Senhora/Posse/VII
Seixas escreveu a seu chefe uma carta justificando sua ausência com um motivo grave, e remetendo-lhe alguns papéis que havia despachado na véspera.
Ao entrar na saleta, encontrou Aurélia que examinava o tempo.
— Está um dia tão quente!... O melhor talvez fosse adiar nossas visitas. Que diz?
— Decida, porque ainda tenho tempo de ir à secretaria.
— Vamos almoçar. Resolverei depois.
Quando se ergueram da mesa, ainda Aurélia não tinha decidido. Seixas compreendeu que a intenção da mulher era contrariá-lo, no que ela achava um prazer especial, e resignou-se a perder o dia.
À uma hora, a moça chegou-se a ele:
— Jantaremos hoje mais cedo e sairemos às cinco horas. Não lhe convém assim?
— Convém-me qualquer hora que escolher; respondeu Seixas.
— Talvez não goste de sair de tarde. Então ficará para amanhã às onze horas.
— Pois seja amanhã.
— Faltará outra vez à repartição?
— Sendo preciso.
— Não; sairemos esta tarde.
— Aurélia chamou o criado e deu suas ordens. Como havia determinado, apressou-se o jantar; e às cinco horas descia ela a escadaria de seu palacete em cujo pórtico a esperava a elegante vitória tirada por uma parelha de cavalos do Cabo.
A moça trajava um vestido de gorgorão azul entretecido de fios de prata, que dava à sua tez pura tons suaves e diáfanos. O movimento com que, apoiando sutilmente a ponta da botina no estribo, ergueu-se do chão para reclinar-se no acolchoado amarelo da carruagem, lembrava o surto da borboleta, que agita as grandes asas e se aninha no cálix de uma flor.
O vestido de Aurélia encheu a carruagem e submergiu o marido; o que ainda lhe aparecia do semblante e do busto ficava inteiramente ofuscado pela deslumbrante beleza da moça. Ninguém o via; todos os cumprimentos, todos os olhares, eram para a rainha, que surgia depois de seu passageiro retiro.
O carro parou em diversas casas, indicadas na nota que o cocheiro recebera. Seixas oferecia a mão à mulher para ajudá-la a apear-se, e a conduzia pelo braço à escada, que ela subia só, pois precisava de ambas as mãos para nadar nesse dilúvio de sedas, rendas e jóias, que atualmente compõe o mundus da mulher.
Aí como na rua, todas as atenções eram para Aurélia, que as senhoras rodeavam pressurosas, e os homens fascinados por sua graça. Seixas apenas recebia um pálido reflexo dessa consideração, quanto exigia a estrita urbanidade. Houve casa, onde no afã de acolher a mulher, o deixaram atrás, desapercebido como um criado.
Em outras circunstâncias, aquela anulação de sua individualidade, bem pode ser que não o incomodasse. Talvez se reparasse nela, fosse para desvanecer-se de ser o preferido dessa formosa mulher, cercada da admiração geral e disputada por tantos admiradores. Todo esse culto que lhe prestava a sociedade, não seriam a seus olhos senão o tributo a ele oferecido pelo amor de sua mulher.
Mas as condições em que se achava, deviam mudar completamente a disposição de seu ânimo. Quanto mais se elevava a mulher, a quem não o prendia o amor e somente uma obrigação pecuniária, mais rebaixado sentia-se ele. Exagerava sua posição; chegava a comparar-se a um acessório ou adereço da senhora.
Não tinha dito Aurélia naquela noite cruel, que o marido era um traste indispensável à mulher honesta e que o comprara para esse fim? Ela tinha razão. Ali, naquele carro, ou nas salas onde entravam, parecia-lhe que sua posição e sua importância eram a mesma, senão menor, do que tinha o leque, a peliça, as jóias, o carro, no trajo e luxo de Aurélia.
Quando ele oferecia a mão à mulher para apear-se, ou levava no braço a manta de caxemira, considerava-se a igual do cocheiro que dirigia o carro e do lacaio que abria o estribo. A única diferença era serem aqueles serviços dos que os cavalheiros geralmente prestam às senhoras, e que só em falta desses recebem elas de um criado mais graduado.
Uma das últimas visitas foi à família de Lísia Soares, que se dizia a amiga mais íntima de Aurélia, quando solteira.
Depois dos cumprimentos e felicitações, quando a conversa vacilava à espera de um tema, a Lísia que era maliciosa lembrou-se de soprar uma faísca. Não podia haver para ela maior prazer do que o de picar Aurélia cujo espírito muitas vezes a tinha beliscado.
— Lembra-se, Aurélia, quando você fazia a cotação de seus pretendentes? Disse a maligna alteando a voz para ser bem ouvida.
— Se me lembro! Perfeitamente! respondeu Aurélia sorrindo.
— E o que me disse uma noite a respeito do Alfredo Moreira? Que valia quando muito cem contos de réis; mas que você era muito rica para pagar um marido de maior preço.
— E não disse a verdade?
— Então o Sr. Seixas?... interrompeu Lísia com uma reticência impertinente que estancou-lhe a palavra nos lábios, para borrifar a malícia no sorriso e no olhar.
— Pergunte-lhe! disse Aurélia voltando-se para o marido.
Nunca, depois que se achava sob o jugo dessa mulher, ou antes da fatalidade que o submetia a seus caprichos, nunca Seixas precisou tanto da resignação de que se revestira para não sucumbir à vergonha de semelhante degradação. O primeiro abalo produzido pelo diálogo das duas amigas foi terrível; e não o perceberam, porque a atenção geral convergia para Aurélia nesse instante.
Dominou-se porém; quando os olhares acompanhando o gesto da mulher voltaram-se para ele, encontraram-no calmo, naturalmente grave e cortês, embora ainda lhe restasse uma ligeira palidez em que ninguém reparou.
— Então, Sr. Seixas, é certo? insistiu Lísia.
— O quê, minha senhora? perguntou o moço por sua vez e com a maior polidez.
— O que disse Aurélia.
— Não vês que é um gracejo! observou a mãe de Lísia.
— Ela foi sempre assim, amiga de brincar! disse uma prima.
— Não querem acreditar!... tornou Aurélia com um modo indiferente.
— É sério, Sr. Seixas? perguntou Lísia novamente.
— Responda! disse Aurélia ao marido, sorrindo-se.
— Da parte de minha mulher não sei, e só ela poderá dizer-lhe, D. Lísia. Quanto a mim asseguro-lhe que me casei unicamente pelo dote de cem contos de réis que recebi. Devo crer que minha mulher mudou da idéia em que estava de pagar um marido de maior preço.
A sisudez com que Seixas pronunciou estas palavras, e porventura também certa aspereza do timbre que percebia-se-lhe na fala harmoniosa, como sente-se a aspa de ferro sob o estofo de cetim, deixaram as pessoas presentes perplexas acerca do sentido e crédito que deviam dar a semelhante asseveração.
Nisto ressoaram os trilos cristalinos da risada de Aurélia.
— Eis o que você queria, Lísia, era fazer desconfiar Fernando. Quer saber se eu o comprei, e por que preço? Não faço mistério disso; comprei-o, e muito caro; custou-me mais, muito mais de um milhão; e paguei-o, não em ouro, mas em outra moeda de maior valia. Custou-me o coração; por isso já não o tenho!
Estas palavras e a expressão que palpitava nelas convenceram a todos que Aurélia estivera efetivamente a gracejar acerca de seu casamento. A resposta à Lísia não fora senão um disfarce para provocar aquela confissão inconveniente da paixão com que se estremeciam ela e o marido.
Assim, quando retiraram-se as visitas, o tema da conversa foi o desfrute dos dois noivos, que depois de um mês de casados andavam pela rua requebrando-se como dois pombinhos namorados. Lísia asseverava ter visto Aurélia de tal modo enleada ao braço do marido, que este não podia andar.
Entretanto rodava o carro pelo Catete, e Aurélia balançando-se ao brando movimento das almofadas, parecia ter completamente esquecido Seixas sentado a seu lado, quando este dirigiu-lhe a palavra.
— Desde que estamos casados, uma só vez não inquiri de suas intenções. Respeito-as, como é meu dever, e conformo-me com elas quanto posso, por mais estranhas que me pareçam. Mas para satisfazer suas vontades é preciso pelo menos conhecê-las, embora não as compreenda.
Aurélia voltara o rosto para o marido. Como já não receava ser vista por causa do lusco-fusco, deixou que seu semblante tomasse a expressão de soberba desdenhosa, que o vestia nesses momentos de surda irritação.
— Que pretende com este prólogo?
— A princípio quis-me parecer que desejava ocultar dos estranhos a realidade de nossa posição. Confesso que nunca pude atinar com o motivo dessa singularidade. Criar deliberadamente uma situação, para ter o gosto de a negar a todo instante...
— É absurdo?... Não é?... Também me parece a mim.
— Não perscruto seu pensamento. A senhora devia ter uma razão, que ignoro.
— Como eu.
— Importa-me, porém, saber se mudou de propósito, como indica a cena que acaba de representar, e se resolveu dora em diante fazer escândalo, do que ontem fazia mistério.
— E para que deseja saber isso?
— Já o disse, para conformar-me à sua vontade e afinar-me pela mesma clave. O dueto será mais aplaudido.
— Não duvido; mas eu é que não me casei para fazer de minha vida uma solfa de música. Serei leviana e inconseqüente; terei estes defeitos; mas o que não tenho, pode estar certo, é o talento do cálculo. Deixe-me com o meu gênio excêntrico. Agora, neste momento, sei eu porventura o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? Como pois havia de formular um programa conjugal para nosso uso? Eu posso fazer de nossa união um mistério ou um escândalo, conforme o capricho. O senhor é que não tem esse direito.
— Tanto como a senhora!
Aurélia contestou com fria impassibilidade:
— Engana-se. O Sr. Seixas não pode desacreditar meu marido e expô-lo à irrisão pública.
— Mas a mulher do infeliz pode; tem esse direito.
— O senhor deu-lho.
— Não; use do termo: Vendi-lho!
Aurélia não respondeu. Derreando o corpo nas almofadas, e voltando o rosto para ver o recorte das árvores e chácaras na tela iluminada do ocaso, deixou cair a conversa.
Ainda fizeram algumas visitas. Eram mais de oito horas quando parou o carro à porta de casa. D. Firmina tinha saído. Aurélia queixou-se de fadiga, cortejou o marido e recolheu-se.
Em seu quarto lembrou-se Seixas de algumas palavras que haviam escapado a Aurélia na conversação da tarde. - Sei eu acaso o que farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? dissera a mulher; e ele sabia, que valor tinham em seus lábios essas frases enigmáticas.
Desde a noite de luar e os devaneios poéticos sobre Byron que Aurélia mostrava uma irritabilidade contínua. Qual devia ser a resolução inspirada por essa febre de sua alma, já tão propensa aos caprichos e excentricidades?
Esteve Seixas cogitando um momento sobre este ponto a fazer conjeturas. Fatigou-se, porém, da tarefa, e abandonou-a, pensando que não havia piores na posição intolerável em que se achava.
Já não pensava naquilo, quando súbito atravessou-lhe o espírito uma idéia que o fez estremecer.
Um impulso de curiosidade o dominou. Correu à porta que o separava da câmara nupcial e dos aposentos da mulher. Ergueu a mão para bater; começou o nome de Aurélia; mas não se animou a realizar o primeiro intento. Aplicou o ouvido a escutar. Reinava naquela parte da casa o mais profundo silêncio. Que fazer?
Agitado pela idéia terrível que o assaltava, deu a esmo algumas voltas pelo aposento, numa perplexidade cruel. Seu olhar que não deixava a porta, notou um esguicho de luz no fundo do corredor escuro, e conheceu que saía pela greta da fechadura.
Aproximou-se cautelosamente e sem rumor. Pelo recorte da chave, pôde ver na parede fronteira um quadro iluminado que se destacava no crepúsculo da câmara nupcial. Era o espelho colocado sobre a jardineira de mármore, que refletia obliquamente pela porta aberta uma faixa de outro gabinete.
Essa zona abrangia um divã onde nesse instante destacava-se do brocado verde a estátua de Aurélia, deitada como o alto-relevo que outrora ornava as campas dos nobres. Envolvia o corpo da moça um roupão de cambraia, cujas pregas caíam sobre o tapete semelhantes aos borbotões da nívea espuma de uma cascata, e deixavam-lhe o talho debuxado sob a fina teia de linho.
Estava muito pálida e imóvel. Um dos braços descaía desfalecido pela borda do divã; tinha o outro suspenso até à moldura do recorte onde a mão se crispava, talvez no esforço de erguer o corpo. Havia na imobilidade dessa posição e em seu perfil alguma cousa de hirto que assustava.