Recordações Gaúchas/XI

Wikisource, a biblioteca livre

O arroio S. Luis, que serve de limite entre a nossa e a nação vizinha, é na altura em que J. de Borba e seus companheiros deviam passar - um pequeno riacho, bordado de pouco e carrasquento mato.

A margem brasileira desenvolve-se em campos um pouco dobrados, e a oriental estende-se em um vargedo até cerca de légua, onde começam as primeiras escarpas e contrafortes dos Serros Brancos.

A comitiva transpôs sem incidente a linha divisória; apenas por uma formalidade J. de Borba mandou Chico Pedro dar parte às respectivas guardas de cada lado.

Se em vez de pela manhã tivessem passado entre meio-dia e três horas da tarde, nada seria preciso, porque era costume a essas horas os guardas dormirem rasgadamente a sesta, a ponto de passarem contrabandos e tropas em disparada sem serem pressentidos.

Dos tempos antigos parece que este é um dos poucos costumes que têm subsistido.

A comitiva seguia sem nada de notável o seu trajeto.

Logo ao subir os ditos serros morava o conhecido velho Bernabé, espécie de vedeta onde era de praxe os andantes chegarem para pedir pousada ou simplesmente para mudar cavalos e informarem-se das novidades, porque ele vivia orientado do que se passava a 10 ou 20 léguas, em ambos lados da fronteira.

Era já naqueles tempos o que agora se chama um cacete, um angico, devendo-se prevenir ao leitor de que o cacete na campanha difere muito do da cidade e que ali ele apresenta-se corh as funções invertidas.

Na cidade o cacete percorre as ruas, ataca-nos em qualquer parte, anda de casa em casa, e evita-se, foge-se dele como de um abalroamento, de uma pechada como dizem os campeiros; em casa ele pede-nos os fósforos, fuma o nosso cigarro, toma-nos o café e aí fica horas e horas, resistindo ao sal no fogo, vassouras viradas atrás Oe portas e a quantas simpatias andam por aí em voga.

Na campanha o caso é outro: o cacete é sedentário, caseiro, e caceteado é o que chega, acrescendo que nem sempre é possível fugir-se dele, quando se trata, por exemplo, de um pouso.

Às vezes o andante está moldo de cansaço, tonto de sono e morto de fome, mas é hóspede, está na dependência, e o outro o tiraniza com intermináveis pedidos de notícias, e, para mostrar-se entendido, começa a falar de eleições.

Assim acontecia com o velho Bernabé sequioso sempre de novidades, as quais recebia em troca da sua hospitalidade, que a ninguém negava.

A nossa comitiva, cedendo à antiga praxe, não passou sem chegar.

João de Borba e o compadre Giloca, felizmente, não eram hóspedes na ocasião, mas, mesmo assim pagaram o seu tributo de notícias e ficaram sabendo que para diante o país estava em pleno sossego, podendo portanto seguirem o seu itinerário.

Dois dias se passaram; do alto da pequena cordilheira dos Serros Brancos, por onde, discorria a estrada, descortinava-se um horizonte claro e desimpedido: à esquerda o Serro do Vigiadeiro, como um plantão postado à entrada do Rincão do Pereira, entre Rio Negro e Caraguatá, parecia destacado do solo, como uma nuvem boiando num oceano de fogo, - tal era a reverberação trêmula dos raios solares, nas horas quentes do dia, correndo por lombas e coxilhas, com uma certa ondulação ardente, semelhante à que sai da boca de um forno; à direita o perfil sinuoso e dentado da serra de Arequá e para a frente, rumo do poente, uns pontos azuis-esfumados, muito longe, tirados rente ao chão.

- Serros de Clara, mostrou Chico Pedro, lá 'stão eles; daqui até lá temos ainda dois dias e de lá dia e meio, para bater na querência. Aquela casa grande que está ali na beira da estrada, é do coronel Pantaleão; chama-se Estância do corvo branco, porque ele tinha um.

- Um quê?... perguntou J. de Borba.

- Ora, um corvo branco, seu cadete, eu vi; era manso e tinha os olhos bem encarnados que parecia dois joás.

- Seria mesmo algum corvo, assim dessa cor? disse o compadre Giloca.

- Era, sim; a cor, isso não regula; o patrão sabe que o joão-grande é preto quando nasce e depois fica branco, e que o aribu de carniça nasce branco e quando cresce fica preto; quem sabe se o corvo do coronel tinha mudado de cor... há tanta mudança...

A conversa terminou incidentemente, por ter o interlocutor de endireitar o rumo aos animais, os quais naquele ponto se afastavam do caminho, que era pouco trilhado.

Assim prosseguiram, alcançando naquele dia as Ilhas de Caraguatá, que não são mais do que uns poucos de capões disseminados pelo campo, entre os quais erguese um pequeno serro em forma de funil voltado com o bico para cima, chamado Serro do Tigre, onde fora morto um destes animais, por um famoso caçador tigreíro chamado Manoel da Cunha.

A noite passaram em uma estância, dormindo ao relento, com o fim de fazerem uma madrugada grande.

De, fato, ao segundo canto dos galos, pôs-se em marcha a comitiva, e ao nascer do sol iam enfrentando a Estância de Cima, nome dado par a diferenciar da Estância de baixo, daí a 3 léguas e por serem ambas do mesmo proprietário sr. Felisberto Cunha.

Os campos cobertos de chilca e o caminho estreito e tortuoso tornavam a jornada enfadonha, de modo que a monotonia começava a invadir os espíritos, como sucede nas viagens prolongadas e uma soneira impertinente convidava a cochilar, acoroçoada pelo sol que despontava.

Para os poetas e literatos esta hora é cheia de encantamentos, mas não são do mesmo parecer os viajantes que madrugam e tropeiros que rondam gados.

Para estes é a hora tremenda.

O sono impõe-se de modo invencível e a vítima sente zoada na cabeça, pesada então como chumbo, e uma turbação completa dos sentidos da vista e do ouvido, a ponto de os mais colmilhudos sentirem-se forçados a darem seus cochilões.

Pascual danado, dizia Chico Pedro, e firmava as pernas no estribo, fazendo descansar o queixo no seu reforçado cabo de relho, posto a prumo sobre o lombilho, para não cambalear.

João de Borba e o compadre Giloca, para combaterem o pascual, que também os acometia, iam puxando conversa e quando chegaram ao alto de uma coxilha, deram fôlego aos animais, apearam-se, picaram fumo, tiraram fogo e acenderam os cigarros.

O compadre Giloca já tinha sido morador naqueles pagos e conhecia-os a palmos, por isso, ao recomeçarem o caminho, foi indicando os nomes de algumas estâncias e citando fatos.

Ao transporem uma sanga passaram junto a um pequeno cemitério em campo aberto, com várias cruzes de diferentes tamanhos, coisa muito comum em campanha, onde os habitantes escolhem os passos, encruzilhadas e lugares mais transitados para jazigo final dos seus semelhantes, espécie de Memento homo, pondo-lhe incessantemente à vista o nda das cousas humanas no caminho da vida.

- Aqui, disse o compadre Giloca, estão dois guapetões de fama, que eu conheci. Aquela cruz maior, onde o joão-de-barro fez ninho, é a do Luca Lindongo, e a outra mais nova é do Chico Bernardo. Este sujeitos viviam de matar os outros. Os dois mataram o dono daquela estância, mandados por outros, por motivo de herança de campos (e indicou um estabelecimento). Por causa destas mortes houve muitas outras.

- Sempre sucede assim, respondeu J. de Borba, um crime chama outros.

- Assim foi, porque os mandantes para encobrirem o que tinham feito, mandaram Chico Bernardo matar Juca Lindongo e depois, por um peão do Chico mandaram matar este, fugindo o peão, que tinha o nome de Farrapo, para Canguçu, onde apareceu morto numa picada, sem se saber por quem.

- É isso, e eles ficaram com toda esta campanha, capaz de dar três estâncias. É assim mesmo, compadre, repare, e você quase não há de ver fortuna bem limpa.

- A demanda durou muitos anos e os animais ficaram alçados, por que não se trabalhava nem se fazia desfrute. A última vez que estive aqui foi quando se fizeram umas grandes corridas de baguais; há de fazer uns 9 anos; já estava tudo decidido. Lá, naquele fundo, contra o Jaguari, era a encerra. Veio gente de mais de 20 léguas e juntou-se mais de 100 pessoas, - uns como peões e outros de puros aficcionados. Fez-se uma manga de duas léguas de comprido e outra mais pequena, aproveitando um braço do arroio, até a encerra, lá onde lhe disse. Na entrada das mangas havia de ter quase uma légua e ia estreitando pouco a pouco até a encerra. O trabalho durou mais de mês e as volteadas eram de 8 em 8 dias e às vezes mais. No principio como os animais não estavam ainda ressabiados, as mangas eram de rama de mata-olho, regulando a altura dum homem e fincadas perto, perto. Depois a rama se tornou vasqueira e se fez de bandeirolas; só a encerra é que era de varejões e postes bem fincados e amarrados. Quando se tinham feito umas quatro volteadas, a animalada reconheceu as mangas e já foi debalde... foi preciso cerca e botar gente por fora, para eles não se atirarem. A primeira volteada que ajudei foi das melhores. Mui de madrugada saímos, com cinquenta homens, dos mais bem montados, alguns em pêlo, com dois ou três pares de bolas, e demos volta sobre as ponta de Quaró, - lá por aqueles altos, - e quando rompeu o dia, batemos na bagualada, tocando a rumo das mangas, primeiramente numa espécie de reponte por longe, e depois apertando, apertando, até que quando levantou o dia, toquemos de firme, e daí a pouco, a eguada levantou polvadeira e rumor que parecia uma tormenta. Por fora das mangas iam os flanqueadores e todo aquele tropel veio a tiros e a gritos, afunilando, até a encerra, que era feita à laia de caramujo, ou como porta de joão-barreiro, de modo que depois de entrar na disparada os animais agarravam a volta e nunca mais davam com a porteira.

- E agarravam muita eguada?

- Sim, dessa vez ficaram na encerra uns 600 a 800 animais, a varrer, com muitos que já estavam dos outros dias, porque o que entrava não saía mais.

- E que faziam deles?

- Ora, ai era courear e tirar cabelo, até o último, porque o animal bagual nunca se amansa; é sempre sestroso e matreiro, e põe os mansos a perder; é como cachorro chimarrão, que nunca é fiel: vem pra casa antes de abrir os olhos e afinal sempre se torna daninho e, quando menos, ovelheiro. O trabalho da coureação e cerdeio era para a peonada, que havia muita, tudo por conta do dono da estância, e a gauchada, depois da corrida, passava jogando e araganeando pelo comércio, porque aquilo parecia um acampamento; havia seis ou oito carretas de negócios e vários gringos com boliches, que vendiam a troco de graxa dos animais mortos, porque isto o estancieiro dava a quem queria, além da carne, sal e erva, que a ninguém faltava, porque ele fornecia tudo só pelo ajutório dos aficionados.

- Mas, não teria sido melhor se aproveitassem de outro modo, por exemplo, mudando de querência, costeando em outros campos...

- Ora, compadre, quem é que faz caso de sacos de palha só dessa vez me consta que mataram cerca de dois mil e não fizeram falta, porque ainda há de sobra.

Neste ponto de conversa viram os viajantes que era tempo de sestear e aproveitaram o primeiro estabelecimento que perto estava e pela clássica bandeirinha branca compreenderam que era venda.

Aí pararam cerca de duas horas, em que homens e animais se refizeram do caminho andado.

Pela uma hora da tarde pôs-se a comitiva em marcha, e naquele dia passaram o Taquarembó. Neste trecho da viagem pernoitaram no campo, visto ser mui desabitado, mas haviam-se munido do necessário para passar a noite numa antiga tapera, onde havia algumas árvores carcomidas, que forneceram lenha e um frondoso umbu.

Aí, a sombra desta árvore, secular, estabeleceram os quatro viajantes o seu bivouac, e preparados os avios de mate entrou o piá Nadico no exercício das funções de copeiro ambulante, servindo aos patrões estirados em suas camas de arreios, enquanto Chico Pedro acomodava os cavalos, em reponte, contra um pequeno banhado.



Uma tapara... um umbu... quem não conhece estas duas cousas tão comuns na nossa como na campanha do pais vizinho?...

Enquanto os nossos amigos viajantes repousam das fadigas da jornada, digamos algumas palavras a respeito dos escombros representando a saudade, e da árvore simbolizando o segredo, ali, no descampado, onde viceja, erguendo ao ar a sua possante cama, ostentando o seu rugoso tronco, que atesta uma vegetação rica de seiva.

Chamar grande o umbu é quase amesquinhá-lo, porque ele não é somente isso, é mais, é enorme. Sua existência conta-se por séculos, ou antes nem se conta, porque ela chega às vezes a ser imemorial.

Seu todo robustíssimo é a expressão eloqüente da natureza ubérrima das terras onde cresce e como que caracteriza toda uma região.

Campodron, o poeta inspirado, aos descrever a exuberância florestal do Novo Mundo, parece falar dele, quando, com alma entusiasta, descreve:

esm árboles gigantes
queparecen arrogantes
los ciclos desafiar,

e que na sua existência milenária:

... cuentan tantos afios
como Ia tierra de edad.

De fato, várias vezes centenário e resistindo com vantagem ao gênio destruidor do homem, o umbu parece desafiar os elementos. Cortai-o, queimai-lhe a raiz, e ele, como a fênix simbólica renascerá das cinzas; - só o raio tem poder de o aniquilar, quando o apanha em cheio.

Quem o plantou? que mão cavou-lhe a terra e assinalou-lhe o lugar onde deviam medrar suas raízes?

Não se sabe.

E ainda assim é ele um indício seguro da passagem do homem por aquele sitio; - marca uma era; - é como uma nota saudosa assinada por mão desconhecida na gama sentimental das cousas humanas.

Cresce de preferência em lugares que já foram habitados, - nalguma tapera, - e só uma alma vazia poderá ver um destes destroços de habitação sem experimentar lá dentro, nos seus mais íntimos recessos, um certo sentimento de tristeza, sentimento que se traduz por uma interrogação jogada ao ar, ao tempo, "quem moraria aqui?", pergunta insolúvel, porque quem poderia contar alguma cousa não fala, é ele, o umbu, a única testemunha viva, porém triste, solitária, muda.

Discreto, só ele sabe a história daquela habitação hoje em escombros: aquelas pedras esparsas, em desordem, são como um criptograma de que só ele tem a chave.

E naquela solidão, naquele ermo, os vestígios humanos são às vezes tão patentes, que ao viajante sentado nas bancadas que formam as salientes raizes da árvore "dá vontade de chamar os donos da casa e esperar por eles", como diz um notabilíssimo escritor', falando das ruinas da Pompéia; mas, como os habitantes da cidade morta, estes estão ausentes... muito longe... e nunca mais hão de voltar.

O umbu é a árvore do viajante: com sua bastíssima folhagem e abrindo no espaço os seus extensos galhos, como bom amigo que nos estende os braços, parece dizer: "Vem, chega-te a mim, aqui sob estas ramas guardo-te viração fagueira"; e o caminheiro, olhando em derredor os horizontes trêmulos em verberações de fogo, exausto de fadiga, abrasado e sedento, olha para ele com amor, impele a marcha e satisfeito acerca-se, como quem vê ali o conforto, um oásis, na planura sem dos fim dos nossos campos.

Entretanto esta árvore amiga, útil e protetora, sem nenhum efeito nocivo, tem contra si uma certa desconfiança maléfica, filha da crença errônea do vulgo ignorante. Tem-lhe má fé quando nasce perto das casas.

Caluniam-na: e ela como que justamente ofendida, prefere sítios isolados, onde, como um Briareu do deserto, altaneira e orgulhosa de sua pujança, parece dizer: Aqui ninguém me fará sombra.



Mais de meia-noite: o cruzeiro voltado para o poente, fizera já metade da sua rotação noturna, e as três-marias descambavam no horizonte. A lua em seu minguante era apenas como um traço em semicírculo, com as pontas viradas sobre o nascente, deixando entrever, ou antes, quase adivinhar a parte mergulhada na penumbra, de modo que toda a luz emanava da multidão de estrelas no firmamento límpido e sereno, secundadas em terra por um aluvião de vagalumes volitando e chispeando à maneira de faíscas escapadas de algum isqueiro imenso e perdendo-se nos ares.

O compadre Giloca, por um hábito inveterado nos homens do campo, era grande madrugador; e depois, com o espírito aguilhoado pela preocupação de acordar muito cedo, para pôr-se a caminho, ergueu-se, examinou a noite e chamou Chico Pedro.

Este, erguendo-se por sua vez, atiçou o fogo, chegou-lhe a chaleira e enquanto aquecia a água, fez uma certa inspeção no horizonte, farejando aos quatro ventos, como sorro velho, e depois encheu uns mates, que deu ao patrão.

Uma que outra lufada de vento sul fazia mover as folhas das árvores; um vago rumor, como que trazido de mui distante, espécie de trovoada longínqua, e uma certa coloração quase inapreciável no horizonte, podia-se muito bem tomar por sinais de mudança de tempo.

- Parece que hoje vais tirar a prova do teu poncho novo, cabo velho, disse o compadre Giloca a Chico Pedro.

Este não respondeu; deu alguns passos campo fora, aspirou com força a viração da noite e voltou-se para o patrão:

- Fogo no campo, aqui deste lado, para trás dessas coxilhas.

Depois tirou o chapéu e examinando-o mostrou ao companheiro Giloca, uns pequeninos detritos de capim queimado, trazidos pelo vento, indiferentes ou desconhecidos para muita gente, mas não para ele que os tinha visto mil vezes, e que na ocasião haviam-lhe caido sobre a cabeça.

- Isso às vezes, seu patrão, vem de longe, conforme o vento, mas estes me parece que são de perto, quando muito uma légua. Veja o rumor: depois o fogo tem cheiro, e eu senti.

- Eu sei, respondeu o compadre Giloca, mas isso depende da qualidade da lenha, e por aqui não há matos.

- Sim, mas temos aqui perto banhadais imensos, cheios de tiririca e santa-fé, e os campos estão empastados. Acho bom chamar o seu cadete e nos preparar para seguir; o fogo pode nos parar algum rodeio e nos encurralar; estou sentindo cheiro cada vez mais forte.

Esta conversação despertou João de Borba, o qual achando que Chico Pedro tinha razão, mandou vir os animais e seguiram.

Seriam duas horas da madrugada.

Quando tinham andado cerca de meia légua, ao chegar à primeira coxilha, um esplêndido espetáculo se lhes apresentou aos olhos: - o campo aceso, numa extensão a perder de vista, parecia um mar de fogo, na direção da estrada.

De repente, roncando com mais força, levantavam-se torvelinhos abrasados de onde irrompiam labaredas soltas, que iam perder-se entre o turbilhão de fumo formando espessa nuvem; e na distância em que caminhavam os nossos homens, vinham-lhe aos ouvidos milhares de estampidos, às vezes como um fogo graneado, outras como uma descarga cerrada de fuzilaria, fazendo lembrar uma grande batalha entre alguns milhares de guerreiros, em uma linha de mais de légua, estendida à esquerda dos viajantes.

- Noite de festa, disse J. de Borba, como a lua está fina, isto veio bem, para alumiar o caminho.

- Sim, disse o compadre Giloca, mas pode nos sair cara a festa, se não atropelamos o passo, para atravessar o banhado antes que o fogo nos desponte.

- E ele já está ardendo, acrescentou Chico Pedro, esse tiroteio é o tirirical que está arrebentando.

E apertaram a marcha, seguindo a trote chasqueiro.

Quando clareou o dia estavam perto do banhado que deviam atravessar, mas verificaram que o fogo alastrava pelo lado oposto e ameaçava tomar-lhes o passo, parecendo vir ao seu encontro.

- E agora, cabo velho? disse J. de Borba, esta carga do inimigo nós não esperávamos, o passo é aqui mesmo e não há outro.

- Não é nada, seu cadete, havemos de bandear agora no mais; vou ver se faço um reponte neste fogo, disse Chico Pedro.

- Mas, olha, que o fogo atropela, observou o compadre Giloca, e eu quero ver como te arranjas.

- Já verá, patrão; pra um guapo outro guapo, e aqui não se anda com veremos.

Dizendo isto, Chico Pedro boleou-se do cavalo, seguido de Nadico, e munidos ambos de um punhado de macega seca, puxou pelos avios de fogo e ateou um facho para cada um, com os quais foram incendiando o banhado de um e outro lado do estreito caminho, no qual havia um pouco de lama e alguma água.

João de Borba e o compadre Giloca, ensinados por Chico Pedro, iam apagando o fogo toda a vez que este, logo em começo, ameaçava crescer sobre eles, de modo que o incêndio, impelido somente para a frente e para os lados, desenvolvia-se nestas direções, alastrando-se com força.

De repente Nadico parou dando um grito de susto. Uma grande cobra, enrodilhada numa moita, ameaçava dar-lhe o bote, ao tempo em que ele ia chegar-lhe o seu improvisado archote.

Chico Pedro acudindo, verificou ser uma enorme jararaca, e deu volta com o seu ajudante.

- Esta aí mesmo fica; não precisa matar, disse ele; este bicho e a cascavel não têm medo de nada; morrem mordendo o fogo mas não disparam.

Em menos de meia hora o fogo assim ateado, encontrou o outro que vinha e com o qual se confundiu, continuando a sua devastação para os lados e deixando o passo livre, por onde meteu-se a comitiva, não sem perigo para os cavalos, que marchavam sobre um terreno ainda fumegante, escolhendo trilhos de gado, espécie de sulcos limpos de pasto, a que naqueles lugares dava-se o nome de estrada.

Caminharam ainda cerca de duas horas sobre cinzas, saudados em sua passagem, por legiões de chimangos e caracarás, que sucessivamente se deslocavam, soltando tristonhos guinchos e levando nas unhas alguma cobra meio sapecada, para logo pousarem sobre algum cupim, onde continuavam seu predileto repasto.

- Para estes, sim, é dia de festa, disse o piá Nadico. - Que ia te saindo cara também a ti, com aquele bichaço da macega, hein? disse Chico Pedro.

Nisto aproximavam-se de um passo. Era o pequeno arroio de Clara, que foi logo transposto.

Ainda no mesmo e no seguinte dia transpuseram Arroio Maio, Rolon, Arroyo del Medio, Charata e a comitiva prosseguia alegremente por um bonito e plano coxilhão, desenvolvido para a frente, a perder de vista.

Chico Pedro, como de costume, rompeu o silêncio:

- Coxilha do Peralta, que vai morrer entre Rio Negro e Salsipuedes, daqui a 8 léguas. Conheci esse tal Peralta, chamava-se Tomás Gaúna; era bem ruivo e vermelho, que parecia gringo, mas era gaúcho e costumava saquear sozinho os andantes e até moradores, nestes pagos.

- Mau era se ele andasse agora por aqui e nos encontrasse, disse J. de Borba.

- Mau para ele talvez, acrescentou o compadre Giloca, porque se arriscava a levar um tirão de atrás; nós não somos tão poucos para ele que anda só, e havíamos de lhe dar algum trabalho para afrouxar as guaiacas.

- Mas ele não era malvado, continuou Chico Pedro, nem matador; saquéava pedindo, e só ia à força quando lhe negavam. Diziam até que era mui estimado do vizindário, porque tirava dos ricos e dava pra os pobres.

- Ah!... mas assim não era verdadeiro ladrão, acudiu J. de Borba; piores há muitos por toda parte, que saqueiam politicamente, enganando e passam por gente boa; ele ao menos era franco, arriscava o pelego e não jogava encoberto.

- E a esses ninguém persegue, acrescentou o compadre Giloca.

- É, disse Chico Pedro, mas o pobre do Peralta foi perseguido e mandado matar por um estancieiro, a quem ele tinha pedido umas onças. Hoje mesmo havemos de passar por um cerrinho, onde há uma cruz de nhanduvá - aí está ele povoando.

O dia em que teve lugar esta conversa foi dos melhores da viagem, não só pela boa disposição do pessoal, como porque os próprios animais iam como que pressentindo uns ares da querência, a qual deviam atingir na manhã seguinte.

Deixando a direção geral que levavam, os viajantes penderam sobre a direita e passaram o arroio Salsipuedes, descendo depois pela margem direita do mesmo, não já por estrada, mas por atalhos e cortando campo, visto que aí todos eram vaqueanos.

Seriam dez horas do dia; a comitiva ia cruzando pela antiga estância da Sotéia, de propriedade brasileira, como o eram então as melhores fazendas do pais, e mais de 50 léguas fronteiras dentro.

Estava combinado que a sesteada se faria na invernada do capitão Claro, onde deviam mudar cavalos, com projetos de anoitecer cada qual nas respectivas residências porque dali João de Borba e Chico Pedro, em poucas horas estavam em casa, e o compadre Giloca cortava-se a rumo diferente, com o piá Nadico, no mesmo campo, onde era agregado.

A referida invernada era, como veremos, um simples modo de dizer, porque o capitão Claro não só não existia como nunca fora criador nem residente naquele lugar.

O fato é que ele ali morrera e estava enterrado, o que na gíria camponesa equivale a estar povoando um campo, como antes tinha dito Chico Pedro, falando do peralta Tomás Gaúna.

Mais de duas horas a nossa comitiva seguia estrada fora sem incidente notável, quando passando junto de um estabelecimento de boa aparência, o compadre Giloca fez sinal para esquerda, por um canhadão abaixo, e depois de umas dez ou doze quadras pararam numa pequena eminência, onde havia uma tapera.

Quatro grossas paredes de pedra ainda bem conservadas; num oitão uma pequena abertura que noutros tempos fora uma janela, e os vãos de duas portas, da frente e fundo, uma das quais estava tapada com pedras, era tudo quanto restava da antiga habitação.

Madeiramento nenhum.

Aquilo fora um antigo posto da estância da Sotéia, mas desde muito tempo servia de encosto para mudar cavalos, quando havia serviços por aqueles lados.

Os viajantes desencilharam e dispuseram-se a passar ali algum tempo, enquanto churrasqueavam.

Antes porém, o compadre Giloca deu uma volta em redor daquelas paredes em ruínas e depois, atendendo ao chamado de J. de Borba, reuniu-se ao grupo, onde já estava começado o mate.

Sentou-se sobre os arreios e um tanto pensativo, disse, como falando consigo mesmo:

- Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura que estou vendo meus antigos companheiros, e entretanto já vai para 15 anos... nunca hei de me esquecer...

- Eu sempre tenho ouvido falar dessa história, compadre, disse J. de Borba, mas ainda ninguém me contou isto direito; - uns dizem que não escapou ninguém, outros que ficaram prisioneiros alguns e nunca mais se soube deles e...

- Eu sei bem, porque fazia parte dessa gente; é verdade que não estava na ocasião, mas vi o estrago e falei depois com uns patrícios que me contaram tudo; o que sucedeu foi que os inimigos eram muitos e não deram changui e todos aí ficaram por essa sanga abaixo... era um tendal que dava lástima... uma moçada linda e -sacudida... um irmão meu, mais moço, também ai ficou...

Um suspiro de profunda saudade terminou estas frases, e o compadre Giloca, do lugar onde estava sentado, olhou largamente para o canhadão, sem dizer mais nada.

Se naquele momento alguém tivesse espreitado teria visto duas grossas lágrimas escaparem dos olhos severos daquele gaúcho rude mas sensível, e rolando, rolando, por sobre o seu pala, irem embeber-se no mesmo chão onde seus companheiros jaziam há tantos anos.

Chico Pedro veio quebrantar esta recordação penosa:

_ Está pronto o churrasco, disse ele, e ao mesmo tempo cravou o espeto em frente dos patrões.

O compadre Giloca enxugou os olhos com a manga da japona, e maquinalmente começou a refeição, e concluída ela, correu de novo o mate.

- Mas afinal de contas, compadre, voltando à vaca fria, como foi que se deu o fato do capitão Claro e dos seus companheiros? perguntou J. de Borba.

- Eu lhe conto; e mandando renovar o mate, o compadre Giloca começou assim a sua narração.

Aconteceu isto em fins de 1845 a princípio de 46, na entrada do verão.

Depois do ataque de Ponche-Verde e das pazes, muitos republicanos que não reconheceram o governo do império e não quiseram se sujeitar a ele, se passaram para a banda Oriental, uns para nunca mais voltarem, e estes eram os mais opiniáticos, outros para se meterem nalgum negócio de gados, porque todos eram campeiros.

Formavam-se às vezes comitivas de 30, 40, 50 homens que quase sempre vinham acompanhando oficiais e chefes com os quais tinham servido na revolução.

Numa desta vim eu com os meus companheiros. Éramos trinta e dois homens e vínhamos fazer tropa na estância da Sotéia, que alcançava até por aqui, naquele tempo. Nossos patrões eram os mesmos nossos comandantes, com quem tínhamos servido: o coronel Manduca Bica e capitão Claro da Silva.

O tempo não favorecia para o aparte e o estancieiro alegou que tinha chovido, que era preciso deixar enxugar o campo, esperar lua e inguarecer o gado um pouco mais, e nos mandou esperar neste posto, deixando ficar na estância um homem dos nossos, para nos dar qualquer aviso, quando fosse necessário.

Aqui fiquemos muitos dias, à espera.

A casa esta era muito boa, e estava desocupada na ocasião.

Sucedeu que nos três dias, de manhã, o capitão Claro me mandou à estância pra saber algumas notícias e com ordem de volver no dia seguinte ou no outro.

- Mau dia, compadre, mau dia, observou J. de Borba, devia ter escolhido outro.

- Mas era quarta-feira e não é dia avariento.

- Eu sei que não, mas era nesse que completava o dia treze... era o número que não presta; siga porém.

O compadre Giloca continuou:

Enfim, como ia dizendo, de tarde sairam três dos nossos a carnear e lançaram duas reses, ai pra trás dessas coxilhas, meio sobre o mato, porque o gado aqui era alçado e carneava-se no campo mesmo.

De sorte que dois ficaram lidando com uma rês e um sozinho com outra, na distância de seis a oito quadras.

Havia na ocasião movimento de revolução no lugar e grandes malocas de matreiros neste rincão, porque este fundo é muito grande entre estes dois arroios.

Por isto os dois foram ver o que se passava e acharam o companheiro atado e já despilchado, e pelos jeitos dos dois desconhecidos iam passar-lhe a gravata colorada, porque depois se soube que eles eram brancos, da gente de um tal Máximo Peres, que andava por ali.

Os nossos, a primeira cousa que fizeram foi cortar o maneador do campeiro, e já ficaram três contra dois. Estes foram logo agarrados, atados também, e conduzidos para o posto.

Aqui chegando, entraram os nossos companheiros em dúvida sobre o que se devia fazer daqueles pátrias, que era como nós chamávamos.

Uns eram de opinião que os matassem, outros que fossem remetidos presos a alguma autoridade, mas a opinião que venceu foi a de dar-se uma sova de laço em cada um e soltá-los.

Desta opinião foi o capitão Claro e contra ela o coronel Manduca Bica, o qual votou pela morte dos tais sujeitos.

- E devia ter razão o coronel, disse J. de Borba, era pagar-se com a mesma moeda, porque eles assim faziam com a nossa gente quando agarravam.

- Mas não foi assim, continuou o compadre Giloca. Os dois foram atados num tronco de moirão; o capitão mandou chegar quatro homens e o laço dobrado começou a trabalhar, levantando poeira do costilhar dos pátrias.

Quase uma hora durou a sumanta, e quando se desataram os homens mal podiam franquear e assim mesmo foram tirados campo fora a laçaços e os largaram. Com este vareio, disse o capitão Claro, não hão de querer carchear a mais ninguém. - Quem sabe, disse o coronel, esta gente há de pertencer a alguma maloca e pode voltar com companheiros para tirar vingança. Eu sou de parecer que devíamos ir pousar na estância; já é tarde, mas tinhamos tempo de chegar com a lua.

Esta opinião foi aceita por uns poucos que tinham acompanhado o coronel, quando se tratou da morte dos homens, mas, nisto levantou-se um chamado João Vivaldo, e como era guapetão reconhecido, disse que quem fosse homem e quisesse acompanhá-lo que se acusasse, porque ele estava disposto a não sair de onde estava e convidou ao capitão de quem era amigo. Este o acompanhou e com ele muitos companheiros. Os outros naturalmente, pra não passarem por maulas ficaram também.

Quando cerrou a noite o coronel meteu para dentro de casa o seu cavalo, que era um parelheiro, dizendo que era cavalo de trato, que o sereno podia fazer-lhe mal e outras coisas.

- Era soldado velho, disse J. de Borba, e devia ter ficado com a pulga na orelha, depois da sova dos pátrias. E os outros não coicearam no cabresto com isso de ele recolher o cavalo?

- Não sei, mas ele era mui respeitado e ninguém disse nada, segundo ele mesmo me contou depois.

À noite passaram sem novidade e todos amanheceram mui satisfeitos.

Mas, pouco depois de nascer o sol, avistaram quatro ou cinco ginetes que se aproximavam, aqui por estes lados, e logo em seguida outros, assim foram chegando, quatro, cinco, daqui, dois, três, dali, e cercaram por longe a casa.

Uma pacotilha como de dez a doze, onde vinha um oficial, chegaram em casa e apearam-se, cortando logo os maneadores e soltando os cavalos que estavam à soga.

A isto a nossa gente se entrincheirou na casa, porque logo conheceu pela fala e pelos modos, que aqueles deviam ser da mesma maloca dos dois que tinham apanhado na véspera.

O oficial, que parecia o chefe, chegou à porta e ordenou, com rompante, que saíssem para fora.

E de dentro, diversos lhe gritaram que entrasse, se era capaz.

Ele mostrou que era atrevido, porque em seguida desembainhou uma adaga e atropelou a porta, seguido de mais companheiros, porque então todos já tinham arrodeado a casa.

Mas, no tempo de ele pisar no portal o capitão meteu-lhe a pistola e o derrubou atravessado na porta.

Alguns quiseram entrar a um tempo, mas caíram logo três ou quatro dos mais valentes, e os outros redemoinharam e se abriram.

Cerrou aí o tiroteio, de dentro pra fora e de fora pra dentro.

Dois dos atacantes cerraram as esporas nos cavalos e chegando à beira da casa, quiseram prender-lhe fogo, mas ai mesmo ficaram, porque de dentro os rebentaram à bala.

A tudo isto já o sol ia alto e dos nossos não tinha ainda morrido ninguém, nem sido ferido, mas a munição ia escasseando e só se desfechava algum tiro mui seguro, porque a nossa gente não estava armada para um caso daqueles: muitos traziam pistolas, mas não eram todos, e esses mesmos com seis ou oito cartuchos cada um, e os mais eram de espada ou facão.

Os inimigos, vendo que estavam perdendo gente sem vantagem, fizeram cerco por longe, a vinte ou trinta varas, e começaram a arrodear os nossos a trote e a galope, atirando pedras enroladas em panos acesos contra o rancho, que era de capim.

Tanto atiraram até que acendeu labareda e a guincha começou a arder...

Neste ponto o compadre Giloca fez uma pequena pausa... suspirou,.. sacudiu a cabeça, e sorveu com frenesi três ou quatro goles seguidos de mate.

- Ah! amigo... ai é que foi a desgraça, continuou ele. A nossa gente saiu toda em peso, tocada pelo fogo, formada... não faltava ninguém...

Foi então que se viu que os inimigos eram três a quatro vezes mais do que nós, e vinham armados de lanças, tercerolas, pistolas e espadas. - Ao mato, e ninguém se assuste, gritou o capitão Claro. - Aqui está o vosso comandante velho, gritou o coronel Bica, e vamos mostrar que ainda não perdemos o costume de pelear.

Todos puxaram pelas armas que traziam: espadas, adagas, facões e boleadeiras. Armas de fogo já não tinham nenhuma munição.

Era quase meio-dia.

O mato ficava a umas quinze quadras... se pudessem chegar até lá estavam salvos... mas Deus não quis...

O coronel Bica, montando o cavalo, em pêlo, colocou-se à frente dos ompanheiros e romperam a marcha formados em pelotão, em direção ao mato, abandonando o seu infeliz reduto, onde o fogo os acossava e não era mais possível permanecer.

Logo porém, os inimigos deram uma carga e seis dos nossos caíram feridos, entre eles o capitão Claro, que teve uma pema quebrada.

Estes foram ultimados a lança, dando o capitão bastante trabalho, porque era destro e mesmo sentado defendia-se valorosamente com a espada.

Os outros avançavam, apressando a marcha a rumo do mato, mas sempre arrodeados e apertados pelos pátrias, já não tiveram mais alce, de modo que companheiro ferido que meio se atrasava, era logo morto e despilchado, porque nós andávamos bem de recursos e os inimigos andavam mui escassos, e aproveitaram a volteada para se rebuscarem.

Assim foi que pelo meio do caminho já não restavam mais que uns dez ou doze e o coronel Bica, vendo que tudo estava perdido, atropelou e rompeu a fila dos inimigos, que vinham como pau-a-pique. Logo de sopetão, derrubou dois ou três com a espada, e enquanto os outros meio titubearam na retintiva, ele cortou-se, mas lhe saíram perto, errando-lhe muitos tiros, até que perto do mato, como meia quadra, bolearam-lhe o cavalo. O animal correu um pouco boleado, mas logo arrastou os quartos e rodou. Ele saiu correndo com a espada na mão e ganhou o mato, onde os inimigos não o perseguiram mais.

Essa tarde passou escondido, porém quando anoiteceu saiu à beira do campo e costeou o mato, por dentro do espinilhal; atravessou banhados, bibocas e socavões, e quando foi de madrugada bateu na estância, que fica como duas léguas daqui, arroio a cima, lá onde passamos.

Aí contou tudo; ele não estava ferido, mas vinha mui extraviado e cansado, descalço e meio nu, porque a roupa tinha ficado aos nacos nas japecangas e taquarais, que há muito por aqui.

De manhã saímos com muitos vizinhos e viemos em procura dos nossos companheiros que já maliciávamos que estivessem mortos.

Nesse tempo por aqui só havia este posto e essa estrada passava daqui a mais de légua, no passo do Cardoso, lá em cima.

Muito antes de chegar, avistamos já o bando de caranchos que tendo descoberto os cadáveres estivados sanga abaixo, começavam estraçalhar-lhes as carnes e de longe nos serviam de guia.

Aí estavam 29 dos nossos companheiros, todos completamente nus, degolados e cobertos de feridas.

Todo dia levamos a enterrá-los. Depois soubemos por vizinhos, que os próprios inimigos declararam que nunca tinham visto homens tão valentes; que todos, até o último, brigaram até morrer.

Os três que ficamos, tomamos cada qual o nosso rumo, desguaritados e tristes por esse mundo.

O coronel Manduca Bica foi para Entre-Rios, onde viveu muitos anos...

O compadre Giloca caiou-se, e J. de Borba deu ordem de encilhar, seguindo logo depois a comitiva a sua interrompida viagem.

Ao montar a cavalo, o compadre Giloca olhou por derradeira vez para o canhadão, como que despedindo-se com a vista do lugar onde jaziam os seus antigos companheiros.

- Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura, que estou vendo meus companheiros, e entretanto já vai pra 15 anos... nunca hei de me esquecer...

Seguiram silenciosamente juntos ainda por meia hora e finalmente, numa bifurcação da estrada, apartaram-se cada qual para suas residências, que perto ficavam.