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Recordações Gaúchas/II

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Começava-se a sentir uns ares de fronteira.

Ao cair da tarde, pouco mais ou menos com duas braças de sol, conforme a expressão useira do vaqueano, trilhavam os nossos andantes uma estrada larga e plana, desenvolvida sobre chapadões que se esbatiam com uma inclinação quase insensível para a frente.

Ao longe desenhava-se uma linha negra e tortuosa, que mais e mais acentuava-se à medida que a comitiva aproximava-se.

- Piraí-grande, exclamou Chico Pedro, apontando para a frente, - lá está o passo do Acampamento. Aquela casa branca perto do passo é a venda do Chicuta; e aquela estância lá longe pra a direita, é dos Buenos; já trabalhei por lá: boa gente; gadaria muita.

- Já sei que és um vaqueano completo: em conhecer lugares ninguém te ganha; és um tapejara, disse João de Borba.

- Como há de ser, patrão, a gente, desde criança cruzando de pago em pago, quando chega a certa idade está mesmo que ninguém lhe desponta. Hoje estou muito quebrado... no meu tempo...

E Chico Pedro esporeou o cavalo, arrebitou a aba sovada do chapéu e suspirou.

- Que fazia no teu tempo? parece que tens saudades, disse o patrão.

- É verdade, seu cadete, - este tratamento era dado por Chico Pedro, toda vez que entrava com João de Borba em conversa, na qual metia sempre alguma pessoa da família.

- É verdade, - continuou ele, tudo isso que - descamba em coxilhas à direita e esquerda, andemos virando de baixo pra cima; cruzando esses arroios de bolapé e a nado, de noite ou de dia, servindo com o meu tocaio que chamavam de Moringue , no tempo da Califórnia, eu e mais o falecido patrão velho, que nessa data era tenente. A última vez que cruzei por aqui, ainda me lembro, foi duma feita que veio uma partida e matou o dono daquela casa, (e indicou um estabelecimento); o homem parece que era comprometido e era atropelador, porque assim que avistou a gente viu ele mesmo, mas quando se topou com o comandante, os outros derrubaram ele e ali mesmo ficou. Pelo jeito aquilo foi obra mandada.

- Tu eras da maloca, hein?

- Falou-se, ouvi dizer. Depois, dizem que o filho, que é hoje dono da estância, andou perseguindo os matadores e acabando com eles, um por um. Com o último, que era o comandante, ele nunca pôde. Este sujeito era sorro manheiro que não dormia nas palhas, mas quando viu o caso mal parado, porque o outro lhe deu no rasto, dizem que veio e e arranchou ali mesmo perto da casa do filho do defunto, a umas vinte ou trinta quadras de distância, meio à vista.

- Mostrou que era matreiro e veterano; com o inimigo à vista, a gente anda alerta; o caso é que os outros já se foram e ele ai está vivendo.

João de Borba entretinha-se muitas vezes conversando com o antigo servidor da família; tinha-lhe afeição. De sua parte Chico Pedro era louco pelo seu cadete e quando estava entre a peonada, tinha garbo em dizer: Ensinei ele a andar a cavalo; andei com ele no colo; muito me puxou estas barbas, e alisava os escassos fios do bigode e pêra, duros como cordas.

Dai a um quarto de hora chegavam ao pouso.

A casa era como são em geral todas as de negócio naquela parte da fronteira: - portas estreitas, janelas altas com grades de ferro e dentro uma moxinifada comercial de secos e molhados, fazendas, botica, etc. etc. ao lado um grande galpão aberto, servindo de depósito de frutos do país, com um quarto espaçoso que era ao mesmo tempo sala de jantar e dormitório dos viajantes, e na frente uma enorme ramada capaz de acomodar uns 50 cavalos.

Entretanto, naquele dia a frequentada venda apresentava um aspecto desacostumado: estranho movimento animava os seus arredores, transformados agora numa espécie de acampamento.

Grande carretama com suas toldas de couro ou zinco, ornadas de desenhos grotescos feitos a tinta vermelha, ônibus, carretilhas, carroças, barracas, toldos e crescido número de ramadas grandes e pequenas estendiamse sobre um bonito chapadão, em duas alas alinhadas em forma de rua, à distância de 7 a 8 quadras, com um intervalo entre si de cinquenta passos por onde transitava uma multidão de pessoas a pé e a cavalo, formando pequenos grupos aqui e acolá.

De vários pontos saíam cavalos delgados com largas barrigueiras de lona ou de couro lonqueado e eram puxados a pouca distância, para os lados, onde os deixavam pastar seguros pelo cabresto; outros comiam na frente das ramadas, presos a uma estaca, tendo ali perto o cuidador.

O olfato experiente percebia de longe a exalação acre da refeição camponesa, àquela hora, refeição quase na totalidade composta de carne assada ao espeto, o que era confirmado pelas espirais de fumo que saiam dos fogões, distendiam-se pelas depressões dos campos até a orla do mato, formando uma tênue faixa azulada tangida pela morna viração crepuscular.

Ouvia-se por toda parte e de todos os lados de mistura com vozes humanas, os sons fanhosos das gaitas e violas, que naquele concerto agreste faziam as delícias dos aficionados, bardos e trovadores da época.

Neste momento chegava a nossa comitiva, sem dar na vista, já se vê, pois naqueles dias muitas outras tinham chegado das vizinhanças e até de muito longe, àquela espécie de rendez-vous anunciado três meses antes pelos interessados.

- Dia de carreira, disse o compadre Giloca.

- Mau dia para pouso de viajantes, respondeu João de Borba; estamos troteados e não nos vão deixar dormir. Nestas reuniões de dia correm-se carreiras e de noite jogam-se cartas. Há quase sempre rusgas e dúvidas que não acabam bem.

- Não importa, pediremos cômodo à parte.

- Se houver, o que não é provável, porque segundo penso, os pontos devem estar tomados; o povaréu é muito e eu sei que a casa não é grande, mas ultimamente não temos mais onde ir.

Enquanto esta conversa tinha lugar, caiu a noite. Chico Pedro e Nadico foram acomodar os animais e de volta ficaram de guarda aos trens dos patrões. Estes entraram na sala dos hóspedes e tomaram o primeiro assento vago que encontraram. Outros e outros chegaram foram logo formando pequenos grupos e organizando duas ou três mesas de primeira, que era e creio que continua a ser, o jogo favorito dos carreiristas.

Antes de continuar digamos duas palavras sobre o que é esta espécie de jogo.

A primeira é um jogo ligeiro, de impressões rápidas e fortes, e que, no dizer dos entendidos, só tem graça quando é a dinheiro; nele não entra quase cálculo ou combinação, muitas vezes um palpite, uma coraçonada, como dizem alguns, um passe repentino, faz melhorar a sorte do parceiro que está caipora, dando-lhe a posse de uma boa parada.

Nas mesas há geralmente três espécies de jogadores: - o turbulento e provocante, que diz insolências; o alegre que fuma e pede o seu trago de bebida, e o jogador calado, de chapéu nos olhos, que rompe as cartas quando perde.

Para uns o jogo deve ser de relancina, isto é, corrido, de uma só vez, produzindo comoções ligeiras, desencontradas, conforme os vaivéns da sorte; para outros demorado, escolhido, fazendo passes, e deixando oscilar o espírito entre o prazer de arrastar a parada e o descalabro de a perder; estes gostam de orelhar a carta decisiva, a predileta, puxando-a com a mão direita para cima e com a esquerda apertando-a para não deixá-la surgir; assim é que o naipe sai como que arrancado à força, lá do fundo, isto é, de um fundo imaginário, ideal, onde se debatem a boa e a má fortuna.

Continuando, diremos que formada uma roda de 8 ou 10 indivíduos, correram as primeiras cartadas, a que nenhum dos parceiros deu importância, e assim continuaram três ou quatro mãos em que sucederam-se algumas paradas.

As onças de ouro, dinheiro brutalmente pesado e grosseiro, hoje quase desconhecido eram naquele tempo mui vulgares; a libra esterlina, que mais tarde a suplantou e substituiu, não tinha ainda acentuado os seus direitos de conquista na circulação em terra americana.

Gateadas chamavam-nas alguns, outros doradilhas, na linguagem metafórica dos nossos patrícios, muitos dos quais se apresentaram ali habilitados com seus tiradores e guaiacas de couro de ariranha, ostentando a luzente de moedas de prata, caindo à laia de pingentes abotoadura.

Para troco havia os patacões e dali para baixo eram moedas que davam-se às crianças.

Assim é que dai a pouco vários montes de Gateadas acumulavam-se ou desapareciam diante dos parceiros, segundo a sorte ou habilidade de cada um.

Um deles, que sentara-se por último, ganhou logo diversas mãos e começou a fazer paradas a dobrar, como quem quer aproveitar a sorte.

- Má senha, disse o compadre Giloca, baixinho, a João de Borba, é ditado certo: quem entra ganhando sai... perdendo.

- Depois saberemos do resultado, disse João de Borba, por agora vamos tratar de dormir. Amanhã não saímos daqui: é o dia da carreira grande; até agora já sei que só tem-se floreado changueiros.