Revista do Brasil/Volume 5/Número 17/O Corvo
Desta amarga existencia em certo, amargo dia,
A' hora da meia noite, augural e profana,
Eu, de velha doutrina, as paginas relia,
Curvo ao peso do somno e da fadiga insana.
Mal do meu pensamento a direcção seguia
Por essa hora de horror em que da treva emana,
Toda em funda hediondez, desoladora e fria,
A atra recordação, a atra saudade humana.
Foi assim que senti, do meu triste aposento,
Como um leve sussurro a passar, lento e lento,
E uma leve pancada a bater nos humbraes.
Disse commigo: alguem vem, pela noite fóra,
Em retarda visita e retarda-se agora...
A bater mansamente á porta, nada mais!...
O' se o recordo, e bem! numa hinvernia brava,
O rispido e glacial Dezembro decorria,
E da lareira ao chão, cada braza lançava
O supremo fulgôr da sua lenta agonia.
E eu, a esperar, em vão, a aurora que tardava,
Queria, em vão, achar nessa velha theoria
Contida no volume antigo que estudava,
Um consolo sequer á dôr que me pungia.
Em vão! consolo, em vão! á minha dôr profunda,
Em vão! repouso, em vão! á alma que se me inunda
Desta immortal saudade aos prantos immortaes.
Porque jámais se esquece alma consoladora
Como essa que nos céos é chamada Eleonora,
Nome que nunca mais ouvirei, nunca mais!
Ante o vago oscillar, indefinido e brando,
Das cortinas que o vento, ao leve, sacudia,
Ia-me o coração sinistramente entrando
O sombrio terror da noite erma e sombria.
Um tetrico pavôr que então desconhecia
E que me estrangulava o peito miserando,
A alma, sem compaixão, de duvidas me enchia
E pouco a pouco foi meu ser avassalando.
Emfim, para volver á ambicionada calma
E a coragem, de novo, amparar-se-me d'alma,
Repetia a mim mesmo estas palavras taes :
"Nada mais é, talvez, que retarda visita
Que vem da noite em fóra e entrada solicita!
E' visita que vem, por certo, e nada mais!..."
A calma que até ahi do peito me fugia
Voltou de novo ao peito e á coragem primeira.
Não mais vacillações, não mais mente erradia.
Ao estranho rumôr fallo desta maneira :
"Como nesta occasião o somno me prendia
E a pancada foi tal, tão leve e tão ligeira,
Que presto não corri; perdoai-me esta ousadia,
Duma ou senhor que estaes da minha porta á hombreira."
Tão receiosamente e vagarosamente
Batestes, que não fui receber-vos contente,
Como hospede que sois e á minha porta estaes.
E assim fallando e olhando, escancarei a porta,
Mas só encontrei naquella hora adiantada e morta,
Treva! Treva sómente! A trevo e nada mais!
Cravo os olhos na treva e longamente a escruto,
E a treva é muda e é muda a propria ventania,
E longo tempo assim com o proprio medo lucto,
De duvida e terrôr povoando a phantazia.
Sonhos que outro mortal, como eu, nunca ousaria
Sonhar, me vêm, num bando esmagador e bruto.
Profunda calma aquieta a quieta calmaria.
Immovel é o silencio e só o silencio escuto!...
A unica voz humana, o unico som ouvido,
E' este nome, em surdina e, a medo, proferido;
E' este nome que encerra os meus mortos ideaes.
Sou eu quem o profere, eu que o trago na mente.
E um éco a repercutir, repete-o vagamente:
— "Eleonora! Eleonora!" E' isto, e nada mais!
Entrei de novo em ancia e ardendo a estranho fogo,
Senti que dentro em mim todo o meu ser ardia.
Ouvi distinctamente outra pancada, e logo,
De outra pancada o som mais claro percutia.
A essa nova impressão, volto-me e monologo:
Talvez cousa qualquer me bata á gelozia.
Certamente que sim, pois que ludibrio e jogo
Do pavor de mim mesmo, eu, certo, não seria!
Fujamos, pois, do medo ao tenebroso imperio.
Animo, coração! sondemos o mysterio,
Se bem que a noite esteja uivando aos vendavaes.
E continuando fui: Nada mais foi que o vento,
Não foi mais que o feroz, não foi mais que o violento
Sopro de furacão! Foi isso e nada mais!...
Abro a janella e vejo entrar, ruidosamente,
Amplas azas batendo e ares de fidalguia,
Um magestoso corvo altivo e irreverente,
Como arauto feral da noite erma e bravia.
Sem fazer o menor signal de cortezia,
Sem um gesto siquer de hesitação prudente,
Como entraria um nobre, alta dama entraria,
Entrou e se alojou despreoccupadamente.
Vagaroso e solemne, ar indolente e farto,
Exactamente sobre a entrada de meu quarto,
Seguro abrigo achou acima dos portaes.
Esta recordação até agora me enerva:
Sobre um pallido busto antigo de Minerva,
Rigido e senhorial, postou-se, e nada mais!
A este passaro audaz, de ébano á côr das pennas,
Grave na compostura e na physionomia,
Que ao cerebro me dava idéas mais serenas,
Que me acalmava o peito, e a sorrir me induzia,
Voltando-me disse eu: "Tu que te não enscenas
De altas cristas ou poupa á negra frontaria.
Velho corvo feral que te mostras apenas,
Certo, não és o vil núncio da covardia.
Corvo! antigo viajór que das regiões da noite
Partiste a procurar um tecto que te açoite,
Dize-me tu quaes são teus titulos reaes!
Qual a patria ante a qual teu orgulho se ufana?
Quaes as tuas regiões na noite plutoneana?...
E o corvo senhorial respondeu: "Nunca mais!!..."
Ao perceber assim que a ave me comprehendia
E que dava resposta a esta pergunta estranha,
Que eu, entre espanto e medo, a medo lhe fazia,
Senti, de pasmo, n'alma um peso de montanha.
Porque ainda quem tenha uma intuição tamanha,
Capaz de perceber o que outrem mal veria,
Certo, não achará neste dedalo um guia
Para o tirar do cháos em que a alma se emmaranha!
Ninguém verá como eu, a ave negra num busto,
Sem que a mova o receio e sem que a mova o susto,
Tranquilla espreguiçando as azas triumphaes,
Ouvir a minha voz a lhe indagar o nome
E ante a curiosidade atroz que me consome,
Dizer-me simplesmente a phrase: Nunca mais!...
A ave hedionda, entretanto, erma, a encimar o busto,
Sobre cuja brancura as azas distendia,
Como se essa palavra o sentido mais justo
Tivesse e contivesse a suprema harmonia;
Fosse do pensamento um envólucro augusto,
Cheio de precisão e cheio de energia,
Nada mais pronunciou, nem ao menos, a custo,
Uma pluma moveu da plumagem macia.
Eu, que continha mal toda a minha saudade,
Apenas murmurei: Amigos de outra idade
Tive, partiram; certo, assim tambem te vaes!
Assim tambem te irás, mal rompa em luz a aurora!
Esperanças que tive, assim fostes embora!
E o corvo repetiu a phrase: Nunca mais!...
Todo o assombro em meu ser por temôr se annuncia,
Ouvindo a ave augural, sem o menor estorvo,
Tal resposta me dar, com tanta analogia,
Que inda agora, a lembral-a, éco por éco a sorvo.
Certo a phrase aprendeu na triste companhia
De algum mestre infeliz cujo destino torvo,
Da dôr o escravisou á fera tyrannia,
E a sabe assim de cór, o foragido corvo!
Tantas vezes a ouviu, tão repetidamente
O seu mestre infeliz lh'a fez vibrar na mente,
Que hoje a profere a rir, como a profere em ais!
De profundis! cruel de uma morta esperança,
Tão tristonhas canções deixaram na lembrança
Do corvo este estribilho, este só: Nunca mais!...
Como apezar de tudo a calma conseguia
Fazer-me d'alma vir, do labio, um riso, á tona,
Chegando-me ao portal, do corvo hospedaria,
Sentei-me e recostei-me a uma antiga poltrona.
Frente á frente do corvo, a alma já me sorria
E todo entregue a mim, como quem se abandona,
Busco ancioso indagar que novas me traria
O funebre viajôr que inda hoje me emociona!
Procuro comprehender qual o escondido goso
Desse vil e sinistro arauto tenebroso
Que em dois termos resume os seus vis cabedaes,
Que os seus vis cabedaes de sciencia e de linguagem
Resume, ao exhibir-me a tetrica plumagem,
Crocitando e grasnando a phrase: Nunca mais!...
Deixo-me após ficar como quem se extasia
Entre allucinação e funda conjectura,
Ante a luz da razão e a nevoa da utopia,
Sem nada a me apoiar a mente mal segura.
Nada mais pronunciei, nem um som se me ouvia
E como a um ferro em braza, a uma horrivel tortura,
Da ave ao olhar hostil e á perfida ironia
N'alma entrou-me o terror que as almas transfigura.
Mas a um torpor de quem vagamente resona,
Recosto-me ao espaldar dessa velha poltrona,
Que eu para alli trouxera em ancias infernaes,
E vejo a luz brilhar sobre o roxo velludo
Em que por tanta vez d'Ella o semblante mudo
Brilhou, mas nunca mais brilhará! Nunca mais!
Sinto assim a envolver-me uma nuvem de incenso,
Solta de um incensorio occulto que pendia
Das invisiveis mãos de anjos que em côro extenso
Revoavam roçagando a ampla tapeçaria.
Haurindo o ar aromado e, de balsamo, denso,
De mim para mim mesmo exclamo em gritaria:
Infeliz! Infeliz! Um Deus piedoso e immenso,
Pelos anjos te manda o repouso e a alegria!
Do nepenthes é o sumo! Eil-o, bebe-o! Eil-o, esguece!
Elle é a seára do bem, do esquecimento a messe!
Nelle ouvirás a voz dos gosos celestiaes!
E' o nepenthes idéal que Deus te manda agora!
Bebe-o! Bebe-o olvidando a tua morte, Eleonora!
E o corvo crocitou de novo: — Nunca mais!
Passaro ou Satanaz, ave de prophecia,
Sejas ave ou Satan, sempre has de ser propheta.
Venhas do teu inferno ou da brava hinvernia
Que naufrago te fcz, acalma esta alma inguieta.
Já que a noite exigiu, no vôo que te guia,
Que cahisses aqui, onde a angustia secreta,
Onde o secreto horror tem tecto ou moradia,
De pouco que disseste o sentido completa!
Dize-me, por quem és, se neste mundo triste,
Existe algum repouso, algum consolo existe
Para estes meus crueis soffrimentos mortaes!
Existe esse mendaz balsamo da Judéa
Que, da saudade, a dôr nos arranca da idéa?
E o corvo, inda outra vez, repetiu: Nunca mais!
Propheta ou Satanaz, negro ser da desgraça,
Propheta senmpre atroz de negra prophecia,
Pelo azul deste céo que sobre nós se espaça,
Pelo Deus, todo luz, que em ambos nós radia,
Dize a esta alma sem luz e de duvidas baça,
Baça de incertidão e de melancholia:
Ser-lhe-ha dado abraçar o anjo que entre anjos passa,
E' de cujo esplendor hoje o céo se atavia?
Ser-lhe-ha dado abraçar a virgem pura e santa,
Virgem casta e piedosa e que os anjos encanta
Com seus gestos de encanto e encantos virginaes?
Ser-lhe-ha dado abraçar, oh! dize-o sem demora,
A rútila, a radiosa, a radiante Eleonora?
E o corvo, inda outra vez, repetiu: Nunca mais!
"Que esta palavra, emfim! de negra prophecia
Do teu regresso o inicio ambicionado seja.
Regressa ao reino teu, á noite que te envia,
A' noite plutoneana, essa que em ti negreja!
Volve! Cala essa voz que me fére e angustia!
Reentra no temporal, volve á tua peleja
De lá fóra, e não fique uma só pluma esguia
Neste chão, de tua vil plumagem malfazeja!
Não quero que de ti uma reminiscencia
Fique nesta de dôr, sagrada residencia,
Sobre a qual distendeste as azas funeraes!
Vae-te! Deixa da deusa a face casta e branca!
Arranca-me do seio as garras vis, arranca!"
E o corvo crocitou de novo: Nunca mais!
E o corvo permanece em perpetua estadia,
Sinistro a repousar, do marmore, á brancura.
Quem o contempla assim pela verdade jura
Que algum sonho feroz no aspecto se annuncia.
E' um demonio a sonhar sonhos que o inferno cria
E que lhe enrijam mais a rija catadura,
Tal o fulgôr do olhar que os olhos lhe allumia
E com que a propria sombra elle sondar procura.
Essa sombra que a luz da lampada suspensa
Faz reflectir no chão, qual atra nuvem densa,
No mesmo chão negreja em linhas sepulchraes:
E desse ambito negro, esse ambito de sombra,
Minha alma que da dor da saudade se assombra,
Nunca mais sahirá! Nunca mais! Nunca mais!
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.
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