegria que lhe dava esta notícia.

Neste momento chegava a barca, os dois tomaram passagem, e daí a três quartos de hora estavam à porta da chácara de Almeida.

Sara, a filha deste, o objeto do segundo amor de Eduardo, veio recebê-los à porta. Mais atrás vieram o filho e o irmão de Almeida. Eduardo foi recebido por todos com verdadeiro regozijo.

Em duas palavras apresento a família de Almeida ao leitor.

Almeida, na época em que se passam estes acontecimentos, vivia do que ganhara durante uma vida laboriosa de longos anos. Não vivia com parcimônia, mas também não era pródigo. Tinha a ciência da economia doméstica, mediante a qual sabia despender utilmente, sem faltas nem sobras.

Era viúvo. No fim de oito anos de casado, morrera-lhe a mulher, deixando dois filhos, um rapaz e uma menina.

A menina era mais velha que o rapaz; contava este seis e aquela sete anos quando morreu a mulher de Almeida.

Almeida completou por si a educação tão zelosamente começada por sua mulher. Sara cresceu sob os melhores auspícios. Aumentou em beleza e conservou até à idade de dezessete anos a inocência e a graça da infância. Era um bom coração em toda a pureza da palavra. Nenhuma nuvem negra perturbara o céu sempre claro do seu espírito.

Quanto à beleza física, imagine o leitor o que podia fazer contraste com a beleza da viúva Maria Luiza. Esta, como disse já, acusava em suas feições uma alma dada à violência das paixões, uma rara energia moral. Sara não era assim! Parecia uma criatura de outro mundo, caída por engano no mundo dos Eduardos. Era um alfenim, uma delicadeza que não parecia natural. Delgada e um tanto alta, olhos negros, cabelos alourados, porte senhoril sem altivez, elegante sem artifício, graciosa sem afetação: tal era Sara.

Se a compararmos à viúva, teremos, conforme a respectiva presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luiza amava como as italianas: era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as alemãs: era meiga, resignada, sentimental.

Estas duas mulheres diversas na índole, no gênio, talvez no coração, ligavam-se em um ponto: no amor por Eduardo, em quem viam, cada uma pelo prisma do seu espírito, o ideal sonhado em suas doces aspirações.

Disse acima que, após Sara, tinham ido receber Eduardo um irmão e um filho de Almeida. Não têm estas duas figuras máxima importância na nossa história, mas devo designá-las como partes integrantes da família de uma das heroínas.

O tio de Sara tinha por nome Silvério. Era um aposentado da atividade. Em moço, e até certa idade madura, fora incansável trabalhador. Agora descansava à sombra da fortuna e da amizade fraterna do pai de Sara.

Tinha sido solicitador de causas, e deste emprego, exercido por longos anos, trouxera até à velhice um espírito chicaneiro e discutidor. Era, além disso, uma inteligência acanhadíssima, frívola, tola, rasteira. Dava-se à apreciação de quantas anedotas e dictérios ouvia ou lia. Fazia a autópsia das necessidades escritas em jornais com o mesmo espírito com que outrora redigia um embargo ou uma assinação de dez dias.

Era aturado, estimado mesmo, em virtude de sua velhice, de seu grau de parentesco e de algumas virtudes que tinha.

Um espírito daquela natureza não podia fugir às seduções do jogo do xadrez, do qual dizia, creio eu a divina Staël, que para jogo era demasiado sério, e para negócio demasiado frívolo. Cito de memória.

Era, com efeito, um grande jogador de xadrez o tio Silvério. Por desgraça, Eduardo não o era menos, de modo que mal se anunciou a visita deste, correu Silvério para a porta com os braços abertos.

O filho de Almeida era um rapaz de dezesseis anos. Estudava direito em S. Paulo. Durante os acontecimentos que estou narrando estava ele em férias no Rio de Janeiro.

A família Almeida recebeu Eduardo, como disse, com o mais cordial acolhimento.

Parecia um filho que chegava de longa viagem.

E para aquela gente, que estremecia tanto a formosa Sara, não era um filho aquele que a salvara da morte?

Enquanto Eduardo e Almeida descansavam do pequeno caminho que tinham feito, tratou-se dos preparativos do jantar. Sara ia e vinha com uma graça encantadora. Dizia duas palavras a Eduardo, uma ao tio Silvério, duas a seu pai, sempre com aquele recato e modéstia que tanto agradam quando são verdadeiros e tanto enjoam quando são artificiais.

Na sala, sobre a mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia. Um lenço marcado com a firma de Sara, atirado sobre as folhas abertas, para marcar a página, indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre.

Eduardo pegou no livro e no lenço e foi sentar-se junto de uma janela. Sua vaidade impava de contente. Tinha diante de si um coração virgem, completamente virgem; um coração que ainda podia ler Paulo e Virgínia. Amar, conquistar, possuir esta menina, era surpreender a flor no botão; era ensinar o catecismo do amor, soletrar o credo do coração, a uma ignorante, a uma pura, a uma ingênua. Que mais podia ambicionar o caprichoso namorado?

Se alguma das pessoas da família tivesse olhar mais perspicaz poderia de certo descobrir no olhar e no sorriso com que Eduardo folheou o volume toda a satisfação de sua alma egoísta.

Pedro Eloy, esse com certeza adivinharia tudo e diria tudo quanto pensasse. De longe, Eduardo podia desdenhar os conselhos prudentes do amigo, a quem chamava filósofo e santo milagroso; mas, de perto, não seria assim. Pedro Eloy tinha, de fato, certo ascendente sobre Eduardo, ao qual seria de maior proveito se lhes fosse possível conviver.

Depois de alguma espera, Sara mandou anunciar que o jantar se achava na mesa, e foi ela mesma buscar Eduardo, o pai e o tio.

— Que está lendo aí? perguntou ela a Eduardo, entrando na sala.

— Ah! perdão! respondeu este. Foi uma ousadia de que me arrependo; mas este livro aberto por suas mãos, lido por seus olhos, devia ter adquirido uma virtude nova e eu quis aspirar-lha antes que outro o fizesse. Perdoa-me?

Almeida sorriu-se ouvindo estas palavras de Eduardo; Sara tomou-lhe o livro docemente, tocando com os seus dedos nos dele, e lançando-lhe um olhar da mais franca e pura satisfação; Silvério contentou-se em tomar uma pitada dizendo:

— E contudo este moço joga bem o xadrez!

A palavra xadrez fez estremecer Eduardo. Era o sinal de um perigo iminente. Todavia, como fino cavalheiro que era, ofereceu o braço a Sara, e seguiu acompanhado de todos para a mesa do jantar.

Até aquela hora um só minuto não pudera falar a sós com Sara. Durante o jantar era impossível. O jantar foi demorado, mais que de costume. Aproximou-se a noite. Finalmente levantaram-se todos e foram dar um passeio pelo jardim.

Aí, graças à circunstância de dar o braço a Sara, pôde Eduardo falar-lhe mais livremente, apressando ou demorando o passo, conforme as necessidades.

— Soube que tem pensado em mim, disse Eduardo a Sara, caminhando ao longo de uma cerca de roseiras. É verdade?

— Não sei, respondeu a moça.

— Vejo que é uma confirmação.

— Quem foi o indiscreto?

— Foi seu pai, mas é verdade?

— É sim; creio que não faz mal.

— Mal? Oh! nenhum! Fez a minha felicidade.

— Só em pensar?

— Pensar é interessar-se, interessar-se é... sabe o que é?

— Não sei, respondeu Sara corando.

Eduardo queria que a confissão viesse da moça. Esta, para disfarçar a sua perturbação, voltou-se e falou ao pai acerca de algumas necessidades do jardim.

Daí a cinco minutos a conversação entre Eduardo e Sara continuou.

— Sara...

A moça estremeceu ouvindo este modo de falar.

Depois, erguendo os olhos para Eduardo, pareceu dizer-lhe naturalmente: continue!

— Sara, continuou Eduardo, não posso, não quero, não devo ocultar-lhe por mais tempo o sentimento que a sua beleza me inspirou. Amo-a, Sara. Amo-a muito, muito. Desde que eu tive a ventura de salvá-la das ondas, senti que tinha achado o objeto dos meus sonhos. O ideal da minha imaginação. Para ser completamente feliz, basta que o seu coração responda aos sentimentos do meu; basta, para dizer-me desgraçado, a sua recusa ou a sua indiferença. Diga, Sara, ama-me também?

A moça estava embriagada ouvindo esta linguagem. Houve um silêncio em que ela se deleitava com a música das palavras de Eduardo.

Este repetiu a pergunta.

— Sim, respondeu a moça, sim!

As duas mãos se procuraram. Pararam um instante; tinham os olhos embebidos. Assim se passou algum tempo, até que Silvério os foi chamar.

— Então, que é isso? É o jogo do sério?

Os dois voltaram à vida.

Caindo a noite, voltaram todos para a casa. Eduardo ia despedir-se, quando lhe surgiu, armado de um tabuleiro de xadrez, o tio Silvério. Não havia meio de recusar, não já porque o exigisse a delicadeza, mas ainda porque Silvério era dos tais que, em pedindo qualquer coisa, punha a gente num suplício.

Eduardo viu-se obrigado a aceitar a partida de xadrez.

Para a filha de Almeida era isto uma grande felicidade. A conversa do jardim decidira-lhe o coração. O que podia haver de incerto naquela natureza fraca, indecisa, naquele espírito simples e ingênuo, desaparecia diante dos sentimentos que as palavras de Eduardo despertaram. Até então, a moça sentia alguma coisa que a arrastava para aquele homem, mas nem o dizia, nem mesmo interrogava a si própria a razão do novo estado.

Agora, tinha-se-lhe clareado o horizonte. Era amor, que sentia, e amor daqueles que só as almas elevadas são capazes de sentir. O admirável instinto de mulher dera-lhe o resto do que não pudera interpretar das palavras de Eduardo.

Quando Eduardo declarou aceitar a partida de xadrez a moça sentiu que o coração lhe palpitava com mais força. Ela própria foi dispor o necessário para o jogo, não sem levantar muitas vezes os olhos para Eduardo, cujo olhar, pregado nela, exercia uma como fascinação.

Adivinha-se o resto. Entre a paixão do jogo, dominante em Silvério, e os olhares instantes de Sara, viu Eduardo correr as horas sem arredar pé. O jogo deu-se por terminado à meia-noite. Apenas tinham jogado duas partidas, em que Silvério ganhou sempre. Isto, porque ele não estava apaixonado, e Eduardo, se não o estava, acreditava estar, o que não deixa de produzir algum efeito, como a moléstia imaginária fazia Órgon conservar-se na cama.

Silvério apertou afetuosamente a mão de Eduardo, prometendo-lhe ficar pronto para dar-lhe a desforra.

À despedida, Sara, em quem já dominava mais o amor que a ingenuidade infantil, colheu no jardim uma flor das roseiras loucas, ao pé das quais tivera a conversa com Eduardo, e ofereceu-a.

Eduardo aceitou, sorrindo a um remoque paternal do velho Almeida, que ainda não calculava o estado do coração de sua filha.

Mas como fosse saindo sem nada dizer, Sara fê-lo parar, e disse-lhe em voz alta, visto não poder ser de outro modo:

— Eu cuidava que me devia retribuir a dádiva com outra... com essa flor que traz aí no peito.

Eduardo olhou a casa do paletó, viu a rosa que lhe fora dada por Maria Luiza. Tirou a flor e deu-lha.

Depois saiu.

Na rua ocorreu-lhe a lembrança que tinha prometido ir tomar chá com Maria Luiza. Lembrara-se dela algumas vezes em casa de Almeida, mas a promessa do chá varrera-se-lhe inteiramente da memória.