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Recordações do Escrivão Isaías Caminha/XIV

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No gabinete do Ministro estavam poucas pessoas. Em frente, em uma mesa nova, o Secretário, um capitão-de-fragata, pálido e alto, com um lindo cavaignac, Napoleão III, que lhe dava um ar de veterano de 70, apesar dos seus cinqüenta anos. Pela janela, descortinava-se uma nesga da baía e da cidade. Era a ilha Fiscal com o seu edifício alicerçado nas ondas; a Boa Viagem cismática e lá, num fundo do infinito, do ilimitado, as muralhas altas de Santa Cruz. Um grande navio entrava lentamente... Embaixo, havia o brouhaha das carroças; juras de cocheiros, estalidos de chicote e o rolar pesado dos caminhões. A Alfândega ficava perto.

Além do Secretário, no gabinete, sentado ao lado direito do Ministro, estava também o Vice-Almirante inspetor das construções navais; do lado esquerdo, eu.

O Ministro vestia dólmã branco e a sua grande cabeça autoritária e cheia de uns belos cabelos brancos ia de mim para o Inspetor, falando sempre e explicando a questão dos consertos:

— Com estas providências, o governo fez uma economia de perto de seiscentos contos. Você sabe: a indústria oficial é muito cara. O "República" (está aqui o orçamento) tinha os consertos avaliados em quatrocentos e oitenta contos - não era, Almirante?

— Quatrocentos e oitenta e sete, respondeu o inspetor.

— Quatrocentos e oitenta e sete contos, repetiu o Ministro. Sabe você por quanto ficou nas oficinas das "Forjas"?

— ?

— Trezentos e noventa e sete. Só aí houve uma economia de noventa contos. Agora imagine com o "Sete de Setembro", a "Parnaíba", três torpedeiros, rebocadores... Enfim: seiscentos contos de economia.

— Mas V. Exª acha desnecessário o Arsenal da Marinha?

— Não, absolutamente não. Primeiro porque é preciso que haja um campo prático à mão do Estado para os nossos engenheiros navais e segundo que ele pode prestar serviços, desde que tenha a emulação do trabalho particular.

— Se V. Exª, disse eu, indo ao encontro dos seus desejos, se V. Exª me quisesse fornecer algumas notas, eu poderia dar uma notícia bem interessante...

E S. Exª, com sua voz quase providencial, auxiliado pela memória do Vice-Almirante-Inspetor, começou a ditar-me, para que todo o Brasil tivesse notícia da sua capacidade de administrador, um dos resultados mais fecundos da sua fecunda administração.

Ofereceu-me um havano e, logo que o Inspetor saiu, começamos a conversar sobre os encantos da nova chanteuse que se estreara no Moulin-Rouge.

Assim fazia a minha reportagem no Ministério da Marinha. Desde os Ministros até aos contínuos, todos me enchiam de mimos e de festas. Era raro o oficial que não me pedia uma notícia, um elogio, um gabo ao relatório da sua última comissão. Os chefes viviam abraçados comigo e forneciam-me notas para o meu noticiário. Eu assombrava-me que a morgue militar de toda aquela gente fosse desfeita assim naturalmente em presença de um repórter. É verdade que já vira muitos, de mar e terra, subirem à redação e insinuarem alusões elogiosas; mas supunha exceções e agora verificava ser geral a inclinação.

Quando se apresentavam, reclamavam a omissão da notícia...

Nos meus primeiros meses de reportagem foi quando amei mais ativamente a vida. Não porque me visse adulado pelos Almirantes e Capitães de Mar e Guerra, mas porque senti bem a variedade onímoda da existência, a fraqueza dos grandes, a instabilidade das coisas e o seu fácil deslizar para os extremos mais opostos. Dois meses antes era simples contínuo, limpava mesas, ia a recados de todos; agora, poderosas autoridades queriam as minhas relações e a minha boa vontade.

E toda essa modificação tão imprevista no meu viver, viera-me do suicídio do Floc. Tendo surpreendido na casa de Valentina, em plena orgia, o terrível diretor, vexei-o. Nos primeiros dias, ele nada me falou; mas já me olhava mais, considerava-me, preocupava-o no seu pensamento. Breve me fez perguntas de boa amizade: donde era eu, que idade tinha, se era casado, etc. As respostas eram dadas conforme as perguntas; bem cedo, porém, graças à bondade com que me tratava, as ampliei até à confidência.

Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera num ambiente familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraordinário. O que me parecia extraordinário nas minhas aventuras, ele achava natural; mas ter eu mãe que me ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. Só atinei com esse íntimo pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas chácaras. Os homens são uns malandros, planistas, parlapatões quando aprendeu alguma coisa, fósforos dos politicões; as mulheres (a noção aí é mais simples) são naturalmente fêmeas.

A indolência mental leva-os a isso e assim também pensava o dr. Loberant. Não tive grande trabalho em o fazer modificar o juízo na parte que me tocava. Certo dia o gerente, espantado e cobiçoso, notificou-me que eu ia servir na expedição e o meu ordenado estava aumentado de cinqüenta mil-réis.

Duas semanas depois, ao encontrar-me na escada, Loberant disse-me:

— Caminha, você é capaz de tomar notas numa repartição e redigi-las?

Não esperava essa proposta. Fiquei deslumbrado: ser repórter como o Oliveira!... Oh! Era assombroso!... Respondi, porém, modestamente:

— Pode ser, dr. Experimente; se for bem, o senhor me dirá...

— Pois então vais fazer Marinha e Alfândega.

Nos primeiros dias lutei com alguma dificuldade. Os colegas receberam-me mal. Sonegavam-me as notas, procuravam desmoralizar-me, ridicularizar-me diante dos empregados. Há neles em geral essa hostilidade pelos novos. Sentem que o ofício é fácil e se eles ainda por cima o facilitarem, perderão em breve o prestígio. Levei alguns furos, mas dei outros, graças às relações que travei com um sargento protocolista do Estado-Maior. Leporace quis destruir-me, mas Loberant não o permitiu.

No quinto dia em que eu fazia reportagem, um outro repórter arrebatou-me das mãos umas notas que eu copiava. Incontinenti, fui ao diretor e o velho funcionário obrigou-o a restituir-mas. Quando o fez, gritou na portaria:

— Tome, "seu" moleque! Você saiu da cozinha do Loberant para fazer reportagem...

Contive-me, com espanto dos circunstantes, mas nunca imaginei que um insulto pudesse ir tão longe na nossa natureza. Senti-me outro, muito mais forte, transtornado e desejoso de matar. Contive-me, porém, e nada disse ao colega que, se não saíra de uma cozinha, era quase analfabeto e mediante uma propina, para protegê-lo contra a ação legal, figurava como sendo presidente de um clube de batota. Tirei as minhas notas, deixei-as no jornal e voltei. Encontrei o tal repórter na rua Primeiro de Março e antes que ele fizesse o menor movimento atirei-me sobre o seu corpanzil, deitei-o por terra e dei-lhe com quanta força tinha.

Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfação, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, é um final de peça e que só nos valemos como uma delas. Loberant veio a saber e gostou.

Até ali, tinha eu sido a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem que não podia, não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus dias em fora.

Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma coisa que ninguém ignora. Felizmente não foi tarde...

A sua natureza desgostosa e defeituosa simpatizara com a minha fraqueza e a humildade dos meus começos. À força de falar em injustiça por especulação jornalística, adquirira um pouco do sentimento de reparação que extremava em altos brados. Tendo em mim uma, não quis que ela continuasse a verificar-se; protegeu-me, estimou-me e fez-me seu valido.

Se não fosse ele, logo no primeiro dia de reportagem eu teria sido destituído. Na própria redação quase todos me eram hostis. Oliveira, e Meneses, que só saía do seu mutismo para dizer um sarcasmo, fizeram exceção e apoiaram-me.

Contei ao Loberant a briga; contei-a emocionado e apaixonado. Ouviu calado e perguntou-me no fim:

— Mas deste-lhe mesmo?

— Dei-lhe quanto pude.

— Bem, fez ele depois de uma pausa, vai fazer a tua seção e quando a acabares vem falar comigo.

Não me demorei muito. Passavam alguns minutos das sete, quando a entreguei a Leporace e fui ter com Loberant.

— Acabaste? Vamos jantar, disse ele.

Desse dia em diante as dificuldades desapareceram. A redação toda me encheu de consideração e a minha intimidade com o dr. Loberant aumentou. Eu mesmo até então reservado e tímido, comecei a animar-me, a ensaiar um dito, a externar uma opinião. Um belo dia ousei até escrever; fiz um artigo. Comecei a ter inimigos. Leporace, em quem sempre encontrei a mais completa má vontade, redobrou; Caxias criticou-me o andar e meteu-me nas intrigas da redação. O artigo, porém, saiu com as emendas de Leporace e as escoras gramaticais do Lobo. Não havia nele nenhum defeito de monta, mas a autoridade de Leporace ficaria abalada se não tivesse que emendar um artigo de novato.

Com o andar dos tempos aprendi os processos, fiz-me exímio e quase tão fecundo como o Deodoro Ramalho.

Aprendi com o Losque a servir-me dos outros jornais, a receber inspirações deles, a calcar os meus artigos nos seus. Como Losque, norteei-me para as revistas obscuras, dessas que ninguém lê nem os jornais dão notícia. Havia nelas uma pequena idéia, eu desenvolvia-a, enxertava umas considerações quaisquer. Não foi Losque quem me ensinou, foi a minha sagacidade que descobriu e tirou, dela os ensinamentos. Quando deixava na mesa a sua biblioteca ambulante, eu corria um e outro jornal e cotejava os seus artigos, as suas pilhérias, com o que escrevia no jornal. Ele não lia senão jornais. Aprendia finanças, economia política, estatística nos periódicos de França, de Portugal e da Argentina; neles, colhia citações de autores célebres, poetas, filósofos e sociólogos.

Leporace ainda lia alguma coisa, e lembrava-se de alguns livros que lera em estudante. Tendo morrido um rei qualquer, escreveu um artigo - "Dor da rainha viúva" - em que demarcava uma passagem de Daudet. Os senhores lembram-se daquela passagem dos Reis no Exílio em que Colette de Rosen, cavalgando ao lado da rainha Frederica, atira-lhe indiretas referentes ao seu silêncio em face das infidelidades do marido? Lembram-se que a rainha, sentindo o golpe, responde à dama de honor que as rainhas não podem ser desgraçadas ou felizes como qualquer outra mulher. Precisam ocultar todas as suas dores e alegrias em virtude da majestade de sua grandeza. Pois bem. Leporace não teve dúvidas; agarrou a frase do diálogo e desenvolveu-a no seu estilo barroco, por quase uma coluna, do seguinte modo:

"Ela (a rainha) é bem a representação viva da mágoa, não a mágoa que nós outros sentimos, mas a mágoa injusta, a mágoa única, como que preparada pela adversidade também injusta e cega para determinadas almas que as circunstâncias do nascimento, e somente elas, fazem distintas das outras almas para não terem o direito de chorar."

"As lágrimas da realeza são assim mais dolorosas e mais acabrunhadoras, porque os olhos reais as devem ocultar à luz em que todas as mágoas resplandecem com a grandeza do sofrimento, em virtude de sua própria majestade real."

E por aí foi disfarçando a frase breve e rápida do romancista francês.

No jornal, compreende-se o escrever de modo diverso do que se entende literariamente. Não é um pensamento, uma emoção, um sentimento que se comunica como escritor; e não é o pensamento, a emoção e o sentimento que ditam a extensão do que se escreve. No jornal, a extensão é tudo e avalia-se a importância do escrito pelo tamanho; a questão não é comunicar pensamentos, é convencer o público com repetições inúteis e impressioná-lo com o desenvolvimento do artigo. Para se dar extensão aos artigos lança-se mão de todos os recursos. Acumulam-se incidentes e aprestos, organizam-se considerações, empregam-se velhas pilhérias. Bruyére não teria talento se fosse redator de um jornal e no O Globo seria menos considerado que o Lemos, cuja consideração aumentou com o famoso crime de Santa Cruz.

Agora escrevia com independência e autonomia as suas notícias. Punha nelas toda a sua ignorância com muita liberdade, fazendo até alusões históricas. Nos arredores da cidade, certa ocasião, um marido cioso, tendo encontrado a mulher em flagrante adultério, amarrou o seu cúmplice à cauda de um cavalo, que o arrastou pela estrada.

Lemos, que certamente não lera o Tácito nem o Berquó, interpretou tal coisa como sendo suplício semelhante ao imposto à sua mãe por Nero e escreveu, aludindo ao castigo:

— Bem. Agora eu sou o Nero. Tu não és minha mãe, mas vais para a cauda do cavalo.

Lemos era das pessoas que tinham ficado no jornal. O tempo tinha trazido à redação inevitáveis modificações. Lobo enlouquecera e estava recolhido ao hospício. A sua mania era não falar nem ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira, pedindo tudo por acenos. A alguém que lhe perguntou por que assim procedia, explicou:

— Isto não é língua... Não a posso ouvir... Tudo errado... Que vai ser disto!

— E por que não fala?

— Os erros são tantos, e estão em tantas bocas, que temo que eles me tenham invadido e eu fale esse calão indecente...

E vivia calado pelos corredores, lendo a Ensynança de Bem Cavalgar de El-Rei Dom Duarte.

Michaelowsky, desgostoso com a cor governista do jornal, não mais soube escrever. Um dia mandaram-lhe fazer um elogio a um ato ministerial, e quase lhe saiu uma descompostura. Não sabendo elogiar, procurou a quem atacar sem comprometer o jornal. Descobriu a República Argentina; mas, em breve, o assunto se esgotou e ele ficou sem inimigos. Arranjou alguns contos com um ministro e partiu para Caracas em busca de novas aventuras e oposições. O jovem Deodoro Ramalho formara-se e deixou a literatura sem pesar, sem saudade, assim como o coxo que abandona uma muleta velha. Fizera literatura como anúncio para a clínica futura e abandonara-a quando viu que ela viria comprometer a gravidade do mister e a respeitabilidade dos lugares. Leporace abraçara com ardor o lugar das Antiguidades Egípcias; lia agora o Maspero. Deixou o jornal e Losque tomou-lhe o lugar. Vieram outros, mas esses conheci mal. Imutáveis eram o Oliveira e o Meneses, sempre tímidos, escrevendo os artigos difíceis, mas sem melhoras de ordenado. Entretanto Aires d’Ávila ganhava dois contos para escrever algumas banalidades fatigantes.

Sempre que via o resignado Oliveira, muito frio, murcho, a escrever as melhores coisas do jornal, punha-me a pensar, porque o equilíbrio do jornal pedia que aquele rapaz ficasse embaixo e no alto pairassem Loberant, Leporace e Aires d’Ávila. A sua timidez e a sua modéstia não lhe davam o charlatanismo indispensável para levá-lo para diante. Ele sabia o que ignorava e não se atrevia a julgar tudo. Michaelowsky não se cansava de lhe dizer:

— És uma besta! Então te sujeitas a ser burro de carga! Desta maneira não impões!

E ele, depois de ouvi-lo com a sua atenção de surdo, ficava a olhar o russo, a rolar os olhos nas órbitas, como que a perguntar quais eram as maneiras de nos impormos. Vira sem inveja nem assombro a minha brusca ascensão e o crescimento acelerado da minha amizade com o diretor.

Eu e ele éramos agora dois amigos íntimos, companheiros de pândegas e noitadas. Sentindo-me realmente educado e sofrivelmente instruído, o doutor Loberant como que sentia remorsos de não ter adivinhado isso e permitido que eu ficasse um ano e tanto como contínuo de sua redação. Enchia-me de atenções e dinheiro. Levava-me a toda a parte, gabando-me o talento e o caráter. Quando lhe falei em abandonar o Rio e lhe pedi que se interessasse para obter o lugar que ocupo, ficou assombrado:

— Mas por que, Isaías? Quais são teus desgostos? O que te falta?

Eu nada quis dizer. Percebia porque ele não compreendia as ânsias do meu temperamento nem as angústias da minha inteligência.

— Quero casar-me, ter sossego para criar e educar os filhos.

— Mas não precisas, para isso, sair do Rio... Com esta idade, ires para o mato é tolice!

E tive muito que insistir para resolvê-lo a intervir junto ao ministro; e no dia da partida, depois de ter ele próprio prestado a fiança necessária, senti que ficava com saudades minhas. Vivemos dois ou três anos juntos, bebendo e pandegando. Ele apanhava-me as considerações e repeti-as por sua conta: eu dava expansão ao meu bom humor sombrio, à minha tristeza interna, aos meus desejos vagos que não tomavam vulto.

Eu queria-me um homem do mundo, sabendo jogar, vestir-se, beber, falar às mulheres: mas as sombras e as nuvens começavam a invadir-me a alma, apesar daquele vida brilhante. Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo; sentia também que não me parecia com nenhum outro, que não era capaz de me soldar a nenhum e que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição, importância e nome. Continuava, porém, a ir com ele aos teatros, às pândegas. Saímos com raparigas, jantávamos nos arrabaldes pitorescos. Eu ia contente mas o meu contentamento durava pouco. Não sei o que sentia de ignóbil em mim mesmo e naquilo tudo, que no fim estava sombrio, calado e cheio de remorsos. Despertava-me o mau emprego dos meus dias, a minha passividade, o abandona das grandes idéias que alimentara. Não; eu não tinha sabido arrancar da minha natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não soubera revelar-me com força, com vontade e grandeza... Sentia bem a desproporção entre o meu destino e os meus primeiros desejos; mas ia.

Nos dias em que tencionava levar-me a passeio, perguntava-me Loberant:

— Isaías estás com dinheiro?

— Algum.

E sem que ninguém visse, passava-me uma nota de cinqüenta ou cem mil-réis. Nunca vi dar dinheiro como aquele homem. Era a mim, e a muitos. É verdade que o jornal dava mais de cem contos líquidos por ano e era só dele.

Neste dia, como de hábito, perguntou-me se tinha dinheiro e deu-me depois duzentos mil-réis.

— Nós vamos à Tijuca, disse ele. Jantaremos lá com a Espranza, conheces?

— Não.

— Está há pouco tempo aqui... É um pancadão!

Fomos buscá-la a casa. Morava numa rua transversal do Catete, e chegamos lá um pouco depois das três horas, quando a italiana ainda se vestia. Eu ainda pude ver bem as suas largas espáduas de estátua, muito alvas e rosadas e o belo pescoço, torneado, modelado, encaixando no corpo em curva suave e vaporosa que vinha morrer nos ombros sem transição alguma. A italiana tinha uma forte marca de antigo, já no rigor da fisionomia, já no matiz da pele; e se não tinha também a vulgaridade exaustiva das estátuas clássicas, devia-o aos seus olhos negros, onde havia muito da nossa inquietude moderna, um grande languido profissional.

Loberant disse-lhe a nossa intenção de ir à Tijuca:

— Oh! não, fez a mulher. Já fui. Não gosto... Outro lugar, não achas?

— Então onde queres ir? Ao Leme? Ao Silvestre? perguntou Loberant.

— Pelo mar, no fundo... Lá onde estão aquelas montanhas, aquelas ilhas... Quando cheguei tive vontade de ir logo, logo lá.

Gostei do capricho da mulher, mas não me animara a aprová-lo. Loberant pareceu gostar também e perguntou:

— Onde há de ser? A Paquetá?

— Pode ser... fiz eu.

— Não, não é bom. Há muita gente conhecida... Vamos à ilha do Governador.

Espranza estava já completamente vestida e não esqueceu os pandeloques que chocalhavam na cintura. A barca viajava semivazia e os viajantes habituais viram com espanto a nossa entrada. A elegância extra-rural de Espranza fez escândalo. Ela parecia não notar, mexia-se por toda a barca naturalmente, dando pequenos gritos de admiração à paisagem que se desenrolava. Não cessava de olhar, de aspirar com força toda a exalação de poesia e de grandeza que a baía dá. O Sol, para o poente, ainda domava tudo e as águas estavam azuis. Um passageiro informou-nos da demora da barca nos pontos. Iria primeiro ao Zumbi, depois a outras localidades da ilha e voltaria ao primeiro ponto no espaço de uma hora.

Saltamos. O arraial tinha um ar risonho e estendia-se pela praia alva, cuja curva marcava obedientemente. As canoas dormiam nas praias e as redes secavam ao sol, estendidas sobre varas. A italiana propôs um passeio. Havia tempo, podíamos fazê-lo. Começamos a andar. Das casas espiavam-nos. Já ficavam para trás, tomamos um atalho, depois um outro e quando voltamos ao caminho largo, tínhamos tomado outro. Não percebemos logo, só viemos a dar com um rumo depois de ter andado um quarto de hora sem encontrar a praia. Espranza percebeu particularmente a situação. Quando teve notícia, soltou uma gargalhada:

— Que belo!

Andávamos por um caminho deserto no momento, mas que parecia trilhado. Dois regos paralelos de carros marcavam os seus limites com a floresta. A uma hora do Rio de Janeiro, estávamos no deserto. Andamos e quase não falávamos. A italiana era a única que parecia contente.

Às vezes era um areal; outras, era um capoeirão quase floresta. E tudo triste, desolado e abatido. Espranza observou:

— Quando não há muita árvore e muita água a terra de vocês é feia! É preciso que haja muita, muita, para que ela seja bonita!

Houve um momento que nos supusemos sem saída. As árvores cruzavam-se sobre a estrada; os cipós atravessavam de um lado e de outro, os arranha-gatos perseguiam as nossas vestes, agarravam-se a elas tenazmente como se nos quisessem despir. Um sabiá pôs-se a cantar e toda a dor daquela terra calcinada, exausta e pobre, vibrou nos ares. Chegamos a uma campina. Havia bandos de colins trinando nas espigas de capim e os anus enodoavam os leques das ubás.

Depois da primeira marcha, pusemo-nos a conversar. O doutor estava apreensivo; eu resignado e Espranza contente, recordando talvez a sua infância de campônia.

— Onde iremos dar? indagava o diretor.

— Ao mar naturalmente. Isto não é uma ilha? É; portanto não há meio de se ir ter a S. Paulo.

Sentamo-nos cansados. A débil organização de Loberant resistia fracamente à fadiga.

A italiana perguntava-me o nome das plantas. Era o numpólo cheio de apófises escamosas; era a embaúba como um adorno egípcio; a tinguaciba, a pindaíba, as taquaras, os cipós... Depois interessou-se pelas pequenas plantas, pelo gravatá, pelo melão de S. Caetano, pelo carrapicho e guaxima...

Era eu quem informava; o diretor, no meio daquelas vidas todas, não lhes sabia o nome, nem serventia, nem a importância.

Um bando de tiés esvoaçou por nós e a italiana perguntou:

— Mas os há mesmo assim?

E ficou um instante surpreendida que houvesse ainda daqueles pássaros nas proximidades de tantas modistas. A noite chegara-nos cheia de opressões e desejos. O doutor marchara na frente, calado, preocupado; e eu, ao lado da italiana, escolhia-lhe o melhor caminho e aspirava-lhe o perfume.

Chegamos afinal a uma casa. Lembrei-me da minha casa materna. Era o mesmo aspecto, baixa, caiada, uma parte de tijolos, outra de pau-a-pique; em redor, uma plantação de aipins e batata-doce. Deram-nos água, ofereceram-nos café e continuamos para o Galeão que estava próximo. Quando chegamos à praia, o dia tinha agonizado de todo. Fomos a uma venda, pedimos algumas latas de sardinha, pão e vinho. Fomos servidos em velhos pratos azuis de uns desenhos chineses e as facas tinham ainda aquele cabo de chifre de outros tempos. À vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? Essas perguntas angustiavam-me.

Voltamos de bote para a ponta do Caju. Durante a viagem a angústia avolumou-se-me. As pás dos remos, caindo nas águas escuras, abriam largos sulcos luminosos de minúsculas estrelas agrupadas e todo o barco vogava envolvido naquele estrelejamento, deixando uma larga esteira fosforescente.

Lembrava-me da vida de minha mãe, da sua miséria, da sua pobreza, naquela casa tosca; e parecia-me também condenado a acabar assim e todos nós condenados a nunca a ultrapassar.

A italiana conversava com o remeiro sobre a pesca. Ela conhecia a vida e fazia perguntas nítidas.

Saltamos do bonde, no Campo de Sant’Ana, eu e Espranza tomamos um carro; o diretor continuou para o jornal.

Em vão ela me fazia falar. Eu respondia-lhe por comprazer. Lembrava-me... Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro...

Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha mocidade e eu não tinha dado as satisfações devidas.

A má vontade geral, a separação dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer, a Zélia, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império.

O carro atravessara o largo da Lapa e o seu caminho foi interrompido por uma aglomeração de populares. Da caleça, pude ver o que havia. Era uma mulher das muitas que povoam o largo e proximidades, que ia entre dois soldados. Recordei-me que já tinha visto aquela fisionomia. Esforcei-me por me lembrar. A minha vida começou a desfilar e quando cheguei à casa da italiana, lembrei-me que era a amante do deputado Castro.

Perguntei então a mim mesmo por que não casara aquela rapariga, por que não vivera dentro dos costumes tidos por bons. Não achei resposta, mas julguei-me, não sei por que, um pouco culpado pela sua desgraça.

O carro chegou e eu saltei para ajudar Espranza a apoiar-se. Paguei ao cocheiro e, na calçada, ela perguntou-me:

— Não entras?

— Não, obrigado.

Insistiu várias vezes, mas recusei. Vim vagamente a pé até ao largo da Carioca, sem seguir um pensamento. Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os lados. Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco pelos outros e um pouco por mim. Encontrei Loberant:

— Então? perguntou maliciosamente.

— Deixei-a em casa.

— Pois se eu tinha me separado de vocês de propósito... Tolo! Vamos tomar cerveja...

Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos. As cogitações não me passaram... Loberant, sorrindo e olhando-me com complacência, ainda repetiu:

— Tolo!

Todos os Santos, Rio de Janeiro - 1908