Questão de vaidade/V

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Nas cenas que até aqui tenho esboçado, tentei mostrar a leviandade e a vaidade de um homem que fazia jogo com as paixões e os sentimentos ingênuos de duas criaturas. Não há inverossimilhança nos fatos, todos concordarão, mas também não há inverossimilhança nos sentimentos de Eduardo, atendendo-se a que era um espírito para o qual nada havia fora do culto da própria personalidade.

Acreditando-se sinceramente apaixonado e não podendo distinguir a natureza do amor e a natureza dos desejos, Eduardo servia de algum modo aquele culto, armava à incredulidade; mas o assombro da novidade, os comentários, a fé que começaria a entrar nos espíritos e que se robusteceria quando ele pudesse passar do estado de solteiro para o de casado, tudo isto eram os aguilhões com o que o seu amor-próprio se sentia brioso e compelido a prosseguir na conquista.

Sara veio complicar as coisas no que dizia respeito ao casamento de Eduardo; e por esse lado afastou-o do alvo a que pretendia chegar; mas se o afastou, não foi senão para dar lugar a nova e maior extravagância, essa do amor por duas mulheres, a donzela e a viúva, na mesma intensidade e no mesmo grau.

Perguntará o leitor como é que um homem de tão bom senso como Pedro Eloy parecia tão amigo de Eduardo. A resposta está contida nas duas cartas que eu já li. Pedro Eloy, com um olhar de filósofo, via que não era impossível trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem levar a conseqüências grandes, mas com a austeridade da lição e da prática são suscetíveis de desaparecer e tornar-se melhor o espírito em que eles existem. Pedro Eloy tentava isto de longa data; e, como vemos, era um santo e um filósofo. Tinha conseguido tudo quanto desejara? A este respeito o procedimento de Eduardo desmente a submissão afetada da carta. Que alguma coisa tivesse feito, acredita-se; mas não fez tudo, nem muito. Vejamos agora como continuaram os dois episódios amorosos que Eduardo entretinha com tanto cuidado.

Em casa de Maria Luiza, no dia seguinte, foi Eduardo mal recebido. A viúva mostrava uma frieza e uma indiferença que não eram mais do que os véus com que se cobriam o despeito contido e a dor sufocada.

A promessa não cumprida ligava-se a outras faltas de Eduardo, e para um coração amante, sobretudo para um coração como o de Maria Luiza, não eram essas faltas facilmente desculpáveis.

Maria Luiza sentia naquilo um desdém, um sintoma de resfriamento do amor, e pressentia não sei que más novas para o futuro.

Eduardo explicou-se como pôde. Alegou a doença de um amigo, acrescentando que pouco lhe importaria perder o amigo por amor dela, mas que, instado por dois outros em tom imperativo, tivera de ceder-lhes.

Maria Luiza acreditou ou fingiu acreditar na desculpa. De um ou outro modo, é certo que ainda derramou algumas lágrimas. Não sei que haja alguém que possa resistir às lágrimas de uma mulher. Falo das lágrimas sinceras. É o que há mais poderoso para desarmar a cólera ou comover o egoísmo. É como que um protesto de fraqueza; e resistir-lhes não é de alma nobre, nem de consciência elevada.

As lágrimas tiveram efeito, mas um efeito excepcional; faltavam a Eduardo as qualidades delicadas para apreciar o valor de uma lágrima sincera. Era o amor-próprio que se comprazia em ver chorar aqueles olhos e comover-se aquela alma. Seguiram-se protestos descarados, velhos respeitos, sem sentimento nem valor.

Dizia Maria Luiza, enxugando os olhos:

— Vejo que me não ama; vejo que me não compreende. Ah! se me compreendesse e amasse...

A isto respondeu Eduardo:

— O quê?... Não a amo? Eu?! Não diga isso! mais que a vida... etc.

O leitor conhece o resto.

Enfim, a tempestade serenou. Despontou um sorriso nos lábios de Maria Luiza, como um sinal de aliança. Eduardo mostrou-se satisfeito com o desenlace e disse:

— Vê? A dor de a ver em lágrimas retinha as minhas próprias. A alegria é mais expansiva; agora, que a vejo alegre e me perdoa, sou eu quem chora!

Este rasgo tinha suas dificuldades; a maior era que chorar sem lágrimas não convencia, e Eduardo tinha os olhos secos como os do leitor, que ainda não teve, nesta história, motivo de chorar. Por isso tirou da algibeira um lenço e levou aos olhos, conservando-se algum tempo nessa posição.

Foi despertado por um pequeno grito de exclamação de Maria Luiza. Tirou, ou antes, foi-lhe tirado o lenço da mão. Maria Luiza, depois de olhar para o lenço, fitou os olhos em Eduardo, e perguntou-lhe:

— Quem é esta Sara?

Eduardo estremeceu, olhou para o lenço, depois para Maria Luiza, depois para o teto.

— É uma prima.

— Nunca me falou nela, disse Maria Luiza.

— Isso que prova? É de uma prima. Fui ontem visitá-la e trouxe este lenço. Está com ciúmes?

— Não, respondeu a viúva.

E entregou-lhe o lenço.

Como o leitor adivinha, era o lenço de Sara, que marcava a página de Paulo e Virgínia.

Houve um silêncio entre ambos.

Maria Luiza refletia: — É bem possível que o lenço seja da prima; por que não? Realmente, sou exigente demais. Ele não parece mentir. Por que havia de mentir?

Depois levantou-se e disse sorrindo a Eduardo:

— Vou tocar piano!

Eduardo levantou-se e foi sentar-se ao pé do piano. Ela começou a preludiar e depois a cantar aquela canção francesa tão conhecida e que parecia adequada à situação.

J’ai peur de croire en toi.
Pourtant, malgré moi-même,
Ah! je le sens, je t’aime,
Toi, toi,
Toi, le seul bien pour moi!
J’ai peur, car dans mon coeur
Mon amère souffrance,
Toujours dans ton absence,
Vient flétrir mon bonheur!
Etc. etc.

Deixo ao leitor calcular quanta paixão a bela viúva empregou na execução do canto. O próprio Eduardo pareceu um tanto convencido.

Enfim, o dia passou-se sem maior novidade no céu de amor de Maria Luiza. Dissipadas as primeiras dúvidas, Maria Luiza sentia-se feliz como dantes. Eduardo estava contente de si.