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Recordações do Escrivão Isaías Caminha/XIII

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"O homem que acaba de morrer, não era um homem vulgar. No domínio de sua difícil arte, era uma notabilidade respeitada. Para nós, era muito mais: era um amigo, um dedicado e leal amigo a quem muito devíamos e prezávamos. Todos os que mourejam nesta tenda de trabalho, certamente não hão de esquecê-lo e não há nenhum que não tenha recebido um favor, uma alegria, uma satisfação de suas mãos.

O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de jornalista é esgotante e ingrata; não sabe que soma de energia ela exige e como nos tira os melhores momentos de ócio e os melhores minutos de prazer. Vivemos por assim dizer para os outros; e quem vive para os outros, é claro que muito pouco pode viver para si.

Charles de Foustangel atravessava a nossa vida como um anjo protetor; dele, tirávamos alguns raros instantes de alegria no meio das agruras que nos cercam. Era de ver como ele sabia desenvolver um menu, como imaginava um ‘quitute’ inédito, um prato saboroso, que verve especial punha nos nomes com que os batizava e que raros gozos eles traziam aos nossos paladares fatigados por esses hotéis detestáveis que nos impingem solas duríssimas por bifes de grelha. Quantas ocasiões não fomos nós de mau humor para a mesa de jantar, enervados, sem vontade de trabalhar, com a encomenda do artigo, da reportagem, da crônica para o dia seguinte e sem coragem para fazê-los, e nos levantávamos, graças à brandura do seu tempero e à eurritmia dos seus molhos, satisfeitos, solertes, cheios de novas energias!

A sua morte é uma grande desgraça que nos acabrunha; e, desde que esta folha existe, é o primeiro que a maldita Parca leva. Muitos, é verdade, já se foram; mas não os levou a Parca. São felizes? São infelizes? Eles lá saberão... Este ficou no seu posto até à última hora, e ainda nas vésperas de morrer, quando a arruaça fazia cessar todo o movimento, deu num só dia quatro mesas fartas ao pessoal deste jornal.

Era um herói, um herói como o nosso tempo sabe compreender, isto é, um homem que põe tudo o que há em si de força, de coragem, de inteligência e de dedicação para um dado e único fim útil aos seus semelhantes.

Nada lhe faltava de grande. O caráter, a inteligência e o coração, nele, chegavam, à mesma altura e agiam de concerto. Falava três línguas: português, inglês e francês. Nascido em Arcis-sur-Aube, pátria de Danton, em 1864, e oriundo de uma família nobre, em breve emigrou para a Inglaterra, onde abraçou a profissão em que morreu. Daí depois de exercê-la com paixão, veio para o Brasil esse excelente representante da grande raça de Vatel. Era de um grande orgulho e conta-se que não entrou para o célebre Savoy de Londres porque não tinham permitido que assinasse o menu. Saudades."

Um pouco abaixo do retrato, seguia-se esse artigo de Losque e o jornal vinha tarjado em sinal de luto. Tratava-se do cozinheiro particular do Diretor, mas a estética do necrológio pedia que se fizesse um auxiliar do jornal. A morte desse serviçal obscuro da domesticidade do Diretor, veio trazer-lhe os maiores testemunhos da sua vitória.

Todos os jornais se referiram ao inditoso Charles de Foustangel e alguns abriram subscrições para socorrer a família do cozinheiro. Fora do convívio jornalístico, as manifestações de pesar não foram menores: o Centro dos Estudantes passou um telegrama de pêsames ao Presidente da República Francesa e ao cortejo do enterro concorreram mais de cinqüenta carros, levando perto de uma centena de pessoas, entre as quais altas patentes do exército e marinha, diretores de repartições, homens da bolsa, literatos aclamados, revolucionários temidos e um Capitão do Estado-Maior, representando o Presidente da República.

A viscondessa de Varennes não faltou. Passou por mim, no carro, a olhar um lado e outro com os seus grandes olhos de Juno, as olheiras violáceas, mordiscando os lábios muito pintados, abanando-se com o seu grande leque rococó e toda envolvida num pesado vestido de gorgorão.

Antes de embarcar, Floc foi até o trem e ela despediu-se dele, estendendo a mão pela portinhola do coupé, com metade do rosto a aparecer, sorrindo, muito graciosa, muito lenta, numa atitude de fidalga do século XVIII. E o negro cortejo desfilou pela rua como um triunfo sui generis para a vitória do Diretor. Na frente, ia o coche fúnebre, sarapintado de dourados, crivado de grinaldas com flores roxas e brancas de pano e as fitas votivas cheias de inscrições a esvoaçar lentamente como se fossem todos os adeuses que o morto quisesse dar naquele momento, às coisas e às pessoas. Seguiam-se-lhe as caleças, as vitórias e coupés, transportando a alta administração, civil e militar, as finanças, as letras e a revolução profissional, em tocante homenagem ao grande homem que era o cozinheiro do dr. Ricardo Loberant, diretor-proprietário d’O Globo.

O motim obrigara o Presidente a demitir a maioria dos Ministros, isto é, os Ministros atacados pelo O Globo; o prefeito e o chefe de polícia também saíram. A lei dos sapatos foi para as coleções legislativas e o empréstimo ficou prometido ao Rodrigues. O diário de Loberant ficou sendo quase a sétima Secretaria do Estado. As nomeações saíam de lá e as demissões também. Bastava um aceno seu para um chefe ser dispensado, e bastava qualquer dos seus empregados abrir a boca para obter os mais rendosos lugares. Leporace foi nomeado Diretor das antigüidades egípcias do Museu Nacional; e Rolim, o Rolim dos grandes pés, subdiretor da Repartição Cartográfica da República. Leiva fora modesto: pediu e obtivera o lugar de quarto escriturário do Tribunal de Contas, independente de concurso. Os empregos foram assim satisfazendo a natural voracidade dos auxiliares de Loberant. Todos eles viviam agora calmos, sorridentes, satisfeitos, convencidos de que tinham moralizado a República. Tudo ia bem e a administração fazia-se com a moralidade e a limpeza de uma pequena casa burguesa. Tinham-se cinqüenta mil-réis, comprava-se; não se tinha, diminuía-se a conta do armazém. O jornal passou do mais formal pessimismo ao otimismo mais idiota. O próprio Loberant perdera a "atrabílis", fumava com mais calma, sorria com afabilidade e dispunha de empenhos. Era um gosto vê-lo dando audiência aos necessitados de empregos. Apareciam diariamente aos vinte. A uns, atendia; a outros respondia com gravidade ministerial: venha amanhã.

Floc sofria alguma coisa; havia momentos em que se sentia patente a luta íntima que se travava nele. Ficava minutos inteiros calado, imóvel, a olhar perdidamente as coisas... Nada quisera, pois estava à espera de uma reorganização na diplomacia para obter o lugar de primeiro-Secretário. Era o seu sonho a diplomacia, o paraíso, a sua felicidade. A todo o momento falava-lhe nos hábitos, nos costumes, na maneira de redigir notas. Uma vez, contava ele aos colegas, na recepção do Ministro da Alemanha, a filha do Ministro da Guerra... Isto fora um Quito e enchia de pasmo ver de que maneira, nos lábios de Floc, a vida de Quito era elegante e soberba. E ele rematava a narração liricamente:

— Oh! A diplomacia! Vocês não imaginam o que é! É a mais deliciosa vida que há... Entra-se em toda a parte, tem-se os melhores lugares; é-se cercado, amimado... Uma delícia! Pode-se ser burro ou inteligente que é o mesmo! O Secretário da Inglaterra, Mr. Lodge, era uma besta, mas uma besta perfeita... Alto, vermelho que nem um tomate, desengonçado, incapaz de dar um passo de valsa ou marcar um cotillon; entretanto, parecia um rei nas salas... Mas era a Inglaterra, rica e opulenta, que estava atrás dele, e era também o prestígio da profissão que o aureolava...

E o Rolim ouvia tudo aquilo com os lábios entre abertos, a fisionomia parada e uma grande expressão de pasmo e assombro em toda ela. Quando Floc acabava, ele indagava:

— E mulheres, hein?

— Ora! Às dúzias... Uma vez, no baile do Ministro dos Estrangeiros, no palácio da Plaza de la Concepción...

E Rolim voltava a sonhar aquele paraíso diplomático, cheio de mesuras e cumprimentos, de etiquetas complicadas, mas cheios também de huris de luxo e tratamento.

Em começo, logo após a mutação do jornal, o lindo repórter pedira um lugar na diplomacia ou no corpo consular; mas o ministro convencera o diretor que era desmarcado o pedido. Prometera-lhe o Ministro um lugar de amanuense na Secretaria do Estado, depois, com o tempo, talvez fosse possível transferi-lo para o corpo consular. Rolim não quisera. Temia que a sua ignorância fosse posta a claro na redação dos ofícios. Para ele, só serviam os lugares de chefe, de diretor, em que só se tem que ter presença e assinar papéis. Foi então que vagou o cargo de subdiretor da Repartição Cartográfica e ele foi nomeado para superintender os respectivos trabalhos geodésicos, que de há muito estavam em começo.

Meneses, tímido sempre, não se animava a pedir coisa alguma. Continuava obscuramente, pacientemente, a estudar, a ler, e a contribuir para a glória e para a fortuna do dr. Loberant. Surdo, falando com dificuldade, muito feio, pouco conversava na redação; mas eram constantes as perguntas de uns e de outros sobre isso e sobre aquilo. Ele respondia com a sua voz fanhosa e retomava o serviço com resignação, automaticamente, e assim enchia os dias e os anos.

Aires d’Ávila e Oliveira não tinham querido emprego. Ao primeiro, a não ser de Presidente da República ou diretor do Banco do Brasil, não havia colocação que pudesse custear os seus gastos. O que ganhava no jornal era insuficiente para as passagens e os charutos; o resto ele arranjava. Devia a todo o mundo e os credores quase formavam cauda na redação. Era uma mania. A uns dizia: "Procure-me em casa"; a outros ralhava: "Aqui não lhe posso atender, estou escrevendo... Procure-me no escritório". Ao que o cobrador retrucava: "Mas Exª já me disse que só aqui." "É - respondia. - mas... Bem... É melhor você vir para a semana..."

E continuava a fumar serenamente enquanto o cobrador descia cabisbaixo, mastigando juras. Não havia expediente de que não lançasse mão para conseguir dinheiro. Todos lhe serviam, desde os honestos até aos semi-honestos. Tinha para as suas transações caixeiros e escreventes. Laje da Silva era um deles. Na transação dos quadros que ficou célebre, outros entraram e ganharam uma boa fatia. Não sei se se lembram ainda do caso. Eu recordo. Certo dia, um jornal de Pernambuco noticiou que se havia descoberto numa cidade do interior duas grandes telas que bem podiam ser de grandes mestres holandeses ou flamengos. E lá vinha a história do domínio batavo no norte, de Maurício de Nassau, etc. Em breve, os tais quadros eram expostos no Rio de Janeiro e as competências começaram a falar, gabando a beleza extraordinária do trabalho. Não havia dia em que este ou aquele jornal, esta ou aquela revista não se referisse com grandes encômios aos quadros. Os competentes deram-nos como de Rembrandt e J. Van Eyck. Na tela que se atribuía a este, havia mesmo uma certa beleza comunicativa, independente de qualquer exame ou cultura. Representava uma grande dama adorando um Menino Jesus e o fundo era uma paisagem de montanhas cobertas de neve, tratado com aquele desenho correto, firme e aquela sábia perspectiva aérea que tanto lhe gabam os críticos. Raul Gusmão escreveu um cintilante artigo; Veiga Filho desarrumou dicionários e escreveu um folhetim maciço. Os escritos choviam, mas o que causou surpresa foi também o assunto merecer da pena política de Aires d’Ávila um artigo entusiástico, confessando não entender de arte, mas louvando-se nas suas impressões e nas opiniões dos competentes. Terminava pedindo ao governo que adquirisse as telas. A sua idéia foi logo bem aceita, e os tambores jornalísticos começaram a rufar. O Ministro do Interior consultou a Escola de Belas-Artes, que achou as telas obras-primas e dignas de serem adquiridas. O Congresso votou o crédito e as telas foram compradas por perto de mil contos. Não passaram, porém, três meses que um jornal de Paris as não denunciasse como falsificadas e apontasse o falsificador. Um outro jornal do Rio foi além: denunciou o sindicato que tudo preparara e fizera a campanha para que o Estado adquirisse os quadros. O jornal, entre outras pessoas, apontou Aires d’Ávila como tendo entrado no negócio e recebido trinta contos no Banco Inglês, com o cheque no 5.327.

O esteta entusiástico deixou passar a tempestade e, serenada que ela foi, veio calmamente dizer, que, de fato, recebera o dinheiro, mas tão-somente como advogado, para fazer minutas de requerimentos, dar conselhos e outros pequenos serviços da profissão.

Quem ganhava tanto com minutas de requerimentos, não precisava sujeitar-se a um emprego.

Quase todos os seus artigos eram mais ou menos pagos, pelo diretor e pelos interessados: assim também procedia Veiga Filho. A sua literatura era a duas amarras. Escreveu, certa ocasião, um conto, de coluna e meia, passado em Teresópolis e gabando com insistência as comodidades de um hotel. O hoteleiro, no fim do mês, ao receber a conta dos anúncios, correu furioso ao escritório:

— Mas, já paguei!

— Como? fez admirado o gerente.

— Sim. Dei ao Sr. Veiga Filho duzentos mil-réis pelo conto.

— Mas quem lhe falou no conto, Senhor Lebrindo? Isso é lá entre os senhores... E quer saber de uma coisa? Nós já o pagamos também.

Ninguém se surpreendeu no jornal. Todos andavam preocupados com a obtenção de posições e mesmo que não andassem, aquilo era quase admitido. Oliveira andava indignado com os colegas pelo sôfrego assalto ao lugar, de que davam mostras.

— É isto, dizia ele; vocês não prezam a Imprensa, fazem dela achego, gancho; não a dignificam, não a honram. Querem empregos públicos, como se um reles burocrata valesse mais do que um jornalista...

— Mas não é isso, objetava Leiva. É mais seguro...

— Qual seguro! Então você pensa que não se é também demitido... É preciso engrossar, bajular, fazer manifestações... Eu não quero. Da Imprensa para a cova, e não acho profissão mais brilhante do que a nossa!

Ele nunca tinha engrossado e era um grande jornalista. Losque também não quis emprego; a sua pretensão era ser deputado. Os seus títulos consistiam em ser redator anônimo de um grande jornal. Nunca se fizera notar por coisa alguma, não tinha a menor influência, não se distinguia como portador de nenhuma idéia útil e fecunda; mas queria ser deputado, indicado por um presidente de Estado, como convinha a um dos auxiliares do dr. Ricardo Loberant, o moralizador da República.

No meio daquele fervilhar de ambições pequeninas, de intrigas, de hipocrisia, de ignorância e filáucia, todas as coisas majestosas, todas as grandes coisas que eu amara, vinham ficando diminuídas e desmoralizadas. Além do mecanismo jornalístico, que tão de perto eu via funcionar, a política, as letras, as artes, o saber - tudo o que tinha suposto até aí grande e elevado, ficava apoucado e achincalhado.

Via Floc fazer reputações literárias, e ele mesmo uma reputação; via Losque, de braço dado com o medíocre Ricardo Loberant, erguer à Câmara e ao Senado quem bem queria; via Aires d’Ávila, com uns períodos de fazer sono e uma erudição de vitrine, influir nas decisões do parlamento; e também via, dona Inês, a esposa do diretor, uma respeitável senhora, certamente, fazer-se juiz dos contos e das poesias dos concursos, com a sua rara competência de aluna laureada das irmãs de Caridade.

À vista disso, à vista dessa incompetência geral para julgar, da ligeireza e dos extraordinários resultados que obtinham com tão fracos meios, impondo os seus protegidos, os seus favoritos, fiquei tendo um imenso desprezo, um grande nojo, por tudo quanto tocava às letras, à política e à ciência, acreditando que todas as nossas admirações e respeitos não são mais que sugestões, embustes e ilusões, de meia dúzia de incompetentes que se apoiam e se impuseram à credulidade pública e à insondável burrice da natureza humana.

Mas, se o meu desprezo e o meu aborrecimento por tudo isso se não fez total, foi porque por vezes senti neles, naqueles redatores e repórteres que tinham o cofre das graças, grandes dúvidas, grandes desesperos e fortes vacilações de consciência sobre o seu próprio valor.

Houve um caso que, por trágico, me ficou eternamente gravado e foi como a demonstração de que ainda havia no fundo de alguns deles uma crença no Sério, no Verdadeiro, na Perfeição.

Voltava eu nessa tarde da casa de Veiga Filho, onde tinha ido levar umas provas. Voltava admirado de que os seus amigos, toda a vez que a ele se referiam, lembrassem a grande miséria em que vivia. Não o tinha visto assim. Morava numa casa apalaçada, numa rua do bairro das Laranjeiras, com altos e baixos, dois andares. Esperei as provas na sala de visitas, transformada em gabinete de trabalho, mobiliada com relativa opulência. Havia bronzes, divãs, mesas de laca e charão, vasos de porcelana, estantes com guarnições de bronze... Onde estava a miséria? O Artur sempre se referia a ela e o Bilac, no seu "Registro", lastimava-a como indicando o atraso da nossa civilização.

Cheguei às oito horas à redação. Floc, de casaca, dava o último retoque na tradução do folhetim. Ia ao Lírico. Estava cercado de dicionários e exalava perfumes. Em breve saiu e a redação a pouco e pouco se esvaziou. Pela meia-noite estava só o redator de plantão; o repórter de serviço tinha adoecido e os outros, à míngua de novidades, tinham desaparecido pelos cafés e cervejarias. Pouco depois da meia-noite, Floc voltou. Vinha alegre. A sua fisionomia irradiava satisfação e no seu olhar bailavam coisas fugidias e doces. Adelermo, que fazia o plantão, perguntou-lhe pelo desempenho.

— Maravilhoso! Nunca vi um conjunto tão harmonioso... Que vozes! O quartetto foi excelente. Não há uma cantora de destaque, na verdade, mas todas afinam bem e o conjunto é extraordinário!

— E a valsa?

— Oh! Magnífica! Que orquestra! Que musetta! Imagina que foi bisada quatro vezes!

— Então foi um delírio?

— Um delírio... Nunca vi tanto entusiasmo... A sala toda vibrava...

— E as galerias? Vaias, hein?

— Não. Portaram-se bem... Felizmente estamos deixando esse hábito botocudo.

— Muita gente?

— À cunha. Que mulheres, Adelermo! que mulheres! A Lobo tinha um decote maravilhoso. Todo o colo, muito alvo, alvo de jaspe, ficava fora e o pescoço nascia do busto, muito longo e muito branco... A Santos Carvalho lá estava também, com aqueles olhos de fome, olhos de insatisfação, de curiosidade, de vontade de provar todos os "frutos do jardim do mundo"... A Carneiro de Sousa... Eu não sei que mal me faz essa mulher com o seu desenho de rosto à Boticelli! Tem não sei que mistura de candura e perversidade que me dá gana de gritar-lhe: fala demônio! O que és: santa ou serpente? Pela sala, pairavam não sei quantas essências caras, não sei quantos perfumes de flores de quantos climas! Chegava-se a esquecer, diante daquelas mulheres, daquelas luzes, daquela música, daquela olência, que se estava dentro dum barracão infamíssimo!

Floc falou com calor, gesticulando, procurando completar a frase com um gesto e um olhar. Sentia-se bem que aquelas coisas deliciosas se tinham impregnado nos seus sentidos e o envolviam todo.

Os seus olhos, ao falar nas mulheres, tinham reflexos de ouro e fumava nervosamente durante a conversa. Adelermo mantivera-se calmo, sorrindo de quando em quando; às vezes, ouvindo uma frase ou outra, parecia perder-se no seu próprio pensamento, destacar-se de si e ir longe, longe...

— Dás a crônica hoje? perguntou Caxias.

— Naturalmente... O Raul dá também para o Diário... Eu não queria; pretendia fazer uma coisa mais cuidada, mas noblesse oblige... Não achas?

— Então, enquanto escreves, eu vou sair, como alguma coisa e volto já.

— Não há dúvida, disse Floc tirando a casaca. Vai que eu espero.

Adelermo Caxias colocou o colarinho, deu o nó na gravata, vestiu o paletó e saiu apressado pelo corredor afora. Ficamos na redação eu e Floc.

Na rua havia o mais perfeito silêncio. De onde em onde, os passos de um retardatário vinham quebrá-lo com desusado vigor.

Floc pusera-se à mesa em atitude de escrever. Levei-lhe papel e tinta, e o crítico, preparada vagarosamente a caneta, arrumara o papel, acendeu um charuto e ficou por instantes abismado numa grande cisma sem fim... Tinha medo de começar. Tinha visto tanta coisa bela, tanta carne moça e boa, que ele queria lançar o artigo com um remígio para o alto, para as distantes regiões da arte e da beleza, não perdendo uma só idéia fugidia, transmitindo as emoções sentidas naquelas deliciosas horas em que contemplou as mais belas e caras mulheres da cidade, ouvindo aquela música lânguida de Itália, cheia de sol, de histeria e de amor. Como que senti que ele tentava pôr na sua crônica um pouco dos sonhos sonhados à vista daqueles colos nus e tratados, daqueles olhares faiscantes, e também a sensação quase irregistrável da música, o roçagar das sedas, a olência dos perfumes a pairar naquele ambiente fechado, uma vida a tocar outra, bailando sem serem vistas nos ares polvilhados de luz, da luz azul da eletricidade. Eram todos os sentidos que tinham vivido: a sensação particular de um provocando sensações aos outros e todas elas sacolejando a sua personalidade com aquele hercúleo esforço para colhê-las todas. Pensava...

Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever, emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes, não gostou, rasgou... Recomeçou... A sua fisionomia estava transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os olhos estavam fixos e a boca cerrada nervosamente, custava a abrir-se para aspirar rapidamente o cigarro. Toda a sua fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou:

— Caminha! Vai buscar aí parati! Anda!

Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma, prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador, tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole. Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumava um cigarro sobre outro; não ia até ao fim, atirava-o em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela, debruçou-se e o paginador voltou:

— "Seu" Cunha!

— Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?...

Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a resistir. Depois de vinte minutos, o paginador voltou:

— Espere um pouco, disse o crítico.

O operário saiu. Floc esteve um instante com a cabeça entre as mãos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito duro para um compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o lado estava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e às ambições.

Adelermo, antes que tomássemos qualquer providência, entrou. Correu ao telefone para avisar o diretor. O doutor Loberant não estava; tinha saído às dez horas para o jornal. A polícia fora avisada e era preciso que ele o fosse também. Onde estaria? Veio o Rolim. Adelermo e ele cochicharam. O redator de plantão chamou-me.

— Caminha! Tu vás aí a um lugar e do que vires não dirás nunca nada a ninguém. Juras?

— Juro.

— Vais à casa da Valentina, procurar o dr. Loberant... É preciso discrição, hein? O Rolim não pode ir, tem que ficar aqui, para o que der e vier... Vai! Mas não fales nada, nunca!

— Entra, custe o que custar, recomendou-me Adelermo ao sair, e deu-me dinheiro.

Em breve estava diante daquele grande imóvel, com os largos portais de granitos, ladeado de cariátides, parecendo em tudo uma casa burguesa. Bati, veio o porteiro. Disse-lhe a que vinha, dei-lhe dinheiro e entrei. Subi, acompanhado por ele.

Penetrei com tristeza naquela casa famosa entre os rapazes da cidade, pelas suas orgias e pelas mulheres que a habitavam. Ali moravam as cantoras de cafés-concertos, húngaras, espanholas, francesas, inglesas, turcas, cubanas; ali moravam também as Laís da cidade, as devoradoras de patrimônios e acarinhados sonhos. Subi a grande escada do palácio e tomei por um corredor. Dos quartos, vinha um ruído abafado do ranger de camas, um cicio de beijos, mas o Pecado pairava nela com o seu silêncio constrangido no recato que simulava ter.

Ao fundo do corredor, quase ao tomar uma pequena escada para o segundo andar, dei com uma velha prostituta em camisa, polaca pelo sotaque, de seios moles e quase sem pintura; àquela hora, a sua velhice surgia hedionda, e escaveirada, com um hálito de túmulo. Assustou-se. O porteiro sossegou-a. Subimos eu e ela. Quando nos sentiu só, ela lixou-me com a sua pele, encostando-se muito a mim, passando o seu braço sobre os meus ombros. Já no corredor, sob a luz de um bico de gás meio aberto, considerou bem a minha fisionomia, a minha mocidade, a falta de mulher que ela farejou logo; pegou-me carinhosamente o rosto com as duas mãos e quis beijar-me...

Larguei-a com medo da sua velhice e corri à sala onde estava o dr. Loberant. Estava semi-aberta. Aproximei-me da porta. A um canto havia um piano: ao centro uma mesa cheia de garrafas e copos. Pelos divãs fumando, três pares; as mulheres em camisa e os homens também, mas mais descompostos. Em torno da mesa, uma mulher cavalgava uma espécie de tapir ou de anta. Era Aires d’Ávila, cujas peles do vasto ventre caíam como úbere de vaca. A mulher montava-o com o garbo de uma écuyère e ele rodava em torno da mesa como se fosse um animal de circo. Os ditos choviam, mas não os pude ouvir. Uma das mulheres deu comigo e perguntou, sem espanto, com sotaque estrangeiro:

— Que é que você quer?

Loberant voltou-se e conheceu-me logo:

— Que há, Isaías?

— "Seu" Floc matou-se na redação.

Aires d’Ávila voltou à humanidade e, em plena orgia, por entre aqueles homens e aquelas mulheres despreocupadas, passou a augusta sombra da Morte, misteriosa e severa...