Refutação de todas as heresias/V/XXI

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Esse (heresiarca) faz as seguintes afirmações: há três princípio que não tiveram origem no universo, dois masculinos (e) um feminino. Dos (princípios) masculinos há um que é denominado bom, e é chamado assim porque possui o poder de presciência a respeito do universo. Mas o outro é o pai[1] de todas as coisas que vieram a existir, desprovido de presciência[2] e invisível. E o (princípio) feminino é desprovido de presciência, passional, com dupla mentalidade[3], dois corpos, conforme (a descrição) da mulher na lenda de Heródoto, sendo metade com a aparência de uma virgem, e a outra (com aparência) de uma cobra, como Justino diz. A mulher é denominada de Éden e Israel. Continuando ele, os princípios do universo são as raízes e fontes das quais as coisas existentes foram criadas, mas nada mais. O Pai, então, que não tem a presciência, vendo a meia-mulher Éden, teve desejo por ela. Essa Pai se chama Elohim. Éden não demorou muito com Elohim, e a paixão mútua os trouxe ao leito nupcial do amor[4]. E do intercurso do Pai com Éden, foram gerado doze anjos. E os nomes dos anjos criados pelo Pai, os anjos paternais, são esses: Miguel, Amén, Baruque, Gabriel, Esadeus... E os anjos maternos, ou maternais, que Éden deu à luz, tem esses nomes: Babel[5], Acamote, Náas, Bel, Belias, Satã, Sael, Adoneu, Leviatã[6], Faraó, Carcamenos, (e) Latén.

O Pai tem vinte e quatro anjos associados a ele, e eles fazem tudo de acordo com sua vontade; e Éden, a Mãe tem (anjos associados a ela). E a multidão dos anjos é o Paraíso, do qual Moisés falou, de acordo com o que Justino interpreta: "E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do oriente"[7], isto é, em direção à face de Éden, que Éden deve vigiar o jardim - isto é, os anjos - continuamente. Alegoricamente os anjos são as árvores desse jardim, e a árvore da vida é o terceiro dos anjos paternais - Baruque. E a árvore do conhecimento do bem e do mal é o terceiro dos anjos maternais - Náas. Assim[8] diz (Justino) que deve se interpretar as palavras de Moisés, observando que "Moisés disse essas coisas alegoricamente, já que nem tudo é próximo da verdade". E ele continua, dizendo que o Paraíso foi formado da alegria conjugal de Elohim e Éden, e os anjos de Elohim receberam a parte mais bonita da terra, não da parte de Éden que se parece com um monstro, mas das partes de cima, da forma humana e bela. E das partes monstruosas são produzidas as bestas selvagens, e o resto da criação animal. Eles fizeram o homem como símbolo de unidade e amor (que subsiste) entre eles; e eles depositam seus próprios poderes nele, Éden a alma, Elohim o espírito. E o homem Adão é produzido como o verdadeiro selo e lembrança do amor, como um emblema perpétuo do casamento de Éden e Elohim. E da mesma maneira Eva foi criada, como descreveu Moisés, como imagem, emblema e selo perpétuo do Éden. E também foi depositada nela uma alma de Éden, e um espírito de Elohim. E foram dados a ambos os mandamentos: "Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra"[9], isto é, Éden; porque assim deseja-se, porque foi escrito. Com todo o poder que lhe pertence, Éden deu a Elohim uma espécie de dote nupcial. Daí, diz ele, da imitação do primeiro casamento, as mulheres trazem um dote a seus maridos, cumprindo a lei divina e paternal que veio a existir da parte de Éden e Elohim.

E quando todas as coisas foram criadas, como descrito por Moisés - céus, terra e as coisas que habitam neles[10] - os doze anjos da Mãe foram divididos em quatro princípios, e cada parte tem nome de um rio - Pisom, Giom, Tigre e Eufrates, como descrito por Moisés. Esses doze anjos, sendo mutuamente conectados, vão pelas quatro partes, e gerenciam o mundo, tendo de Éden autoridade vice-real[11] sobre o mundo. Mas eles não permanecem nos mesmos lugares, mas se movem como se estivessem numa dança circular, mudando seus lugares, e fixando tempo e intervalos para permanência nas localidades sujeitas. E quando Pisom muda de lugar, há fome, desastres e aflições naquela parte da terra, porque o batalhão de anjos está ansioso. Da mesma forma acontecem em cada parte, de acordo com a natureza e poder de cada um, tempos difíceis e pragas. E continuamente, de acordo com o domínio[12] de cada parte, esta corrente do mal, assim (como uma corrente) de rios, trazem, de acordo com a vontade de Éden, ininterruptamente ao redor do mundo. E por causa dessa descrição há a necessidade do mal.

Quando Elohim preparou e criou o mundo como resultado de seu prazer, ele desejou ascender às partes elevadas do céu, e ver que nada do que foi feito tinha deficiências. E ele levou seus anjos com ele, devido à sua natureza, deixando Éden embaixo[13], porque ela era a terra, não estando disposta a seguir seu esposo. Elohim, então, vindo à parte mais alto do céu, e vendo uma luz superior àquela que ele tinha criado, exclamou: "Abri-me as portas da justiça: entrarei por elas, e louvarei o Senhor"[14]. A voz retornou a ele pela luz dizendo: "Esta é a porta do Senhor, pela qual os justos entram"[15]. E imediatamente a porta foi aberta, e o Pai, sem os anjos, entrou, (indo) em direção ao Justo, e vendo "o que o não viu, nem ouvido ouviu, nem jamais chegou ao coração do homem"[16]. Então o Justo disse: "Senta à minha direita"[17]. E o Pai disse ao Justo, "permita-me, Senhor, voltar ao mundo que fiz, porque meu espírito está ligado aos homens[18]. E desejo voltar (para eles)." Então o Justo responde: "Nenhum mal pode fazer enquanto estiver comigo, porque você e Éden criaram o mundo como resultado da alegria conjugal. Então permita a Éden ter possessão do mundo assim como ela deseja, mas você deve permanecer comigo." Então Éden, ao saber que foi desertada por Elohim, teve profunda dor, e se colocou ao lado de seus anjos. E ela se adornou com vestes graciosas, para tentar fazer com que Elohim, tendo desejo por ela, desça (do ceu) para ela.

Porém, quando Elohim, subjugado pelo Justo, não desceu até Éden, ela ordenouu a Babel, que é Vênus, causar adultérios e dissolução de casamentos entre os homens. (E ela fez assim) a fim de que, já que ela se divorciou de Elohim, os homens, que são o espírito de Elohim, possa ver que está errado, e serem punidos pelas separações, e possam passar pelos mesmos sofrimentos (que afligem) Éden. E Éden deu grande poder ao seu terceiro anjos, Náas, que toda espécie de punição ela possa infligir ao espírito de Elohim, que são os homens, a fim de que Elohim, através do espírito, possa ser punido por ter desertado sua esposa, em violação aos seus votos. Elohim, vendo essas coisas, envia Baruque, o seu terceiro anjo, para socorrer o espírito dos homens[19]. Então Baruque ficou no meio dos anjos de Éden, isto é, no meio do paraíso - porque, como já foi dito, o paraíso são os anjos - e proclamou ao homem a seguinte ordem: "De toda a árvore do jardim comerpas livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás"[20], que é Náas. Isso significa que ele deve obedecer ao resto dos onze anjos de Éden, porque os onze possuem paixões, mas não são culpados de transgressão. Náas, porém, cometeu pecado, porque ele veio a Eva, enganando-a e viciandoa; e (tal ato) é uma violação da lei. Ele também veio a Adão, e teve intercurso não-natural com ele; e desse ato torpe veio o adultério e sodomia.

E assim vício e virtude prevaleceram entre o homem, vindos de uma única fonte - o Pai. Porque o Pai, ao ascender ao Justo, indica de tempos em tempos o caminho àqueles que desejam ascender (a ele). Tendo partido do Éden, foi criado o princípio originativo do mal no espírito do Pai, que é o homem[21]. Portanto Baruque foi enviado a Moisés, e através dele foi dito aos filhos de Israel que eles devem se converter ao Justo. Mas o terceiro anjo (Náas), pela alma que veio do Éden até Moisés, assim como a todo homem, obscureceu os preceitos de Baruque, e colocou suas próprias idéias peculiares para serem ouvidas. Por essa razão o espírito contende contra a carne e a carne contra o espírito[22]. Porque a alma é de Éden e o espírito de Elohim, e eles existem em cada ser humano, tanto homens quanto mulheres. Novamente, após estes (episódios), Baruque foi enviado aos profetas, para que através dos profetas o espírito que habita no homem[23] possa ouvir (as palavras de aviso), e possa evitar Éden e ficção malgina, assim como o Pai fugiu para Elohim[24]. Da mesma forma - pelos profetas[25] - Náas, por métodos similares, através da alma[26], que habita no homem juntamente com o espírito do Pai, seduziu os profetas, e todos (eles) foram enganados, e não seguiram as palavras de Baruque, que eram ditas por Elohim.

Enfim Elohim selecionou Hércules, um profeta incircunso, e o enviou para dominar os doze anjos de Éden, e libertar o Pai dos doze anjos, os malignos, da criação. Estes são os doze trabalhos de Hércules, do primeiro ao último, a saber, o Leão, a Hidra, o Javali, etc. Estes nomes são os nomes (deles) entre os gentios, e eles foram derivados com denominações alteradas de energia dos anjos maternos. Quando ele pensou ter tudo sobre controle, Onfale - sendo Babel, ou Vênus - vem a ele e o seduz, e retira seus poderes, isto é, os mandamentos de Elohim, entregues por Baruque. E em lugar (de seu poder, Babel) envolve ele em seu manto próprio, isto é, no poder de Éden, que é o poder debaixo; e desta forma a profecia de Hércules não foi preenchida, nem seus trabalhos terminados.

Finalmente, nos dias do rei Herodes, Baruque é enviado, mais uma vez sob as ordens de Elohim; e vindo a Nazaré, ele encontrou Jesus, filho de José e Maria, uma criança de doze anos, alimentando as ovelhas. E ele anuncia a Jesus todas as coisas desde o princípio, tudo o que foi feito por Éden e Elohim, e tudo o que aconteceu pelos séculos, e falou com as seguintes palavras: "Todos os profetas anteriores a você foram desviados. Portanto, tenha ânimo, Jesus, filho do homem, para que não seja seduzido, mas pregue essa palavra aos homens, e dê notícias a eles sobre Pai e o Justo, e ascenda ao Justo, e sente-se ao lado de Elohim, pai de todos nós." E Jesus obedeceu ao anjo, dizendo: "Eu farei tudo, Senhor", e começou a pregar. Náas tentou desviar ele também. (Jesus, porém, não estava disposto a ouvir suas tentações)[27] e permaneceu fiel a Baruque. Portanto Náas, ficando inflamado com ira porque não conseguia desviá-lo, fez com que o crucificassem. Ele, porém, deixando o corpo de Éden na árvore (amaldiçoada), ascendeu ao Justo; ele disse a Éden: "Mulher, eis aí teu filho"[28], isto é, o homem terreno e natural. Mas (Jesus) enviando seu espírito às mãos do Pai, ascendeu ao Justo. O Justo é Priapo, (e) é ele quem causou a criação de tudo o que existe. Neste relato ele é chamado de Priapo, porque ele criou e deu forma a todas as coisas (de acordo com seu próprio projeto). Por isso, diz Justino, em todos os templos está a sua estátua, que é reverenciada por todas as criaturas; e (há imagens dele) nas estradas, carregando sobre sua cabeça os frutos colhidos, isto é, os frutos da criação, da qual ele é a causa, tendo formado primeiramente (de acordo com seu próprio projeto), a criação, quando ainda não existia. Portanto, diz Justino, quando os homens dizem que o cisne veio a Leda, e deu à luz um filho, (na verdade) o cisne é Elohim, e Leda, Éden. E quando as pessoas dizem que uma águia veio a Ganimedes, (na verdade) a águia é Náas, e Ganimedes, Adão. E quando afirmam que (a chuva de) ouro veio a Danae, e deu à luz um filho, (na verdade) o ouro é Elohim, e Danae é Éden. E similarmente, na mesma forma, interpretando todas as histórias desse tipo, que correspondem com as lendas, eles vão atrás de instrução. Quando os profetas dizem "Ouçam, ó céu, e dêem ouvidos, ó terra; o Senhor fala", ele quer dizer por céu, (Justino) diz, é o espírito no homem, de Elohim; e por terra, a alma que é o homem junto com o espírito; e por Senhor, Baruque; e por Israel, Éden, porque Israel é chamado de esposa de Elohim. "Israel", diz ele, "não me conhecia (Elohim); porque se tivesse me conhecido, que eu estou com o Justo, ele não puniria o espírito do homem com a ignorância paterna."

Notas[editar]

  1. Ou "mãe".
  2. και ἄγνωστος, "e desconhecido" é adicionado nos textos de Cruice e Schneidewin, já que essa palavra está presente no resumo de Hipólito sobre a heresia de Justino no décimo livro.
  3. δίγνωμος, alguns leriam ἀγνώμων, isto é, sem capacidade de julgar.
  4. εὐνήν, alguns lêem como εὔνοιαν, isto é, "boa vontade", mas parece que há um pleonasmo onde φιλίας precede.
  5. Ou "Babelacamos" ou "Babel, Acamos".
  6. Ou "Caviatã".
  7. Gênesis 2:8
  8. Ou "este".
  9. Gênesis 1:28
  10. ἐν αὐτῇ, alguns lêem ἐν ἀρχῇ, isto é, "no princípio'.
  11. σατραπικήν. A leitura proposta, ἀστραπικήν, está obviamente ilegível.
  12. Ou "mistura".
  13. κάτω, pode ser lida como κατώγη, isto é, "na terra"; e outros, κατώγαιος, "com tendência para baixo".
  14. Salmos 118:19
  15. Salmos 118:20
  16. Isaías 64:4
  17. Salmos 110:1
  18. Ou "aos céus".
  19. ἀνθρώποις πᾶσιν. ᾽Ελθὼν, ou ἀνθρώποις. Πάλιν ἐλθὼν.
  20. Gênesis 2:16, 17
  21. Ou "no céu".
  22. Gálatas 5:17
  23. Ou "no céu".
  24. N.T.:O significado não está claro aqui.
  25. Essas palavra são supérfluas aqui, e foram repetidas da sentença anterior por engano.
  26. ψυχῆς, alguns lêem como εὐχῆς, isto é, "oração".
  27. As palavras em parênteses são uma conjectura de Miller.
  28. João 19:26